Reportagens

Zona de impacto

Governo e ambientalistas debatem medidas compensatórias para o asfaltamento da Santarém-Cuiabá, que corre ao longo de 1.700 km de florestas intactas.

Ronaldo Brasiliense ·
13 de agosto de 2004 · 20 anos atrás

O governo federal está escrevendo mais um capítulo de uma novela que começou há três décadas: o asfaltamento da rodovia BR-163, a Santarém-Cuiabá. À semelhança da Transamazônica, a estrada é um projeto da época do Brasil Grande. Concebido durante a ditadura militar, há muito tinha sido abandonado. A expansão da soja na região e a necessidade de escoamento da colheita resgataram a BR-163 do esquecimento. E isso vai mudar radicalmente o rumo dessa história.

Agora, quem acompanha a novela vai deixar de se preocupar com o futuro da estrada e passar a prestar atenção sobre o futuro da mata que ela corta. O asfalto certamente facilitará o transporte da soja, mas também a chegada de mais pessoas à região, abrindo novas frentes de atividade econômica. Estudos sobre o impacto ambiental que o asfaltamento pode provocar indicam que ele tem o potencial de causar, num espaço de apenas 20 anos, o desmatamento de 30% a 40% da Amazônia. “Construir essa estrada significa fazer com que o meio ambiente e o desenvolvimento caminhem juntos”, defende a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Tomara.

Nas últimas semanas, foram realizadas três audiências públicas em municípios da Área de Influência da rodovia: Guarantã do Norte (MT), Novo Progresso (PA) e Santarém (PA). Nelas, governo e população discutiram o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Rima) para o licenciamento prévio da obra, além do plano de políticas complementares ao asfaltamento da BR-163 feito pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), integrado por representantes de 14 ministérios do governo Lula.

O governo federal está colocando em discussão, nas audiências públicas, um Plano de Desenvolvimento Sustentável para a região, que prevê medidas para compensar o impacto sócio-ambiental que o asfaltamento da rodovia provocará em vastas porções de floresta tropical úmida amazônica ainda intocadas. As comunidades e organizações ambientais elogiam o processo de discussão em torno do asfaltamento da Santarém-Cuiabá, mas fazem ressalvas quanto à sua eficácia. “O plano revela apenas a vontade de fazer diferente”, pondera a pesquisadora Ane Alencar, do Ipam, destacando que o documento do governo precisa transformar prioridades em ações concretas. “Não dá para solucionar todos os problemas, mas pelo menos os mais urgentes”, opina.

Ao contrário do que espera a ministra, o desenvolvimento econômico não parece disposto a aguardar os devidos cuidados ambientais. Nas audiências públicas, os defensores da obra têm minimizado seu impacto. Segundo o prefeito de Santarém, Joaquim Lira Maia, que reuniu mais de 20 prefeitos favoráveis à obra, a discussão é tardia e inútil. “A rodovia foi aberta há mais de 20 anos e todo o impacto ambiental que poderia ter ocorrido já ocorreu”, disse, referindo-se à estrada de terra. O deputado federal José Priante, presidente da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, diz que toda a celeuma provocada pelas ONGs tem como objetivo manter o atraso social e econômico da Amazônia. “O que os estrangeiros temem é que o Brasil, por suas condições excepcionais, assuma a liderança mundial na produção de vários tipos de grãos, como soja, milho, pois isso quebraria os produtores americanos”, alegou.

Ameaça da soja – O governo Lula quer usar o asfaltamento da Santarém-Cuiabá como projeto-piloto das Parcerias Público-Privadas (PPP) que pretende aprovar ainda neste semestre no Congresso Nacional. Alegando ter pouco dinheiro em caixa para investimentos, o governo federal afirma que a iniciativa privada deve assumir a execução da obra. Mas não é bem assim. Em reunião realizada em Brasília a portas fechadas, sem a presença da imprensa, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, anunciou a cinco governadores de estados da Amazônia Legal que o governo poderá financiar o asfaltamento da BR-163 com recursos do BNDES e dos fundos constitucionais do Norte e do Centro-Oeste.

Os maiores interessados na obra são os produtores de soja do Centro-Oeste, liderados pelo governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, e os empresários do setor eletroeletrônico da Zona Franca de Manaus, que poderiam escoar a produção do Distrito Industrial amazonense de Manaus até Itaituba (PA), e daí, pela Santarém-Cuiabá, até os mercados do Sul e Sudeste. Maggi, o maior plantador individual de soja do Brasil, advogou o asfaltamento da BR-163 do trecho que vai da fronteira do Mato Grosso com o Pará até Itaituba, às margens do rio Tapajós. De lá, a soja do Centro-Oeste seria escoada em navios de grande porte, que ganhariam os mercados asiático e europeu descendo pela calha do rio Amazonas até o Atlântico. Além do financiamento público, o governo prometeu ceder ao consórcio integrado por produtores de soja e industriais da Zona Franca o direito de cobrar pedágio na rodovia por um período de até 20 anos, renovável.

O governador do Pará, Simão Jatene, quer levar o asfalto mais longe, completando o trecho de 172 quilômetros entre Itaituba e Santarém. “A maior cidade do Baixo Amazonas não pode ser excluída do asfaltamento da BR-163”, afirmou. A idéia de limitar o asfaltamento até Itaituba alijaria um concorrente de peso nas exportações de soja, a multinacional Cargill – já está instalada no porto de Santarém.

Dinâmica predatória – Enquanto isso, os ambientalistas preocupam-se com a regularização fundiária da região. Este é um ponto crucial numa área de 8 milhões de hectares localizada entre os vales dos rios Xingu e Tapajós, rebatizada pelas organizações ambientalistas como Terra do Meio. Uma das últimas reservas de mogno da Amazônia, a Terra do Meio é marcada por conflitos fundiários, assassinatos de trabalhadores rurais, trabalho escravo, invasão de reservas indígenas e, principalmente, grilagem de terra. “O cadastramento de terras por lá é caso de polícia”, afirma Ane Alencar. “Sem resolver o problema fundiário, não há condições de se desenvolver nenhuma estrutura inovadora de produção local”.

Para as ONGs, o impacto da BR-163 também diz respeito à possível abertura de centenas de estradas secundárias sem planejamento, a exemplo do que aconteceu na área de influência das rodovias Cuiabá-Porto Velho (BR-364) e Transamazônica. Imagens captadas pelo satélite norte-americano Landsat comprovaram os desmatamentos em Rondônia, revelando aquilo que os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) denominaram “espinha de peixe”: a rodovia principal e suas vicinais. De acordo com a ONG Imazon, entre 1987 e 2001, foram abertos ilegalmente cerca de 23 mil quilômetros de estradas apenas no centro-sul do Pará. “Esse é um indicador forte da dinâmica que se instalou na região, fruto de garimpos, da extração de madeira e de pequenos produtores sem acesso às estradas”, comenta o pesquisador Paulo Barreto, do Imazon.

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