Reportagens

“Flaring”, prática das petroleiras que polui e desperdiça

A queima do gás que sai junto com o petróleo nas plataformas da Bacia de Campos joga fora energia e libera carbono na atmosfera.

Daniel Santini · Fabíola Ortiz ·
19 de fevereiro de 2014 · 10 anos atrás

Plataforma P-51 da Petrobrás. Foto: Divulgação/Agência Petrobras de Notícias

Rio de Janeiro – Era a madrugada de 31 de dezembro de 2013. Uma longa coluna de fumaça a 112 km da costa foi avistada sobre uma área de intensa perfuração de petróleo na Bacia de Campos, litoral norte do estado do Rio de Janeiro, região responsável por 80% da produção nacional de petróleo. A nuvem de fumaça se estendeu por mais de 4 km ao norte da P-51, uma grande plataforma no campo de Marlim Sul.

O episódio foi mais um evento de queima intensa de gás na Bacia de Campos, provavelmente relacionado ao reparo de uma tubulação submersa. A análise é da Skytruth, uma Ong americana, especializada em detectar e denunciar desastres ambientais através de imagens de satélites (leia a avaliação em inglês).

Segundo a ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), em 2013, o Brasil produziu 28,2 bilhões de metros cúbicos (m3) de gás natural, dos quais foram queimados 1,3 bilhão de m3 (4,6% do total). A queima de gás natural, que sai dos poços junto com o petróleo, é um desperdício de energia e libera CO2 (dióxido de carbono) na atmosfera, gás cuja acumulação agrava o efeito estufa.

A prática é conhecida na indústria como flaring. A boa nova é que ela está em queda rápida. A má notícia é que os números são fornecidos pela Petrobras e por outras empresas petroleiras sem serem auditados, e que mesmo em redução, esse mais de 1 bilhão de m3 de gás natural queimado equivale à emissão de cerca de 10 milhões de toneladas de CO2, ou à poluição de 1,7 milhão de carros.

O incêndio noturno na Bacia de Campos em 31/12 foi constatado pelo VIIRS, um sensor do satélite Suomi-NPP, utilizado pela Skytruth. O sensor identificou a presença de uma fonte de combustão no extremo norte da coluna de fumaça a uma temperatura de aproximadamente de 1.526° C, temperatura capaz de amolecer o aço. Ao sul, a fumaça se estendeu por 234 km.

Flaring

A expressão flaring vem de flare, maçaricos permanentemente acesos nas chaminés das petrolíferas. O sistema queima o excesso de gás e reduz o risco de explosões. Funciona como um dos sistemas de segurança das tubulações utilizadas para a passagem de gases e líquidos produzidos durante o processo de refinamento.

Flaring na Bacia de Campos parece mais intenso e contínuo do que na maior parte dos pontos de extração de petróleo em oceanos, incluindo no Golfo do México, no Mar do Norte e no Golfo da Tailândia. Em termos de tamanho e constância, as queimas no Brasil são comparáveis às da costa da Nigéria”, diz David Manthos, da Skytruth. A Nigéria é apontada como país onde o problema é pior. Manthos ressalta que esse tipo de estudo é qualitativo, reflete o número de pontos de fogo e sua intensidade, mas não mede com rigor a temperatura ou o total das emissões.

Veja em mapa interativo pontos de flaring no Brasil
(é necessário plugin do Google Earth para visualizar – caso não tenha, clique aqui para instalar)

clique aqui para baixar os arquivos em formato kmz (Google Earth)

No seu histórico de alertas ambientais, a Skytruth foi uma das primeiras organizações a denunciar a gravidade do desastre da British Petroleum, no Golfo do México, e também soou o apito quando a Chevron tentou minimizar um vazamento na Bacia de Campos. A Ong estuda o flaring ao redor do mundo faz cerca de um ano. De acordo com o seu levantamento, no Brasil, a queima de gás nas plataformas é um problema diário na extração e produção de petróleo em alto mar, mas também acontece em terra. Um dos exemplos é o campo de Urucu, operado pela Petrobras na Amazônia. Outro são as refinarias próximas a centros urbanos.

“O fato de alguns pontos de flaring aparecerem menos intensos não pode confirmar que esses sejam pontos de menor queima, pois o flaring é frequentemente acompanhado por intensa fumaça preta que pode impedir uma visão clara de sua intensidade”, explica Cleveland M. Jones, professor da Faculdade de Geologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), pesquisador do Instituto Nacional de Óleo e Gás e consultor da NXT Energy Solutions. “Mas está claro que se trata de um grande número de plataformas que realizam flaring [no Brasil], e provavelmente em volumes muito superiores aos oficialmente informados”.

 

Pontos de flaring nas plataformas P-18 e P53 da Petrobras em imagem captada em 11 de janeiro de 2014 pela  Skytruth. Tanto os pontos de queima quanto o grande volume de fumaça gerado são visíveis por satélite. Na imagem, é possível identificar ainda manchas de oléo no mar, em especial perto da plataforma P-53, no canto superior à direita. Imagem: Satélite Landsat

 

Danos ambientais

O gás natural é um combustível fóssil encontrado com frequência nos reservatórios subterrâneos, contém metano e outros compostos de hidrocarbonetos. Há um século, o gás gerado a partir da extração de petróleo era considerado um subproduto sem valor da produção de óleo e, por isso, queimado ou ventilado (venting, em inglês) de forma deliberada.

Segundo Adriano Pires, é comum na Bacia de Campos, ao se iniciar a extração de petróleo em um poço, encontrar grande quantidade de gás. “Queimar gás no flare é jogar fora uma energia muito valiosa. Do ponto de vista ambiental, é ruim injetar CO2 na veia do planeta”, diz ele, que é diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, empresa privada de consultoria e marketing especializada no setor. “Hoje, é possível armazená-lo em uma planta de liquefação, levar de navio até um país de consumo e, depois, regaseificá-lo”.

Apenas liberar o gás multiplica o impacto ambiental. O gás ventilado contém metano, um gás do efeito estufa 21 vezes mais potente que o CO2 produzido pela queima. E pior, o venting não pode ser detectado por satélites, pois não emite ondas de calor ou chamas ao ser liberado na atmosfera.

Durante o processo de produção, uma parte do gás é reinjetado no poço para poder retirar mais petróleo e aumentar a produção. O excedente que não for reinjetado pode ser enviado para o mercado consumidor. Mas, para isso, é preciso haver uma infraestrutura de transporte, isto é, por dutos ou navios. Os baixos incentivos para a captura do gás e o alto custo para a instalação de tubulação são fatores que estimulam o flaring. “O Brasil foi um grande queimador de gás porque não tinha uma preocupação ambiental. Já se queimou muito no flare”, disse Pires.

 

A responsabilidade por monitorar as emissões, queima e aproveitamento de gás no Brasil é da Superintendência de Comercialização e Movimentação de Petróleo, seus Derivados e Gás Natural, da Agência Nacional do Petróleo (ANP), que através de sua assessoria de imprensa forneceu as informações sobre produção e aproveitamento do gás utilizadas nessa reportagem (baixe o arquivo em Excel com os dados). Segundo a agência reguladora, nos últimos 10 anos, a produção nacional de gás natural apresentou crescimento médio de 5,6% ao ano e cresceu de 16,7 bilhões (2004) para 28,2 bilhões de m3 (2013). Além da evolução, é possível visualizar onde o gás é produzido e aproveitado. O Rio de Janeiro é hoje o maior estado produtor, com mais de 10 bilhões de m3 produzidos em 2013. Em segundo lugar está o Espírito Santo, responsável por 4,4 bilhões de m3 da produção nacional.

 

Pressões para redução

Segundo estimativas do Banco Mundial – que tem um programa que visa reduzir as emissões de poluentes das queimas de gás natural em instalações petrolíferas –, em 2007, tanto a queima como a liberação de gás foram responsáveis pela emissão de 350 milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano em todo o mundo. Naquele mesmo ano, a Petrobrás queimou cerca de 2 bilhões de m3. A estatal já informava na época que a queima era “inerente ao processo de produção de petróleo” e ocorria para garantir a segurança do sistema ou por eventuais dificuldades operacionais. Calcula-se que o gás queimado, em 2007, representou cerca de 20% do volume de gás importado da Bolívia.

Em 2012, a Parceria pela Redução Global da Queima de Gás do Banco Mundial (leia em inglês o acordo e a página do compromisso) convocou países e empresas a diminuírem a queima de gás natural associada à produção de petróleo em 30% até 2017, o equivalente a retirar 60 milhões de carros de circulação. Entre 2005 e 2011, o programa já teria alcançado uma queda 30 bilhões de m3 (de 172 bilhões para 142 bilhões de m3). Esse corte equivaleu a uma redução de 274 milhões de toneladas de CO2, ou à retirada de 52 milhões de veículos das ruas.

Para continuar essa tendência, os países e empresas precisam promover “mercados viáveis” para o gás e criar infraestruturas adequadas, defendeu o Banco Mundial.

 

Menos desperdício

No ano 2000, foi lançado o Programa de Ajuste para Redução de Queima de Gás na Bacia de Campos (PARQ), também chamado de “Queima Zero”, com metas de aproveitamento de gás natural e redução das queimas. Desde então, conforme é possível visualizar na tabela acima, a produção aumentou, assim como a proporção de gás aproveitado, mas o desperdício permaneceu alto, ficando acima de um bilhão de m3 por ano.

Em 2009, queimou-se 3,4 bilhões de m3, um aumento de 56,6% sobre a queima em 2008. O volume oficial registrado deixou o Brasil em oitavo lugar em queima de gás no mundo.
Em 2010, o total caiu para ainda altos 2,4 bilhões de m3. Em dezembro de 2010, a Petrobras firmou com a ANP um termo de compromisso para reduzir o flaring. A medida de ajuste de conduta teve como objetivo o controle da queima de gás associado nos 20 principais campos produtores da Bacia de Campos. Em 2011, o flaring caiu para cerca de 1,8 bilhões de m3, uma queda de 27% sobre 2010. Em 2012, o número chegou 1,5 bilhões, e em 2013 a 1,3 bilhões. 

Segundo a ANP, o resultado de 2013 é um recorde na redução da queima de gás natural, desde a criação da agência em 1998, com queima de 4,6% do gás natural produzido. Mesmo com a queda, porém, o gás desperdiçado em 2013 poderia ter gerado cerca de 750 megawatts (MW) de energia termelétrica, suficientes para suprir uma cidade com 3 milhões de habitantes.  Agora, a meta da ANP é chegar a 3% em 2015.

Queima zero

No final da década de 80, se queimava entre 15% e 20% da produção, lembrou Adriano Pires ao destacar a queda drástica até 2013. “O ideal é queima zero e a tendência é que a gente caminhe neste sentido”, disse. Na Noruega, a legislação exige zero flaring do produtor de petróleo que tenha gás associado. Na opinião de Pires esta não é uma medida radical: “Acho que o Brasil, no futuro próximo, deveria fazer uma legislação idêntica. Quem quiser produzir petróleo tem que ter um projeto para escoar todo o gás para o mercado consumidor. Quem não zerar a queima, não pode produzir petróleo”.

Fora o termo de compromisso da Petrobras, não há na legislação brasileira nada que obrigue os concessionários de petróleo a enviar o que foi extraído de gás por dutos até a terra firme, explicou a ((o))eco Paulo Bessa, advogado e presidente da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

“Não é uma atividade clandestina, é legal, com regulamentação. Todas as refinarias e instalações têm o flare. Poderia ter uma utilidade, mas precisaria haver uma situação econômica que permitisse esse aproveitamento. A legislação não pode, em tese, obrigar a alguma empresa a ter prejuízo”, disse Bessa.

Gasoduto Cacimbas-Catu. Foto: Divulgação/Agência Petrobras de Notícias

Petrobras

Em nota, a Petrobras informou ao site ((o))eco que o flaring ocorre, em geral, por razões relativas à segurança para evitar que o excesso de gás cause incêndios, intoxicações ou explosões.

Desde o início do Programa de Otimização do Aproveitamento de Gás (POAG), em 2010, a Petrobras obteve “sucessivos recordes de aproveitamento de gás”. Em setembro de 2013, o índice atingiu 94,36%, também em 2013 chegou-se ao recorde anual de 92,6% de média de aproveitamento.

Segundo a empresa, as queimas e perdas de petróleo e gás natural são regulamentadas pela ANP, por meio da Portaria nº 249/2000. “A agência controla diariamente as queimas realizadas na exploração e produção de petróleo, autuando o concessionário quando há infrações”.

“A contagem que a Petrobras realiza, infelizmente, é muito pouco confiável”, diz Cleveland Jones, ao lembrar que não existe uma auditoria independente para os números da petroleira. Ele defende a medição por satélite, a exemplo do que faz a Skytruth. “Quem poderia fazer seria o IBAMA ou a Secretaria de Ambiente do Rio, mas não tem gente suficiente. É um problema ambiental que a fiscalização não dá conta”.

Em relação à extensa nuvem de fumaça avistada no dia 31 de dezembro sobre a P-51, a Petrobras informou que naquele dia o índice de utilização do gás associado foi de 99%, “não tendo sido registrado nenhum incidente envolvendo elevados patamares de queima”.

A empresa confirmou que o ponto de calor registrado pelo satélite que a Skytruth usou refere-se aos testes realizados pela sonda NS-44 no poço MLS-217, entre 29 de dezembro de 2013 e 4 de janeiro de 2014, para avaliação das características do reservatório. “Esses testes são pontuais e devidamente autorizados pelos órgãos competentes”. Os testes no poço que foi aberto são feitos para avaliar a pressão e a qualidade do petróleo. Dependendo da pressão verificada no poço, é preciso queimar para evitar algum risco de explosão.

 

Leia também:

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  • Daniel Santini

    Responsável pela plataforma ((o)) eco Data. Especialista em jornalismo internacional, foi um dos organizadores da expedição c...

  • Fabíola Ortiz

    Jornalista e historiadora. Nascida no Rio, cobre temas de desenvolvimento sustentável. Radicada na Alemanha.

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Comentários 3

  1. Almir diz:

    A questao que quem faz uso do frare ta sim pensando no mbiente pq outros paises usa a ventilacao. E o flare nao polui pois queima em forma de co2 e se o gas for aproveitado e vendido sera queimado da mesma forma emitindo o mesmo co2. Entao a unica questao e o desperdicio da energia gerada na combustao. Mas como nao e tao viavel economicamente o uso deste gas e melhor queimar do que arriscar vazamentos


  2. Diones diz:

    Se compensa explorar e vender os 92% do gás disponível porque explorar os outros 8% é inviável e tem que jogar fora? Parece o objetivo é apenas produzir mais em menos tempo e não aproveitar ao máximo as reservas.


  3. paulo diz:

    O que importa é o disperdício de energia. Esse sim tem que ser minimizado.