Reportagens

Tempo quente na planície alagada

Setor de turismo em Corumbá (MS) pressiona presidente do ICMBio para liberar pesca no entorno do Parque Nacional do Pantanal. Chefe da unidade é contra.

Aldem Bourscheit ·
13 de novembro de 2008 · 15 anos atrás


Quem já esteve no Pantanal e assistiu de pertinho a uma briga entre dois jacarés não esquece a cena. Entre mordidas cheias de dentes e golpes com a poderosa cauda, os grandes répteis engrossam a disputa agitando freneticamente os pesados corpos. Parece que a água está fervendo. Pois, agora a temperatura pode subir mesmo na planície alagada, frente às propostas de empresários para abertura da pesca no entorno do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense e, do governo, para ampliação da área protegida federal.

De passagem por terras e águas pantaneiras, onde participou nos últimos dias de curso sobre meio ambiente para policiais militares de todo o Brasil, o presidente do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Rômulo Mello, ouviu os anseios e recebeu uma carta da Associação Corumbaense das Empresas Regionais de Turismo (Acert). A entidade representa quase 50 barcos-hotéis que, só este ano, fizeram circular cerca de 70 mil pessoas pela região. Mello prometeu uma resposta ao grupo em duas semanas.

O principal desejo do empresariado é o fim da restrição à navegação e à pesca em um trecho com cerca de 80 quilômetros do Rio Paraguai na porção sudoeste do parque nacional (imagem ao lado). A exceção é baseada no plano de manejo da área protegida, que limita a pesca comercial e esportiva em pontos de seu entorno.

Segundo o presidente da Acert, GeraldoVeríssimo, ás águas do Rio Paraguai são internacionais (do outro lado da margem está a Bolívia) e o bloqueio tem prejudicado as atividades comerciais da entidade. Além disso, ele aponta que o setor não foi ouvido para definição das normas de manejo do parque, publicadas em 2004. O conselho consultivo da área protegida foi criado em 25 de junho deste ano, com representantes da Acert. “Pescadores, ribeirinhos e empresas de turismo não foram ouvidos para definição do plano de manejo. Ele foi criado apenas com visão de governo e de ambientalistas”, reclama.

O empresário também aponta que os cerca de 200 quilômetros de rio entre Corumbá e o limite da unidade de conservação tem peculiaridades que precisam ser colocadas na balança das decisões governistas. Ele usa como exemplo a “decuada”, quando as cheias anuais no Pantanal carregam águas estagnadas ou poluídas durante a seca para o leito do Paraguai e outros rios. Conforme Veríssimo, isso mata milhares de peixes nas porções mais baixas dos mananciais. “Assim, precisamos navegar até bem perto do parque para encontrar água limpa e peixes procurados pelos turistas”, disse.

Também há a chamada “pesca de galho”. O empresário denuncia que o artefato com centenas de anzóis é cada vez mais usado e prende todo e qualquer peixe. Muitos morrem ou são devorados por piranhas antes de serem retirados da água. Por essas e outras que ele acredita no esgotamento dos recursos pesqueiros regionais em menos de cinco anos se a pesca ilegal não for contida e a cota por turista não for reduzida. “Acreditamos que um exemplar por turista seja o ideal, privilegiando a pesca realmente esportiva”, ressalta.

Hoje, todo pescado turístico que sai a partir de Corumbá deve ser registrado na Polícia Militar Ambiental. Pescadores esportivos ou amadores podem levar 10 quilos, mais um exemplar e mais cinco piranhas. Pescadores profissionais (que precisam da atividade para sobreviver), podem retirar das águas até 400 quilos mensais. O turismo regional ainda é focado na pesca esportiva, mas é consenso que a maioria dos visitantes tem se preocupado cada vez menos em levar pintados, caxaras e dourados para casa, prefere uma foto, um bom prato de comida e boas histórias.

O Eco entrevista Adalberto Eberhard



O veterinário gaúcho Adalberto Sigismundo Eberhard, fundador da organização não-governamental Ecotrópica e um dos mais conceituados ambientalistas do país, concedeu entrevista a O Eco (clique na foto acima para assistir). Enfrentamos mutucas e mosquitos de um belo fim de tarde para ouvir sobre sua chegada no Pantanal, no início da década de 1970, das características únicas da planície alagada, quanto ao descaso do governo, pontuado pelo sucateamento do Programa Pantanal, além de novas ameaças ao bioma, como planos para a instalação de uma centena de pequenas centrais hidrelétricas em rios que abastecem o fantástico ambiente pantaneiro.

Palavra de governo

Trabalhando no Pantanal desde 1976 e especialista em peixes, o chefe do parque federal, José Augusto Ferraz de Lima, é contrário ao fim das restrições no entorno da área protegida e avisa que os impactos sobre a pesca regional são complexos, pois espécies migram por centenas de quilômetros para se reproduzir e têm no entorno do parque um de seus últimos refúgios. “Muitas espécies sobem os rios na cheia e usam meandros e lagoas para procriar. Por isso a quantidade de pescado varia com o nível das águas e com a época do ano”, explica.

Segundo ele, a quantidade e tamanho médio dos peixes capturados vêm caindo ao longo dos anos. Por exemplo, pacus eram pescados com mais de 50 cm na década de 1980 e, hoje, com no máximo 40 cm. Ferraz avalia que impactos ambientais, como a pesca concentrada em determinadas regiões, contribuíram para isso. “Isso se deve a mudanças ambientais ou muita pressão sobre os estoques. Sempre se pescou, mas hoje o acesso aos recursos é facilitado, com melhores equipamentos e técnicas de pesca. O esforço de pesca alterou a concentração de peixes na bacia do alto Paraguai”, disse.

Conforme Ferraz, o plano de manejo já atende às necessidades das empresas e da preservação das porções de Pantanal que engloba. Ele afirma que a navegação é permitida em todos os trechos do Rio Paraguai, desde que não ocorra com anzóis, iscas e outros petrechos de pescaria. “Isso só ocorrerá quando o parque tiver mais estrutura para fiscalização, para evitar a pesca. Por navegar, ninguém foi multado no entorno da área protegida”, disse.

O Ibama não conseguiu discriminar as infrações ocorridas este ano próximas à área protegida, mas informou sobre crimes ambientais registrados em Poconé, município sede da unidade de conservação. Ao todo, mais de R$ 3,5 milhões foram aplicados por ilegalidades contra a fauna e a flora desde o início de 2007.

Conforme Rômulo Mello, presidente do ICMBio, turistas e empreendedores precisam entender que as áreas protegidas, como o parque federal, asseguram que a pesca esportiva aconteça. “A área restrita é muito pequena e tem restrição porque são áreas de importância biológica altíssima, que asseguram o potencial pesqueiro da região”, comentou.

No entanto, avaliou que o cenário é de mudanças. “Sabemos porque estamos conservando tudo isso (o parque), fazemos isso para a sociedade brasileira, para assegurar a longevidade aos próprios empreendimentos comerciais. Mas não somos insensíveis à necessidade de emprego e renda. Temos que sentar e conversar com todos os setores. Em breve faremos concessões para exploração de turismo dentro do parque”, afirmou.

Palavras que parecem contentar Geraldo Veríssimo, da Acert, já que a entidade também quer ser ouvida sobre ampliação ou criação de áreas protegidas no Pantanal. “Não somos contra, apenas queremos participar da discussão para ajudar na definição das normas de manejo. Toda lei pode favorecer ou prejudicar alguns setores. Por isso é fundamental que ele ouça todas as partes envolvidas, assim a chance de se errar é nem menor”, disse.

Na carta entregue ao presidente do ICMBio, o empresariado aponta que “a área de pesca na região do Pantanal já está bastante reduzida, e determinar o aumento de reservas nesta região poderá inviabilizar a atividade representando o fim do turismo de pesca nos Municípios de Corumbá e Ladário, prejudicando consideravelmente a economia e o emprego da região”.

Fermento para o parque

A expansão do parque nacional é gestada nos interiores do Instituto Chico Mendes (ICMBio) há pelo menos dois anos (antes no Ibama), mas o assunto é mantido a sete chaves por alguns servidores do órgão federal, mesmo que na região o assunto esteja na boca de todos. Alguns têm vasculhado áreas públicas e privadas no entorno da área protegida, mas não informam onde e em quanto poderia ganhar a unidade de conservação. Audiências públicas aconteceriam no início de outubro em Corumbá (MS) e Poconé (MT), mas foram suspensas. O ICMBio ainda não definiu novas datas para os debates.

Apesar de inicialmente positiva para o meio ambiente, a proposta governista tem deixado ambientalistas de orelha em pé. Não que sejam contrários à medida, mas porque se sentem alijados do debate e temem que reservas particulares sejam simplesmente engolidas pelo parque, hoje com 135 mil hectares (quase o tamanho da cidade de São Paulo). Entre eles, o veterinário e fundador da organização não-governamental Ecotrópica, Adalberto Eberhard (confira entrevista abaixo).

Uma vida no Pantanal

Em nossa passagem pela planície alagada, cruzamos em Porto São Pedro com o fazendeiro Armando Lacerda (foto), cuja família habita a região há quase 80 anos. Como a maioria dos chegados ao bioma, viram o futuro no passo lento da boiada. Em 1974, cerca de 16 mil cabeças de gabo se fartavam nas pastagens, quando cheias bíblicas de abateram sobre a região. Dali em diante, os negócios declinaram. A pecuária resistiu até 1997. Nos últimos anos, Armando vem reativando as empreitadas familiares em parte dos 33 mil hectares da fazenda. Está criando alguns bois, para “controlar o capim” e alimentar bocas caseiras e de turistas de vários países. Seu público é formado principalmente por observadores de pássaros e pescadores esportivos. Com seu jeitão pantaneiro, conta que vive às turras com invasores. “Passo o ano inteiro brigando com pescador ilegal”, reclama. Também critica o espaço ocupado pelo tucunaré, peixe exótico e severo devorador de filhotes de espécies nativas. Apesar de tudo, vê o futuro pantaneiro com esperança, das barrancas do Rio Paraguai. “Isso aqui é a minha vida”, disse. Para conhecer a bela “paragem” de Armando, basta ligar para (67) 9648-9272.

“Proprietários privados moveram mundos e fundos para salvar porções do Pantanal, enquanto outras áreas não têm qualquer proteção. Mas se o jogo for transparente e for melhor para a conservação, até podemos discutir a integração dessas áreas (particulares) ao parque”, disse.

A Ecotrópica é proprietária das reservas particulares Acurizal, Penha e Dorochê, que somam quase 53 mil hectares próximos ao parque nacional. Junto com a reserva particular Rumo ao Oeste, Parque Estadual Guirá, Terra Indígena Guató e parque federal, formam um conjunto (mapa acima) de áreas protegidas com mais de 300 mil hectares. Na região também há a Fazenda Santa Teresa, ligada ao Banco Itaú, que poderá transformar 60 mil hectares em reserva particular.

O desenho original do parque nacional, criado em 1981, previa sua sede na belíssima e antiga fazenda de gado de Acurizal, que antes pertencia a Horácio Coimbra, dono do Café Pelé. Os planos envolviam proteger terras altas e inundáveis e a Serra do Amolar, englobando também as fazendas Doroché, Penha e Boabaide. Como à época o governo não levantou dinheiro para as desapropriações, a atual sede (imagem no topo) foi construída sobre aterro na margem do Rio Cuiabá.

Para o presidente do ICMBio, criação e ampliação de áreas protegidas é um processo natural, onde o governo estimula a implementação de reservas particulares, vistas como parceiras das unidades federais. “Não há razão para se criar um parque sobre uma unidade existente. Não seremos entrave e nem iremos nos sobrepor, desde que elas estejam solidificadas”, comentou. “Se a conservação está assegurada pela iniciativa privada, para nós está ótimo”, disse.  

Conforme José Augusto Ferraz, chefe do parque nacional, há várias propostas para se ampliar a área protegida, mas ele defende o previsto no plano de manejo: a incorporação do chamado Morro Caracará, porções às margens do Rio São Lourenço (Cuiabá) e ao norte da unidade de conservação, sem interferir em reservas particulares.

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