Reportagens

História sem fim

Incra diz que até março informa onde estão os assentamentos que plantou no ano passado na região da BR-163. Pelo menos já disse que são 49. Mas o número aumentará em 2007.

Manoel Francisco Brito ·
23 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

No site do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), há um arquivo em pdf que pode ser descarregado por qualquer pessoa. Basta que ela tenha acesso de banda larga à internet ou então uma paciência de chinês. Ele é pesado. Tem 5.2 megabites. Mas levando-se em conta o seu conteúdo, o volume é justificável. Trata-se de um mapa que se propõe a retratar tudo o que existe dentro da proposta dos limites para o futuro Distrito Florestal da BR-163, uma área de 19 milhões de hectares que cobre praticamente todo o Sudoeste do Pará, de Castelo dos Sonhos, no Sul, até Santarém, ao Norte. Sua minúcia é impressionante – até as estradas clandestinas e as microbacias de rios da região estão assinaladas – porém incompleta.

Falta, para terminá-lo, informação que a burocracia ambiental do governo federal tenta obter desde do ano passado, quando o presidente Lula assinou o decreto de criação do Distrito Florestal da BR-163. Quantos são e onde estão os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS’s), uma nova categoria de assentamentos para a Amazônia, que o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou ao longo do eixo da rodovia? Suspeitava-se que eram 15. Mas só em janeiro deste ano o mistério começou a ser desvendado. O Incra contou que tinha criado 39 PDS’s na área da BR-163, 24 deles nas últimas três semanas de 2006.

“São 49”, corrigiu o coordenador de programas do órgão, Raimundo Araújo Lima, ao repórter de O Eco na sexta-feira antes do carnaval. Quanto às localizações, Lima pediu mais 20 dias para repassar as informações. Portanto, na primeira semana de março, o mapa do Distrito Florestal da BR-163 possa ser talvez finalizado. Lima justifica a demora apontando para uma incompatibilidade entre o sistema da superintendência do Incra em Santarém, responsável direto pela criação dos novos PDS’s, e o da sede do órgão em Brasília.

Pode ser, mas é difícil de acreditar. Afinal, localização tem a ver com coordenadas geográficas e descrição de paisagens, coisas que independem de sistemas. Lima reage à lembrança dizendo primeiro que o Incra não tem obrigação de repassar nenhuma informação. Por incrível que pareça, não se trata de uma bravata. É a mais pura verdade. E essa é uma das principais críticas que se faz ao órgão na medida em que ele avança com seu programa de implantar assentamentos no último grande ativo florestal do país, a Amazônia.

Sobreposições

O processo todo é muito pouco transparente. Para criar um PDS, por exemplo, os burocratas do Incra não precisam dar qualquer satisfação e tampouco fazer audiências públicas, como a lei exige do Ibama na criação de Unidades de Conservação. Basta baixar uma portaria. No caso dos PDS’s da BR-163, Lima insiste que as portarias têm os mapas com suas coordenadas geográficas e que elas foram repassadas aos técnicos do SFB, Ibama e Ministério do Meio Ambiente (MMA). Mas logo se corrige e diz que as informações “estão sendo providenciadas”, coisa que, na sua explicação, não significa que o Incra não saiba exatamente onde estão esses PDS’s.

“Nós sabemos”, continua. “Entenda. Santarém é uma superintedência nova, que recebeu muita coisa que estava antes em Belém. Não é uma migração fácil e isso atrasa a produção dessas informações”. O problema, portanto, parece ser de organização. As informações podem até existir. Mas só agora, sob pressão, é que o Incra tenta descobrir onde elas estão. E mesmo que os dados finalmente apareçam, isso não garante necessariamente o fim dos problemas que o Serviço Florestal Brasileiro enfrentará para criar o Distrito Florestal da BR-163.

O conceito de Distrito Florestal veio ao mundo como parte do pacote de respostas governamentais ao assassinato da freira Dorothy Stang, no início de 2005. Ele propõe que determinadas áreas com vocação para a atividade florestal sejam alvo de ações coordenadas de vários ministérios para fomentar a exploração de baixo impacto e ampliar a cadeia de valor de sua produção. Parte fundamental desta política é a regularização da ocupação fundiária e o licenciamento ambiental de propriedades rurais. Nos dois quesitos, o Incra, historicamente, criou mais confusões do que soluções. As informações sobre o número exato de PDS’s criados nas bandas da BR-163, ajudarão a ordenar o uso da terra. Mas apenas parcialmente.

Boa parte desses novos assentamentos está em áreas já ocupadas, muitas há mais de duas décadas por gente que o Incra, ao longo de todo esse tempo, não apenas não se mexeu para tirá-las de lá, como deu sinais de que iria regularizar sua situação. A sobreposição também pode se reproduzir entre assentamentos e Unidades de Conservação. O risco não é apenas teórico. Na região da BR-163, ela já aconteceu. O órgão criou dois assentamentos que invadiam áreas de Florestas Nacionais, a de Trairão e a de Altamira. O Ibama chamou a atenção do Incra para o assunto e os limites dos assentamentos foram redesenhados. Além desse passivo fundiário, o órgão carrega nas costa um imenso passivo ambiental.

‘Diabinho’

O Incra nunca se preocupou em fazer o licenciamento ambiental de seus assentamentos e acabou exportando essa tradição para dentro da floresta amazônica. No Ibama, reclama-se que o Incra assenta gente em áreas ecologicamente sensíveis através de portarias que raramente contêm memorial descritivo dos terrenos escolhidos. A notória falta de apoio efetivo aos assentados e de controle sobre o que fazem dentro dos lotes de terra só agrava a situação. Não raro, a ausência de suporte condena os ex-sem-terra a desmatar para sobreviver.

Lima reconhece que do ponto de vista ambiental o Incra não merece mesmo elogios. Diz que isso é fruto não só da velha mentalidade do órgão, mas também dos assentados. “Tem sempre aquele diabinho falando nos ouvidos das pessoas para cortar a madeira porque é fonte extra de renda”, admite. “Infelizmente, não se muda isso de uma hora para outra”. Lima conta que o órgão destinou no ano passado 6 milhões de reais para reduzir passivos ambientais de assentamentos no município de Apuí, no Amazonas. E revela que este ano essa verba será multiplicada por cinco e usada para financiar convênios com estados da Amazônia para o mesmo fim.

A lentidão do processo de mudança de mentalidades, no entanto, não é vista por Lima como razão para refrear o ímpeto de criação de assentamentos na Amazônia. “Defendemos a exploração sustentável dos recursos naturais da região, mas de tal modo que a riqueza gerada não se concentre apenas nas mãos de empresas e grileiros”, diz. “O Incra vai ser um parceiro ambiental, mas sem descuidar da questão social”. Ainda sem informar a localização dos PDS’s criados em 2006, Lima conta que eles se espalham por 2 milhões de hectares na zona de influência da BR-163 e beneficiaram 33 mil e 700 famílias.

Ele explica que as demandas por lotes de terra chegam ao Incra através da Federação dos Agricultores do Pará, responsável por compilar a lista de assentados potenciais no Oeste do estado. Sua burocracia apenas a convalida e sai criando assentamentos para cumprir a meta do ano. Para 2007, a demanda está em 14 mil 533 famílias. Quantos PDS’s isso vai dar, o órgão ainda não sabe. Pobres dos cartógrafos que servem ao Ministério do Meio Ambiente. Ao que tudo indica, parecem condenados a redesenhar o seu mapa do Distrito Florestal da BR-163 indefinidamente.

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