Reportagens

O fim do verde

Para facilitar regularização fundiária, projeto de lei que começa a ser votado na Câmara quer liberar municípios para reduzirem matas ciliares e lotearem áreas de preservação.

Gustavo Faleiros ·
1 de novembro de 2007 · 16 anos atrás

A Câmara dos Deputados pode dar uma prova definitiva de que sua disposição para proteger o meio ambiente foi de vez para o espaço. No momento em que a bancada ruralista consegue avanços para enfraquecer a legislação sobre reservas legais, a Comissão Especial de Parcelamento do Solo para Fins Urbanos começa a analisar o Projeto de Lei 3057, que altera todas as regras sobre como os municípios devem lidar com suas áreas verdes. Muda para pior, pois permite loteamentos em Áreas de Preservação Permanente e diminui a vegetação obrigatória nas margens dos rios.

É difícil dizer precisamente quem é o autor do Projeto de Lei 3057. Ele está em nome do Bispo Wanderval, o primeiro deputado a apresentar, em 2000, uma proposta para alterar a lei de parcelamento do solo urbano, que data de 1979. No entanto, nos sete anos que se passaram da proposição inicial, foram agregados mais 20 projetos com fins semelhantes. Além disso, depois de passar na mão de quatro relatores, as emendas já passam das centenas. Só na última legislatura, quando o PL 3057 estava nas mãos do deputado Barbosa Neto, foram 77 emendas. Nesta quarta-feira (31), o projeto começou a tramitar na comissão especial, onde os parlamentares apresentarão as emendas e espera-se que votem nas próximas semanas. Ele segue então ao plenário e depois ao Senado.

O último relatório é do deputado Renato Amary (PSDB-SP) e do jeito que está é um verdadeiro atentado contra a natureza. O PL muda o caráter público das Áreas de Preservação Permanente (APPs). Atualmente, mesmo que estejam em propriedades privadas, as matas ciliares, restingas, vegetação de dunas, encosta de morros são considerados bens do Estado, não podem ser contabilizados como parte de terreno útil de aproveitamento. Na proposição sob apreciação na Câmara, as APPs passam a fazer parte do loteamento privado, o que facilitaria construção de cercas e muros que dificultariam a conectividade das terras com vegetação.

A redução da proteção às áreas verdes urbanas se torna mais grave quando a proposta resolve alterar as regras para as matas ciliares. No artigo 14 do PL, a faixa de proteção nas margens dos rios passa a ser de 15 metros e não mais 30 como previsto no Código Florestal (Lei 4771/65) ou nas resoluções Conama 303 e 369. Não bastasse isso, o texto da lei diz que conforme o Plano Diretor municipal essa faixa pode ser ainda menor. Mais ainda: a proposição sustenta que a medição da largura do rio não será mais feita nos meses de vazante ou cheia, mas sim na seca. Isso significa que rios em planícies inundáveis, como hoje ocorrem em municípios do Pantanal, poderiam simplesmente perder sua proteção.

“Se esta legislação for aprovada nós vamos perder o único instrumento de proteção do meio ambiente urbano”, afirma o ex-deputado e hoje consultor Fábio Feldman, que resolveu entrar na briga contra o PL 3057. Segundo ele, os ataques de deputados às APPs já são história antiga na Câmara. Mas Feldman se surpreende que isso ocorra neste momento em que o tema do aquecimento global tornou mais claros os benefícios ecológicos, e mesmo sociais, que oferecem a preservação de matas nos morros, mangues e margens de rios. “Esse PL é uma loucura”, ressume.

O ministro do Supremo Tribunal de Justiça Antônio Herman Benjamin, que coordena no fórum um comitê de acompanhamento do PL 3057, observa que maior risco é que os dispositivos desta proposta poderão ser aplicados também sobre a zona rural dos municípios. Desta forma, as alterações no Código Florestal feitas em uma lei que se pretende exclusivamente urbana poderá ter grande impacto sobre remanescentes florestais mesmo longe das cidades. “Veja os casos de São Sebastião, Guarujá em São Paulo, onde os prefeituras querem urbanizar as áreas verdes”, exemplifica.

Embora trate das APPs urbanas, o PL 3057 tinha como maior finalidade a regularização fundiária de assentamentos de baixa renda. Tinha, pois em sua última versão, nos artigos 92 e 93 está dito que os dispositivos servirão para outros fins que não os sociais. Ou seja, condomínios de luxo, que ocupam áreas de preservação irregularmente podem sair ganhando com as proposições dos deputados. Além disso, a proposição oferece uma anistia completa para as construções irregulares, sejam elas de interesse social ou não.

Quem decidirá o que poderá ser legalizado, inclusive sobre as APPs ocupadas, serão as prefeituras e câmaras municipais. Para isso, as propostas do PL 3057 indicam que os municípios deverão se tornar mais ativos no licenciamento-urbano-ambiental – como define o próprio PL – de empreendimentos. Essa é na opinião do relator Renato Amary a maior vantagem deste projeto. “Não tratamos mais o município com um ente abstrato, mas como aquele que vive o dia-dia da regularização fundiária”, diz. O PL estabelece, por exemplo, prazos para os órgãos municipais emitirem licenças ambientais para regularização fundiária. Em caso de atraso, os funcionários poderão ser demitidos.

O diretor de Assuntos Fundiários Urbanos do Ministério das Cidades, Celso Carvalho, diz que é contra a anistia indiscriminada para condomínios irregulares nas APPs. Segundo ele, o que foi construído antes de 2002 , quando não havia regulamentação do Conama sobre as áreas a serem preservadas em ambientes urbanos, pode ser anistiado. O que veio depois disso, deve ser regularizo. Carvalho afirma ser possível passar a gestão do licenciamento ambiental ao municípios. Isso facilitaria o planejamento urbano.

Feldman acha que a descentralização dos licenciamentos só deve ocorrer se ficar provado que as prefeituras terão estrutura para averiguar os processos. Isso só ocorreria Delegar simplesmente pode até resolver os problemas fundiários de assentamentos irregulares, mas certamente abrirá uma brecha enorme para que o meio ambiente seja mal-tratado.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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