Reportagens

Beleza abandonada

O Parque Estadual de Terra Ronca, encravado em pleno Cerrado goiano, é repleto de lindas cavernas. A Agência Ambiental do estado, entretanto, não parece preocupada em cuidar.

Gustavo Faleiros ·
29 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

O Cerrado seria suficiente para contentar: sua vegetação florida (sucupira, ipê, cajuzinho) e as veredas largas com palmas de buriti brilhando. A mata estende-se por todas as direções e domina a Serra Geral um tabuleiro de centenas de quilômetros que divide os estados de Góias, Bahia e Minas Gerais. Onde o verde é mais intenso correm os rios caudalosos da região, que ora ou outra transformam-se em corredeiras perfeitas para o banho. A beleza reinante todavia não se esgota, na verdade há muito mais debaixo dos nossos pés. Cavernas, muitas delas, um universo de formas para ser admirado.

Estamos em Terra Ronca, um parque estadual no nordeste goiano que ganha cada vez mais notoriedade entre aqueles que gostam de uma boa caminhada. Está a 400 quilômetros de Brasília e para chegar até lá é preciso encarar a pista simples da BR-020 com seus incontáveis caminhões e, depois, mais 50 quilômetros de terra. Vale a pena. As cavernas abertas à visitação impressionam pela grandiosidade. O nome do parque provém da mais visitada das cavernas, onde o córrego da Lapa, na época de chuva, ecoa ao adentrar um portal de pedra com 100 metros de altura.

Embora as estimativas sobre o número de cavernas chegue à casa das centenas, apenas cinco estão de fato mapeadas para serem visitadas. A Terra Ronca, a mais procurada, é bastante acessível pois sua entrada está próxima à estrada de terra que corta o parque. Para aqueles que estão acostumados a visitar cavernas com passagens apertadas para alcançar salões adornados por espeleotemas delicados, Terra Ronca é um choque. Por quase todo o trajeto, o teto permanece a 30 metros acima das nossas cabeças, e nele se vêem gigantescas estalactites (as formações de cima para baixo). É realmente como entrar na boca de um monstro com dentes enormes.

Terra Ronca é dividida em duas etapas, I e II. Acredita-se que há milhões de anos a caverna era contínua, mas em certo momento uma parte desabou, separando essas duas partes. Como ela é inteira atravessada por um curso d’ água, o córrego da Lapa, a parte que ficou em céu aberto é ideal para um banho. A maioria das pessoas se satisfaz com o passeio até aí, com um quilômetro de percurso. Mas é possível continuar caminhando pela parte II por mais três quilômetros e meio. Depois, é só voltar pela mesma trilha subterrânea.

Em termos de grandiosidade, a caverna São Bernardo não sai perdendo para a Terra Ronca. Assim como a vedete do parque, ela tem teto bem alto. Boa parte da caminhada é feita dentro do rio que corta a caverna. Para se chegar até o leito, há uma descida íngreme de 100 metros a partir do portal da caverna. Mesmo assim, não é preciso excelente forma física para passar por esse trecho. Aliás, na boca da São Bernardo vivem araras vermelha-grande (Ara chloroptera) que são facilmente notadas graças à algazarra que fazem com a chegada dos visitantes.

Dentro da caverna São Bernardo há muito para se ver em uma caminhada de cerca de quatro quilômetros, considerando a ida e a volta. Vale destacar um salão repleto de colunas (junção de estalactites com estagmites), uma enorme cortina avermelhada (superfície moldada por escorrimentos) e o não menos famoso chuveirinho, um conjunto de estalactites bem delicadas.

Mas para ver formações rebuscadas, a caverna mais indicada é a Angélica. O percurso é tranquilo, três quilômetros, todo seco. Ali uma das formações mais interessantes são os travertinos, verdadeiras piscinas de pedras que se formam ao longo dos anos em torno de poças d’água. Outro ponto alto da visita são os espelhos, onde um pequeno lago de água cristalina reflete perfeitamente o teto da caverna. È também nesta caverna que se pode ver com mais facilidade algumas espécies típicas como o bagre branco, um peixe de apenas alguns centímetros, e o amplipígeo, um aracnídeo comum em cavernas.

Problemas evidentes

Apesar de todas as belezas de Terra Ronca, quem visita suas cavernas não deixa de notar que a degradação está em curso. Muitos dos passeios são traçados em cima de espeleotemas ainda em formação. Não é raro ver estalactites e colunas quebradas. Um dos guias locais, que prefere não se identificar, contou que já entrou em casas de moradores da região e viu pedaços de caverna sendo usados como aparadores de porta e até mesa. Por isso, não supreende que as duas outras cavernas mapeadas, São Mateus e São Vicente, estejam fechadas para visitação por determinação do Ministério Público Federal.

O Parque Estadual de Terra Ronca quase não tem fiscalização. A área protegida de 57 mil hectares foi criada há 17 anos e possui apenas dois funcionários da Agência Ambiental de Góias. Na entrada do parque há um grande tabuleiro indicando que se trata de uma unidade de conservação, mas ingressos não são cobrados. Até mesmo um dos únicos avisos oficiais é desrepeitado. Em frente à caverna Terra Ronca, uma placa informa que o rapel é proibido. Assim mesmo, é comum ver gente pendurada em cordas sem ser incomodado. Segundo os guias, blocos de pedra estavam se desprendendo do portal, por isso, a proibição.

O fato é que Terra Ronca é um parque de papel. Lá dentro ainda vivem algumas centenas de pessoas em 190 propriedades, todas esperando as indenizações do governo estadual. A maioria delas vive no vilarejo São João, planta apenas para subsistência. Já nas fazendas espalhadas por dentro do parque, os bois pastam sem problema algum.

Contudo, o abandono pode estar com os dias contatos. A falta de investimentos no parque já se tornou tema de investigação do Ministério Público Federal (MPF), que move uma Ação Civil Pública para passar a guarda da área protegida para o Ibama. Sob esta ameaça o governo goiano resolveu se mexer. Vai assinar em breve um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o próprio MPF no qual serão estipulados prazos para Agência Ambiental pagar indenizações e fazer o plano de manejo do parque, desta forma mantendo sua gestão sobre a unidade.

Entre os dias 11 e 15 de setembro, técnicos da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Meio Ambiente do MPF estiveram em Terra Ronca para preparar um relatório que subsidiará o texto do TAC. A degradação das cavernas será um dos pontos principais do documento e, para isso, a agência goiana terá de elaborar um plano de manejo específico para o uso do patrimônio espeleológico. Mas a prioridade será o pagamento das indenizações, conta a Procuradora da República do MPF em Goiás, Viviane Vieira de Araújo. “O governo está mostrando disposto a colaborar, mas se houver descumprimento das medidas haverá um multa diária de 500 reais”, alerta.

No fim dos anos 90, algumas indenizações foram pagas diretamente pela estatal geradora de energia Furnas, com recursos da compensação ambiental obtidos na construção do reservatório de Serra da Mesa, no Rio Tocantins. Agora, a responsabilidade está nas mãos do governo goiano, que decidiu concentrar a gestão do dinheiro da compensação e promete 4,5 milhões de reais para realizar as desapropriações em Terra Ronca. No entanto, o problema para iniciar os pagamentos seria a falta de documentos dos moradores do parque. “Estamos ajudando cada morador a identificar e encontrar os papéis que provem a posse da propriedade”, garante o diretor de Ecossistema de Goiás, Paulo D´Ávila Ferreira. Segundo ele, as determinações do TAC deverão ser cumpridas num prazo médio de um ano e meio, e o número de funcionários, de dois, será elevado a seis.

Enquanto Terra Ronca vive no limbo, o turismo não deslancha. Renato Tolosa, dono da pousada São Mateus e um dos mais ativos guias do parque, conta que é difícil envolver os moradores na atividade turística em função do baixo número de visitantes. Ao mesmo tempo, não há qualquer incentivo para o treinamento de guias locais. “Eu tento incentivar o pessoal por aqui, mas é difícil”, lamenta. Valdir, um dos poucos nativos de São João que se arriscam a guiar resume o problema de Terra Ronca. “Eles [da agência goiana] dizem que vão mudar, mas sabe como é: sempre falam, nunca fazem”.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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