Reportagens

Silêncio na mata

Redação ((o))eco ·
13 de março de 2008 · 16 anos atrás

Para a rotina dos ornitólogos, o dia nesta quarta-feira não começou tão cedo. As 6h50 da manhã, Dante Buzzetti, pesquisador responsável pelo levantamento de aves para o plano de manejo no Parque Nacional do Juruena, iniciou a investigação de uma trilha bem próxima à última área de estudo da expedição científica. Na verdade, a área fica a aproximadamente cinco quilômetros para fora do parque e o caminho tem sido há anos usado pela população local como acesso a áreas de garimpo. Foi do dia para a noite que Dante elegeu esta trilha como prioridade. Horas antes, Julio Dalponte, pesquisador titular de mamíferos, avisou ao colega que ali havia áreas de taboca (ricas em bambuzais), onde é imensa a possibilidade de encontrar espécies raras e exclusivas desse ambiente. Dito e feito. Tanto que Dante só retornou ao barco apoio da expedição depois do anoitecer. Tal como nos outros 25 caminhos percorridos no parque, o ornitólogo analisou cada pedacinho da trilha para escutar a vocalização das aves com paciência e cuidado impressionantes. Nesta quarta, nos trechos em que a mata ficava mais aberta e apareciam os bambuzais, sua dedicação era ainda maior. Antes mesmo de completar a primeira hora de estudos, já tinha registrado cinco aves exclusivas para aquele ambiente, ainda não encontradas em nenhuma outra área do Juruena. Nesse ritmo, lento e absolutamente silencioso, o pesquisador venceu a manhã, a tarde e invadiu a noite, em dezenas de entradas e saídas da trilha a cada sinal de ave diferente. Até agora, os trechos percorridos pela segunda expedição ao Parque Nacional do Juruena renderam ao ornitólogo o registro de mais de 400 espécies de aves, algumas muito raras na região, como o anambé-preto (Cephalopterus ornatus), o falcão-de-peito-laranja (Falco deiroleucus) (foto ao lado), o papagaio-de-cabeça-laranja (Pionopsitta aurantiocephala) e o ferreirinho-picaça (Poecilotriccus capitalis). Ironicamente, esta última apareceu no entorno da unidade de conservação, e só havia sido encontrada antes no Peru e numa área de taboca ligeiramente diferente em Alta Floresta (MT). É também dele o registro de pelo menos uma espécie nova para a Ciência no parque. O desempenho, considerado o esperado para a região, podia ter sido ainda melhor. “Esta não é uma época muito boa para registrar aves. Muitas estão com filhotes pequenos e não costumam vocalizar tanto, como no período de reprodução, na seca”, explica o ornitólogo. Apesar disso, foi possível encontrar bandos mistos no dossel da floresta e no sub-bosque. “Esses bandos são difíceis de ver, a sorte é que os pássaros costumam ser bem coloridos. Só se consegue enxergar em áreas de clareira e com binóculos bons”, diz Dante. Audição afiada Quem não tem um equipamento tão bom, nem o privilégio de ver pessoalmente essas espécies, infelizmente também não pode contar com muitos registros fotográficos. Entretanto, a grande maioria das aves está guardada nos arquivos de áudio do ornitólogo, que só tem 30% da audição no ouvido direito. Apesar disso, tem uma aptidão tão elevada para reconhecimento dos sons que o permite identificar, por exemplo, uma espécie de beija-flor que passou voando pelas suas costas. “Esta aí, o rabo-branco-pigmeu (Phaethornis ruber), bate as asas e faz um barulhinho como se fosse de besouro”, garante o ornitólogo, que se aproveita de seu dom para animar as noites na expedição tocando violão no escuro. “Eu confio mais no que escuto, e os animais também”, diz Dante, que no próprio parque assistiu a prova desta preferência. Ao observar um casal de arapaçus-rabudos (Deconychura longicauda) que se deslocavam juntos, presenciou um ataque. “Quando eu liguei o play-back, o macho começou a avançar sobre a fêmea. Apesar de estar vendo a fêmea, ele entendeu que o som poderia vir de um outro macho que invadira seu território, e assim passou a persegui-la”, lembra o ornitólogo, que só faz uso deste recurso em casos extremos, como na área da taboca, quando queria se certificar de que estava perto de algumas espécies realmente muito raras. As gravações de Dante, que somam mais de 600 horas de fitas e abrangem cerca de 1200 espécies de aves, estão entre os três maiores arquivos sonoros de avifauna do país. Em campo, cada vez que grava mais alguma vocalização, narra em seu microfone (hiper sensível, capaz de captar o som das aves a uma distancia de 200 metros) em que situação sentiu a presença da ave e procura preencher, em uma ficha, dados completos sobre sua localização e horários. Trabalho qualitativo Para elaboração do plano de manejo, o ornitólogo prefere trabalhar mais qualitativa do que quantitativamente. “É muito mais relevante saber sobre a ocorrência de uma espécie num determinado local do que ficar tentando estimar sua abundância, o que é muito complicado em ambientes de floresta”, explica. Para ele, é mais útil para os gestores da unidade de conservação saberem quais são as espécies que estão associadas a cada tipo de vegetação. A recomendação vem de quem praticamente se especializou em realizar levantamentos para planos de manejo. São de Dante as informações de avifauna para os parques nacionais da Serra da Canastra, Cavernas do Peruaçu (MG), Aparados da Serra (RS), parques estaduais do Cantão (TO), da Serra do Mar (SP), Cristalino (MT), Chandless (AC), reservas biológicas do Jaru (RO), das Nascentes da Serra do Cachimbo (PA), além de trabalhos em outros estados. No Parque Nacional do Juruena, no entanto, o desafio de estudar a avifauna tem sido maior. “É a maior unidade de conservação em que eu já trabalhei e também a mais bem conservada”, diz Dante. A abrangência de certo modo limitada da expedição científica deu o tom da importância de se estudar mais a região, que guarda ambientes muito específicos, como áreas de campinarana e as tabocas, embora a única visitada até agora tenha sido fora do parque. Por isso, a todo o momento os pesquisadores ficam na expectativa de uma e outra novidade. E já viram que é só uma questão de tempo. Uma das últimas foi revelada nesta semana no limite norte do Juruena: um ninho de andorinhão-estofador (Panyptila cayennensis), construído bem no teto de uma cachoeira recém descoberta dentro do parque.

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