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Estranho destino

Macaca de espécie ameaçada de extinção na Amazônia é capturada depois de viver um ano em fuga pelos bairros de Manaus. Seu novo lar será no distante Rio Grande do Sul.

Vandré Fonseca ·
24 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

Uma macaca-aranha da espécie Ateles marginatus, batizada de Cida pela equipe do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), perdeu a estranha liberdade de perambular por Manaus. Em 2003, ela foi apreendida na casa do primatólogo Mar Von Roosmalen, que não tinha licença para estar com o animal e, ao que tudo indica, o capturou na selva. De lá, foi transferida para uma gaiola de nove metros de altura, dez de comprimento e cinco de largura no Inpa. Como não foi feita para viver assim, depois de algumas tentativas frustradas, no ano passado, fugiu. E viveu de casa em casa, no maior centro urbano da Amazônia, até o último 13 de outubro. 

A macaca de sete quilos e quase um metro quando fica em pé, era sempre vista em telhados e quintais de bairros distantes do Inpa, na direção da Ponta Negra, justamente onde ficava a casa de Marc Von Roosmalen. Uma vez, no bairro Dom Pedro, Zona Centro Oeste de Manaus, foi atacada a pedradas por um grupo de meninos. “Um senhor que passeava com o filho ligou avisando”, conta o veterinário Anselmo d’Affonseca, responsável por cuidar dos animais do instituto.

Moleques ávidos para treinar suas pontarias em alvos móveis são uma ameaça comum aos animais que vivem dentro da área urbana da cidade. “Um outro macaco nosso que fugiu apareceu com a pata quebrada, provavelmente por causa de pedradas de moleques”, conta d’Affonseca.

Em outra ocasião, Cida apareceu em uma casa perto de uma das principais avenidas de Manaus, Djalma Batista. O veterinário foi novamente chamado, mas não conseguiu recapturá-la. Só impediu que fosse atropelada. “Eu percebi que ela ia tentar atravessar a avenida, mas consegui espantá-la para o outro lado”, lembra.

Em fevereiro, apareceu no zoológico do Hotel Tropical. Ganhou o nome de Xuxa e tornou-se uma atração entre os hóspedes, chegando a passear agarrada às costas de alguns mais íntimos. Parecia fácil recapturá-la, mas não foi. “Ela é muito esperta. A gente tentou pegá-la com uma armadilha, mas ela percebeu e fugiu”, conta um dos tratadores do zoológico. “Ela já conhecia o pessoal do Ibama, Secretaria Municipal de Meio Ambiente e do Inpa, então quando a gente chegava perto, ela fugia”, diz d’Affonseca.

A facilidade com que ela se metia em encrencas foi um dos principais receios de quem acompanhou as andanças desta macaca-aranha por Manaus. Cida tinha mania de invadir cozinhas atrás de comida, por exemplo. “Recebemos reclamações de moradores e tínhamos medo que alguém a envenenasse”, conta o veterinário.

“Alguns moradores ofereciam frutas para ela, outros fechavam as casas com medo. Tivemos vizinhos que ligaram para o Ibama reclamando de bagunça na cozinha”, confirma o educador Dálio Zippin, que passa uma temporada em Manaus, na casa da irmã Daniele, onde Cida apareceu dia 9 de outubro. Durante alguns dias, a família conviveu com a macaca. Ela aparecia todos os dias, entre 5h30 e 6 horas da manhã. Tomava leite, comia ovos, frutas e verduras. “Ela gostava de guapê, uma frutinha escura que aqui em Manaus chamam de jamelão”, conta Dálio.

A macaca visitou a casa durante toda a semana na maior intimidade. Subia na rede, se balançava, subia nas costas dos moradores. Uma experiência inédita para Dálio que trabalha com educação ambiental. “Poder pegar um bicho deste no colo, fazer carinho. Foi maravilhoso”, descreve Dálio. Mas os moradores perceberam que Cida não poderia ficar por ali. “Concluímos que se ela ficasse solta, as chances de se machucar ou morrer seriam maiores”, conta o professor.

A ajuda da nova família adotiva de Cida foi fundamental para o Inpa recapturá-la. Por orientação de Anselmo d’Affonseca, eles colocaram lexotan no seu leite. Não foi o suficiente para fazê-la dormir, mas a deixou atordoada, o que não a impediu de fugir assim que viu o veterinário.

Mais tarde, quando Cida procurou o colo de Dálio, ele aplicou uma injeção na coxa dela, com um anestésico. Ela não gostou, escapou. Meio zonza, subiu em uma mangueira de dez metros de altura, no quintal de um vizinho. “Ela abaixou o rabo, e quando macaco abaixa o rabo é complicado. Aí, eu resolvi subir na árvore para segurá-la”, conta o educador. Dali, ela saiu carregada para acordar num cativeiro. Único lugar onde ela teoricamente pode viver em segurança.

“Os primatas têm um repertório de comportamento. Eles precisam aprender o comportamento para sobreviver e ela não tem esta bagagem”, explica d’Affonseca o motivo pelo qual ela não voltará para a floresta. . “O problema é esta mania de pegar bicho silvestre para animal de estimação. Todo mundo se comove, mas tem o problema do tráfico, da mortalidade dos animais. E depois, não é só pegar dar um beijo na bochecha e soltar”, protesta o veterinário.

Cida não vai viver nem na floresta, nem na Amazônia. Vai para um abrigo no Rio Grande do Sul onde vai ter um ambiente aquecido para suportar o frio do inverno gaúcho. Vai ter também espaço para exercícios e alimentação balanceada. “O criadouro é especializado em primatas”, conta a bióloga Cibele Indrusiak, analista ambiental do Ibama em Porto Alegre. “Quanto ao bem-estar, ela vai estar bem”, garante.

A espécie Ateles marginatus foi descrita pela primeira vez em 1809 e existe na região cercada pelos rios Amazonas, Madeira e Tapajós. Ela é uma das onze espécies de primatas ameaçadas de extinção na floresta Amazônica.

* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.

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