Reportagens

Empalhar era conservar

Em 50 anos de coletas e pesquisas, o ornitólogo húngaro José Hidasi produziu um acervo de mais de 120 mil animais empalhados, expostos em museu de Goiânia.

Lisbeth Oliveira ·
10 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

José Hidasi, húngaro radicado no Brasil, 78 anos de idade, foi responsável pela criação ou reestruturação de 14 museus pelo Brasil afora. Em Goiânia, onde mora, criou o único museu ornitológico do mundo. É o que ele garante, explicando que o de Budapeste foi bombardeado durante a Segunda Guerra Mundial e o de Tóquio foi incorporado a um complexo maior de zoologia.

Único do mundo ou não, o Museu Ornitológico de Goiânia pode se orgulhar de ter a mais impressionante exposição faunística já vista por estas bandas. Impressionante pela quantidade – são mais de 120 mil exemplares de aves e outros animais – e pela forma como são apresentados: todos empalhados pelo próprio José Hidasi.

Em 1950, quando aportou no Rio de Janeiro, José ainda era József. Convenceu o funcionário do serviço de Imigração a abrasileirar o nome do passaporte. “Quero ser brasileiro de qualquer jeito”, explicou na ocasião. Vinha com o sonho antigo de desbravar um verdadeiro paraíso natural. “Meu pai, que havia conhecido o Brasil, contava histórias fantásticas, que no meu imaginário se ampliavam ainda mais”, lembra.

A eclosão da guerra o levara a sair do seu país muitos anos antes. No norte da Alemanha, estudou uma especialidade pouco conhecida: Administração de Jogos Olímpicos. Depois emigrou para a França, onde cursou Ciências Naturais na Universidade de Lilli. Trabalhando numa fábrica de tecidos e como organista de igreja, reuniu economias para enfim realizar sua aventura nos trópicos.

Aqui, tinha a intenção de ganhar a vida como “naturalista profissional”. Assim eram chamados os especialistas que se embrenhavam nas matas para caçar, preparar e vender animais silvestres. Na época não havia restrições à caça nem a atual consciência sobre preservação ambiental. Boa parte dos caçadores era constituída de amantes da natureza, que coletavam e empalhavam animais pelo prazer de conhecê-los e admirá-los. Os naturalistas, além disso, ganhavam dinheiro vendendo peças para instituições científicas e museus.

O professor José Fernando Pacheco, que dirige o Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO), do qual Hidasi é membro honorário, define o húngaro como um self-made man, “um dos pioneiros vivos, que construíram carreira no campo, coletando pássaros, estudando-os e compondo coleções”. Pacheco ressalta que antigamente a caça, ou coleta, era a única forma de estudar. Os binóculos e gravadores ainda eram precários, impossibilitando a ciência por observação, que só passou a existir na virada dos anos 50 para os 60. “Mesmo assim, como os cientistas daquela época tinham sido formados nas décadas de 20 e 30, a mudança de mentalidade não se transformou de uma hora para outra, mas aos poucos”, explica. A história do José Hidasi é um exemplo dessa progressiva conscientização. Hoje todo seu trabalho é pautado pela preservação e educação ambiental.

Na selva com Sick

Alguns meses depois de chegar ao Brasil, teve um encontro determinante para sua carreira: foi apresentado ao alemão Helmut Sick, ainda hoje considerado o maior ornitólogo do país. Com Sick, José Hidasi conheceu a selva dos seus sonhos. Depois de Xingu e Xavantina, na Amazônia, exploraram a Mata Atlântica e o Cerrado, pesquisando e revelando a diversidade da avifauna brasileira. Juntos na Fundação Brasil Central, trabalharam na criação de museus, entre eles o de Aragarças (GO), às margens do Rio Araguaia.

Em 1968 mudou-se para Goiânia, a capital planejada de Goiás, cujos habitantes não passavam de 30 mil. Naquele ano deu início ao Museu de Ornitologia de Goiânia, organizando o que viria a ser o maior acervo científico de zoologia do Cerrado. Hoje são mais de 120 mil peças, espalhadas por três casas interligadas por corredores e escadas. Principalmente aves, mas também insetos, mamíferos, répteis, peixes, moluscos e artrópodes, numa coleção representativa não só do Cerrado, mas de outras partes do Brasil e do mundo.

Para manter o Museu e seu enorme acervo, Hidasi dispõe de uma equipe de seis pessoas. Ele já faz planos sobre o destino da coleção para quando não estiver mais presente. “Há um projeto da Prefeitura de Goiânia em parceria com a iniciativa privada, de construção de um museu dentro do Parque Zoológico, para onde iria grande parte das peças”, conta. As mais importantes espécies do acervo, porém, devem ir para a Estação São José, construída pela Universidade Católica de Goiás (UCG) em parceria com a iniciativa privada, onde se destaca o Museu Memorial do Cerrado. “A UCG é digna de receber. São pessoas sérias e responsáveis, que souberam dar o devido valor à coleção”. Exemplo disso é o recente vídeo-documentário Cegonha Dourada, que participou em junho último do IV Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental na Cidade de Goiás (FICA). Produzido por Veronica Aldé e Altair Sales Barbosa, colegas de Hidasi no Memorial do Cerrado, o documentário mostra a trajetória científica e educativa do ornitólogo, com ênfase na preservação da fauna e flora do Cerrado.

Em outubro, José Hidasi lança seu terceiro inventário ornitológico: Aves de Goiás. Em 1997, publicou Aves de Goiânia, e no ano seguinte Aves do Tocantins. “Agora apresento em torno de 500 aves. O interessante neste livro é que todas as ilustrações estão empalhadas aqui no Museu. Além do livro em tamanho normal, também estamos fazendo um exemplar de bolso para pesquisadores consultarem mais facilmente no campo”, sugere.

Método singular

José Hidasi desenvolveu e aperfeiçoou um método singular de taxidermia (taxis: ordenamento/dar forma; derme: pele), a arte de empalhar animais. Enquanto a técnica tradicional moldava seguindo rigorosamente o formato do corpo do animal, a sua dá margem a diversos formatos. Tomando como exemplo uma ave, ele explica que utiliza basicamente três arames. Os dois primeiros são entrelaçados e das quatro extremidades resultantes formam-se as asas e pernas. O terceiro arame liga o pescoço à cauda. No centro dos arames entrelaçados o corpo é preenchido com estopa de madeira, fibra de coco, musgo ou material semelhante e envolvido com papel de jornal e depois papel higiênico. Por último, amarra-se com linha fina bem resistente. A flexibilidade do arame permite que todas as partes fiquem bem sustentadas, possibilitando diferentes formas e posições. No método tradicional, diz o professor, tudo é muito frágil, já que os arames não estão interligados, mas acrescentados ao corpo pré-moldado.

Conversando com o professor Hidasi tem-se a impressão de que a paixão ambientalista e a prática de empalhar animais caminham juntas. Ele reconhece o preconceito contra a taxidermia, especialmente no Brasil: “O próprio Jô Soares há pouco tempo disse: “Não gosto de ver uma onça assim com a boca aberta. Temos que ter compaixão, piedade. Não pode mostrar o ouro para o bandido assim”. O professor se inflama ao retrucar esse tipo de raciocínio, que associa a taxidermia ao gosto por caçadas indiscriminadas: “Para bandido, para gente má, a solução é prisão. Na China, executaram dois caçadores de panda. Quero ver quem é que vai matar panda agora”.

Empalhar, para Hidasi, é um ato de conservação. “A taxidermia é indispensável para a cultura. Se não coletamos, nunca saberemos ao certo como era”. José Fernando Pacheco defende a concepção do experiente ornitólogo: “Conservar um animal (seja empalhado, em líquido, retirando-se material genético) é útil para a ciência, para a preservação. O conhecimento depende de dados acumulados ao longo do tempo. Sem coleta e registro dos animais não se teria informações para ações de conservação”, explica.

Dos animais empalhados do Museu Ornitológico de Goiânia, Hidasi cita muitos em vias de extinção ou talvez já extintos. Saci-faisão (“Só vi dois e ouvi um em toda a minha vida”), anambé preto (pássaro boi), galo da serra, beija-flor “brilho de fogo”, azulona (Tinamus tao), arara azul (Anodorhinchus hyacinhimus), pato corredor (Neochen jubata), urubu-rei (Sarcoramphus papa), águia cinzenta (Harpyaliaetus coronatus), gavião de penacho (Spizastur ornatus), sanã (Neocrex erythrops), murucututu (Bubo virginianus), coruja preta (Ciccaba huhula) e o urutau grande (Nyctibius grandis), entre outros.

Para o ornitólogo, a defesa ecológica que se vê hoje em dia “é só para inglês ver”. Quase sempre um discurso vazio e sem ação prática. “O panorama vem mudando devagar, mas infelizmente, até que mude, não teremos mais nada o que defender. Estão acabando com a água, com as matas, com tudo. Eles não têm noção de que a água vem daquelas matas que estão sendo destruídas. Cada metro cúbico, depois de uma chuva, armazena quatro litros de água. Quantos metros cúbicos temos numa mata? Milhões e milhões… Isso vai devagarinho pingando, evaporando e dando vida ao subsolo. O que sobra, forma um corregozinho cristalino. Aí vem um brutamontes, derruba tudo e deixa tudo em erosão…”, lamenta.

O desconsolo do ambientalista Hidasi diante da destruição que testemunha ano após ano reforça sua convicção de taxidermista. “Não posso ver esses grandes animais — grandes não em tamanho, mas em valor — apodrecerem e estragarem. Por que eu ganho tantos? Porque estão atropelando, acabando. As matas estão sendo derrubadas. Eles não têm onde viver…”. Em última instância, ele acredita que conservar é fazer a ciência superar a morte. Um ideal que está expresso em seu último desejo. “Fico feliz em morrer sabendo que vou ser empalhado e fazer parte deste Museu”.


(fotos: Lisbeth Oliveira)

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