Reportagens

A história do caminhoneiro que virou acionista da Vale

Wellem de Melo percorreu estradas por 30 anos, transportou carvão para siderúrgicas e hoje luta pelo reassentamento de famílias de Piquiá.

Fabíola Ortiz ·
21 de julho de 2014 · 10 anos atrás

 Wellem Pereira de Melo já foi caminhoneiro de carga pesada e hoje se tornou um líder comunitário de Piquiá de Baixo. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Wellem Pereira de Melo já foi caminhoneiro de carga pesada e hoje se tornou um líder comunitário de Piquiá de Baixo. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

Enviada especial a Açailândia, Maranhão – Ele foi caminhoneiro por mais de 30 anos, sua vida não tinha paradeiro programado, vivia com o pé na estrada a bordo de seu caminhão de carga cruzando as estradas do Brasil. Wellem Pereira de Melo, 56 anos, nasceu em Governador Valadares, no nordeste de Minas Gerais, mas logo mudou-se com sua família para a região de Açailândia, no Maranhão.

Na década de 1970, seu tio tinha uma propriedade perto de Piquiá e convenceu seu pai a se mudar e a fazer a vida na comunidade. Wellem e os seus nove irmãos acompanharam os pais agricultores nessa empreitada.

Aos 20 anos de idade, decidiu se aventurar pelo país como caminhoneiro. Na boleia de seu caminhão, transportou verdura, soja e vários produtos para São Paulo, Belém, Fortaleza, São Luís, apenas para citar algumas das capitais por onde passou. “Rodei o Brasil inteiro, até para a Argentina fui levando carne”, lembra Wellem.

De 1986 a 2004, o caminhoneiro apostou numa carga cobiçada, o carvão para alimentar os altos-fornos das siderúrgicas instaladas em Piquiá de Baixo. Foram 18 anos levando e trazendo carvão vegetal das carvoarias – havia mais de 400 na região – para as cinco indústrias de ferro gusa em Piquiá.

“A nossa vida mudou muito. Somos descendentes de agricultores. Através da ferrovia que expandiu, vieram as siderúrgicas. Aqui foi o local que acharam adequado para construir as indústrias”

“A nossa vida mudou muito. Somos descendentes de agricultores. Através da ferrovia que expandiu, vieram as siderúrgicas. Aqui foi o local que acharam adequado para construir as indústrias”, lembra-se. Quando a então Vale do Rio Doce deu início à instalação da ferrovia, na década de 1980, “avisaram que haveria muito emprego, melhoria e desenvolvimento. Trabalho aqui era só serviço braçal e mão de obra pesada”, conta.

A vida de Wellem deu uma reviravolta nos últimos anos ao descobrir um grave problema de visão e ser obrigado a uma aposentadoria precoce.

Caminhão cruza a BR-222. Ao fundo a Gusa Nordeste S/A. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Caminhão cruza a BR-222. Ao fundo a Gusa Nordeste S/A. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

O fim de Piquiá

Tudo mudou quando Wellem descobriu que a perda de 40% da visão o impediria de seguir sua profissão: caminhoneiro de cargas pesadas.

Um laudo médico proferido pelo Instituto de Oftalmologia de Imperatriz em março de 2012 constatou cegueira no seu olho esquerdo devido a coriorretinite em área macular – termo médico que indica inflamação da retina e que provoca sua degeneração. Ou seja, Wellem foi diagnosticado com “cegueira sem prognóstico de melhora visual”, uma patologia que gera perda de visão central e dificuldade para ver detalhes de objetos. Portanto, ele deveria manter-se afastado do trabalho com o caminhão.

“O médico falou que é uma bactéria que eu adquiri através da poluição do Piquiá de Baixo, da poeira que coçava e inflamava. O médico disse que não podia mais morar lá por causa da poluição”

“O médico falou que é uma bactéria que eu adquiri através da poluição do Piquiá de Baixo, da poeira que coçava e inflamava. O médico disse que não podia mais morar lá por causa da poluição”, disse.

Ele e sua esposa, de 52 anos, diagnosticada em 2010 com câncer de pele, rapidamente deixaram a casa onde moraram por vinte anos e se mudaram para o bairro vizinho a 2 km, Piquiá de Cima, como tantos moradores que desistiram de Piquiá de Baixo. Sua casa hoje está abandonada e, nos fundos do terreno está instalada a siderúrgica Gusa Nordeste S/A. Há quatro anos ele vive de aluguel. Com uma renda familiar de dois salários mínimos (menos de R$ 1.500), ele e a esposa pagam R$ 450 de aluguel e ainda têm muitas despesas com remédios e médicos.

Centenas de caminhões carregados de brita, ferro gusa e carvão circulam dia e noite pela BR-222 e deixam um rastro de poeira. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Centenas de caminhões carregados de brita, ferro gusa e carvão circulam dia e noite pela BR-222 e deixam um rastro de poeira. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

Wellem faz parte de uma minoria que teve condições financeiras de deixar o povoado. Hoje, integra a associação de moradores e está engajado na causa do reassentamento das famílias de Piquiá e na luta por indenização em razão dos impactos ambientais e sociais.

Um levantamento feito pela própria associação local de moradores indicou que a maioria das famílias vive de recursos do Bolsa Família com renda de cerca de R$ 100. De 312 famílias cadastradas na associação, apenas nove tem uma renda de mais de um salário mínimo e meio – ou seja, pouco mais de R$ 1.000.

“Muitos não podem sair de lá porque não têm condições de pagar aluguel fora, mas todo mundo quer”

“Muitos não podem sair de lá porque não têm condições de pagar aluguel fora, mas todo mundo quer sair. Alguns trabalham fazendo bico e serviço braçal que paga uma diária de R$ 30”.

De caminhoneiro à acionista

Wellem nunca imaginou ter a oportunidade de sentar-se ao lado de empresários, executivos e acionistas do mundo da bolsa. Com pouco estudo, ele desconhece como funciona o intrincado mercado de compra e venda de ações.

Mas desde que começou a fazer parte da diretoria da associação de moradores e a se engajar junto a organizações sociais e a missionários da Igreja Católica na causa do reassentamento de Piquiá, Wellem viu que a briga era de gigantes.

Assessorado pela Rede Justiça nos Trilhos, organização que atua na região, ele comprou seis ações da Vale, em 2011, cada uma a um preço de R$ 56. Esta era uma forma de garantir-lhe a possibilidade de participar e votar na reunião de acionistas promovida pelo conselho de administração da Vale todos os anos no mês de abril.

Entrada do entreposto de minério da VALE em Piquiá de Baixo, no distrito industrial de Açailândia. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Entrada do entreposto de minério da VALE em Piquiá de Baixo, no distrito industrial de Açailândia. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

Com o apoio de Danilo Chammas, advogado de direitos humanos que defende os moradores, Wellem seguiu para o Rio de Janeiro numa quinta-feira, 17 de abril de 2014, na véspera da Páscoa. Esta é uma estratégia comum a movimentos sociais para infiltrar-se de forma legal e assegurar o direito de comparecer e de manifestar seu voto na assembleia anual. A reunião no Rio aconteceu às 11h, no edifício Città America, na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade.

“O diálogo com a Vale é sempre muito difícil. Queremos alertar os acionistas sobre o que está acontecendo na nossa região. Vamos cobrar respostas sobre seu dever de contribuir com o processo de reassentamento dessa comunidade”, argumentou Chammas.

Encontro de caciques

Esta foi a segunda vez que Wellem compareceu à Assembleia Geral Ordinária de Acionistas da Vale S.A. A assembleia é a mais importante reunião da empresa que coloca numa mesma sala acionistas e investidores da companhia, viabilizando suas operações.

Caminhões carregados atravessam o pequeno povoado de Piquiá de Baixo. A BR-222 corta o bairro e liga o polo de indústrias de ferro gusa ao entreposto de minério da VALE. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Caminhões carregados atravessam o pequeno povoado de Piquiá de Baixo. A BR-222 corta o bairro e liga o polo de indústrias de ferro gusa ao entreposto de minério da VALE. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

Grandes bancos e fundos de pensão estão entre os investidores que participam. Neste encontro de caciques, são debatidas e tomadas decisões sobre temas como eleições para membros de conselhos, apresentação de relatórios e remunerações de administradores.

Apenas como exemplo, nesta mesma reunião em que Wellem esteve presente, foi votada a proposta para pagamento da primeira parcela de remuneração mínima aos acionistas em 2014, no valor de US$ 2,1 bilhões, conforme a empresa havia anunciado em 30 de janeiro.

“A gente se sente humilhado, pois os acionistas em geral não querem nos ouvir. Não nos deixam falar e fazem descaso. Tudo o que a mesa dos diretores fala, ninguém é contra e aprova tudo”

“A gente se sente humilhado, pois os acionistas em geral não querem nos ouvir. Não nos deixam falar e fazem descaso. Tudo o que a mesa dos diretores fala, ninguém é contra e aprova tudo”, relatou Wellem ao narrar ter se inscrito para falar perante os cerca de 50 participantes.

Ele se apresentou como morador e acionista e disse que a companhia “sugava tudo e mandava para o estrangeiro, ficava no Brasil só a carcaça”. Afirmou que os acionistas não sabiam em que o dinheiro deles estava empregado. “Tentaram parar minha fala, mas os acionistas mostraram interesse e se comoveram. Falei que a rodovia federal cortava o meio da comunidade e, de um lado ficam as siderúrgicas, do outro a ferrovia. Na saída do bairro tem um britador e na entrada o entreposto de minério e ferro gusa da Vale”, contou.

Vista de uma das indústrias de ferro gusa em Piquiá de Baixo. As fábricas estão situadas muito próximo às casas dos moradores. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Vista de uma das indústrias de ferro gusa em Piquiá de Baixo. As fábricas estão situadas muito próximo às casas dos moradores. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

Em sua fala oficial durante a assembleia, a qual ((o))eco teve acesso, Wellem declarou seu voto divergente em relação a aprovação do relatório da administração e das demonstrações financeiras referentes ao exercício social encerrado em 31 de dezembro de 2013, o primeiro item da ordem do dia.

Leia aqui sua declaração:

“A documentação pertinente a esta matéria não faz qualquer menção a minha comunidade, Piquiá de Baixo, situada às margens da Estrada de Ferro Carajás e próxima ao entreposto de minério da Vale.

Venho reivindicar os nossos direitos à vida, moradia, saúde e educação. Há mais de 20 anos estamos obrigados a conviver com a poluição, muitos dos nossos parentes e vizinhos estão adoecendo e morrendo por conta disso. Nós moradores entendemos que a Vale tem responsabilidade por esses problemas.

A Vale fornece minério para as siderúrgicas e depois leva todo o ferro gusa pela ferrovia até São Luís. Estamos lutando por nosso reassentamento em uma área livre da contaminação.

A Vale ainda não contribuiu com nada. Será que a Vale vai esperar que morram mais moradores e familiares nossos para tomar alguma atitude? Será que ainda poderei estar aqui no ano que vem? A Vale não pode esconder de seus acionistas essa história”.

Para o advogado Danilo Chammas, a participação dos moradores nessa assembleia abre uma esperança de que os acionistas da multinacional se convençam da importância que o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva da empresa assumam o reassentamento de Piquiá de Baixo como prioridade.

Para Wellem, o destino de Piquiá é certo: “o futuro da comunidade é sair do mapa”.

Wellem de Melo avista de longe o rio que margeia o povoado. Com um olhar de tristeza, lamenta que a poluição tenha invadido a pequena Piquiá. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco
Wellem de Melo avista de longe o rio que margeia o povoado. Com um olhar de tristeza, lamenta que a poluição tenha invadido a pequena Piquiá. Foto: Fabíola Ortiz/O Eco

 

Esta é a quarta reportagem da série especial Piquiá de Baixo, sobre a vida dos impactados ambientais da produção de ferro gusa no Maranhão.

 

 

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  • Fabíola Ortiz

    Jornalista e historiadora. Nascida no Rio, cobre temas de desenvolvimento sustentável. Radicada na Alemanha.

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