Reportagens

Freio no consumo

Estudo do WWF propõe alternativas ao afã construtor do setor elétrico. Gerenciar a demanda e cuidar bem das hidrelétricas já existentes podem ser luz no fim do túnel.

Gustavo Faleiros ·
14 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Se o governo dissesse que deixaria de construir em plena Floresta Amazônica a usina hidrelétrica de Belo Monte, obra gigantesca prevista para ser concluída em 2013 e gerar 5,5 mil megawatts por hora (MW/h), os ambientalistas ficariam imensamente aliviados. Agora imagine o que seria evitar o impacto da construção de 14 usinas do porte de Belo Monte. Pois é com uma idéia como essa que o World Wildelife Fund (WWF-Brasil) está colocando na mesa uma proposta pela qual seria possível reduzir em 38% o consumo total de energia do país até 2020 e, portanto, prescindir de novas barragens e termelétricas.

Através de um estudo encomendado a acadêmicos da Unicamp e apresentado nesta quinta à imprensa e a membros do governo federal, a ONG defende que é mais barato investir em eficiência energética do que em novas fontes de geração elétrica. A economia estimada com o corte no consumo seria de 33 milhões de reais. Segundo as conclusões do relatório, isso significaria que o Brasil poderia ter em 2020, apenas com medidas de eficiência e sem interferir nos níveis de crescimento econômico, uma potência instalada de 126 GW ao invés de 200 GW, como defende o setor elétrico. Atualmente a potência é de 95 GW.

“O que importa não é quantidade de megawatts que teremos, mas sim o serviço que cada megawatt estará prestando”, explica o coordenador do estudo, Gilberto Jannuzzi, da Engenharia Mecânica da Unicamp. Por esta razão, a maior contribuição para a economia de energia viria do gerenciamento da demanda no país. Em um cenário desenhado a partir da tendência atual de crescimento, o país estará, daqui a 15 anos, consumindo 794 terawatts por hora (TW/h) de eletricidade. Porém se a demanda for manejada, seria possível economizar 175 TW/h.

As formas mais propícias para se cortar o consumo seriam a introdução de motores industriais mais eficientes, a troca da iluminação incadescente por lâmpadas fluorescentes de 20W, o uso de aquecedores solares de água em pelo menos um terço das residências e a melhora de equipamentos elétricos, principalmente geladeira e ar-condicionado. Os custos envolvidos nestas operação de eficiência não seriam significativos, diz o relatório. Enquanto a tarifa média de energia elétrica está em 197, 35 reais o MW/h, o estudo estima que a troca de motores e equipamentos elétricos não custaria mais do que 130 reais o MW/h. Ao todo, diz a WWF, um programa de eficiência energética não precisa mais do que 19,6 milhões de reais para ser bem sucedido.

Reação

Maurício Tomalsquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão de planejamento do Ministério de Minas e Energia, classifiou o estudo da WWF como uma “peça frágil” e “irresponsável” por defender a eficiência enérgica como principal modelo a ser seguido. “Isso é uma utopia, é tentar enganar o povo brasileiro. Não será possível ter desenvolvimento sem a introdução de novas fontes de geração”, enfatizou Tomalsquim, que participava da mesa de apresentação do estudo. Segundo ele, o erro da pesquisa conduzida pela Unicamp está exatamente no tratamento à demanda, porque propõe que o consumo per capita de energia no Brasil, algo em torno 1,9 MW/h, continuará praticamente estável. “É um panorama no qual em 2020 teremos um consumo inferior ao que têm hoje Venezuela, Chile e Bulgária, é acreditar que não haverá alteração na distribuição de renda no Brasil”, alfinetou.

O membro da WWF Internacional Giulio Volpi rebateu as críticas do presidente da EPE com dados mundiais da Agência Internacional de Energia (AIE) que indicam que, mesmo em países em desenvolvimento, existe um potencial de redução de consumo mundial da ordem de 35%. O foco, ele reforça, é investir em equipamentos eficientes, e para isso, é necessário menos dinheiro do que para construir qualquer forma de usina de energia. Por exemplo, gerenciar a demanda pode ser até quatro vezes mais barato do erguer um usina nuclear, mostrou um estudo do Banco Mundial. “O que estamos dizendo não é ficção”, pondera Volpi.

Uma das recomendações finais da WWF para incentivar políticas de conservação de energia é bastante inovadora. Propõe-se que o governo institua os Leilões de Eficiência Energética. Desta forma, da mesmo jeito pelo qual o Ministério de Minas de Energia leiloa uma certa quantidade de megawatts para entrar no sistema nacional interligado, poderia-se oferecer uma quantia de energia que deve ser economizada, o que permitiria o desenvolvimento de companhias especializadas em eficiência energética.

Oferta

Se debater formas de conter a demanda de energia já gera certa polêmica, a discussão sobre as opções de oferta de energia só acrescenta mais lenha à fogueira. Do modo como andam as concessões de geração de energia e o planejamento proposto pelo Plano Decenal de Energia da EPE, o Brasil caminha a passos firmes para aumentar sua geração de energia com combustíveis fósseis, aumentando a emissão de gases de efeito estufa. Atualmente, 9% da matriz energética nacional é composta por fontes fósseis (gás natural, petróleo e carvão). Se a tendência de crescimento destas fontes for mantida, em 2020 elas passarão a representar 15% da matriz, sendo que as emissões de gases estufa (CO2 e NOx) aumentariam em cerca de 200%

O estudo WWF propõe que haja uma redução na participação das fósseis em 2020. Isso seria conseguido com a interrupção de térmicas à carvão, o que permitiria que a contribuição das fósseis à geração seja de 8% . Além disso as emissões de gases estufa seriam estabilizadas em torno de 25 milhões de toneladas de carbono. A lacuna criada pelo não crescimento das fontes sujas seria preenchida por maior apoio as fontes renováveis (pequenas centrais hidrelétricas, fotovoltaíca, biomassa e eólica). A participação na matriz sairia dos atuais 4% para 20% em 2020. Para se atingir esta meta, o relatório recomenda o início imediato do segundo Programa de Incentivo a Fontes Alternativas (Proinfa) e a criação de uma política para paineis solares. Quanto aos recursos, a economia de 33 milhões de reais a ser gerada com o corte de 38% do consumo seria direcionada às renováveis.

Na visão do secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia , Nelson Hubner Moreira, atualmente, o verdadeiro dilema do planejamento energético no Brasil não é entre as fósseis e as renováveis. Estas últimas sempre terão um papel complementar pelo seu alto custo. Por isso a briga agora é entre as formas baratas de geração: as fósseis e as hidrelétricas. Neste caso, diz ele, o país terá que fazer uma opção: ou aumenta suas emissões ou passa a explorar o potencial hídrico da Amazônia. Sua opinião é de que as hidrelétricas podem sair ganhando se a premissa para as construções seja o bom custo-benefício entre geração e área alagada. Assim, projetos como as usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, podem ser implementados porque alagam 0,09 km2 por megawatt gerado, muito diferente de Balbina, no estado do Amazonas, que gera 1 MW a cada 9,44 km2 alagado. Tomalsquim reforça essa visão ao frisar que das 33 hidrelétricas previstas para serem construídas até 2015, 31 tem lagos de até 100 Km2.

Cuidar ou construir?

Mesmo com as supostas vantagens das futuras hidrelétricas, o WWF questionou a necessidade de construí-las. Uma maneira de evitar erigí-las seria o melhor aproveitamento das 156 grandes usinas já existentes no Brasil. Com a repotenciação, ou seja a modernização e correção de turbinas e geradores, seria possível acrescentar, até 2020, 15 GW na matriz hidrolétrica nacional. Isso representa um aumento de 20% sem alagar um quilômetro sequer.

O geólogo da Superintendência de Concessões da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Fernando Campagnoli observa que uma das formas de garantir mais energia no longo prazo é melhorar a gestão dos reservatórios para aumentar o tempo de vida das hidrelétricas. As barragens do país foram projetadas para durarem centenas de anos, mas algumas delas, como a de Mascarenhas no Rio Doce, Espírito Santo, já estão sendo afetadas pelo assoreamento, o que reduz o potencial de geração de energia.

Outro caso emblemático é a Usina de Itupararanga, em São Paulo, que pertence à Companhia Brasileira de Alumínio. Neste caso, o problema é o conflito pelo uso da água. A retirada de água do rio Sorocaba para irrigação diminuiu de tal forma o volume do reservatório que a usina que gerava 55MW hoje fornece cerca de 30 MW. Campagnoli cita ainda problemas em reservatórios que são poluídos por esgoto e que enfrentam problemas de eutrofização, obrigando paradas na operação das turbinas.

Segundo o geólogo, a Aneel vai intensificar a cobrança para que as concessionárias cuidem mais de seus reservatórios através do lançamento de normas para a elaboração planos de gestão patrimonial. “Os reservatórios são bens que devem durar por diversas gerações”, pontua Campagnoli. As novas regras serão feitas pela a agência em articulação com o Ministério do Meio Ambiente para promover o reflorestamento das margens de reservatórios, algo exigido pelo Código Florestal, e essencial para evitar o assoreamento.

Exemplo

A reportagem de O Eco teve a oportunidade de visitar a usina de Itaipu, que hoje é considerada modelo na gestão de seu reservatório. Trata-se da maior hidrelétrica do mundo, com uma potencia de aproximadamente 11 mil MW e cujos cuidados com o seu reservatório são ininterruptos. Ao redor do lago foram reflorestados 34 mil hectares, o que já contribui expressivamente para reduzir a erosão. Para isso cuida com um viveiro com capacidade de produzir até 800 mil mudas por ano.

Mas a empresa foi além e criou um programa de recuperação das microbacias que compõe a bacia do Parana III, onde está localizada a barragem. Batizado de “Cultivando Água Boa”, o projeto de Itaipu atua em 29 municípios recuperando matas ciliares e orientando a população a não poluir córregos que desaguam no reservatório da usina. “Água é o nosso principal ativo”, afirma o diretor de Coordenação da empresa geredora, Nelton Friedrich.

O acompanhamento da qualidade da água e da entrada de sedimenos é essencial para evitar possíveis problemas de eutrofização. Um dos trabalhos da empresa que começa a avançar é a parceria com produtores de porco e gado para licenciarem suas propriedades. É uma maneira de evitar que a carga de nutrientes comprometa a qualidade da água e a geração de energia.

Neste ano, tal qual ocorrera em epóca do Apagão, o Operador Nacional do Sistema (ONS) determinou que Itaipu vertesse mais água para atender com energia as regiões que estavam sofrendo com a seca. Quando o nível do reservatório é reduzido, equipes já ficam de prontidão para fazer o trabalho de abrir lagoas onde possam existir bancos de areia. Além disso toda a margem do lago é monitorada para evitar caçadores e ladrões de madeira se aproveitem do recuo da margem para atuar. “Tudo isso acontece graças a uma visão de meio ambiente que começou deste o início da formação do reservatório”, explica o gerente do Departamento de Reservatório e Áreas Protegidas, João Antônio Cordoni

O técnico do Programa Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Luiz Carlos Sérvulo de Aquino, afirma que como Itaipu existem usinas da CESP e da Cemig que estão cumprindo a legislação de Áreas Preservação Permanente . Por isso ele aposta que o setor elétrico ainda “tem potencial de se tornar um grande parceiro na recuperação de áreas”. Cuidar do que já existe, tudo indica, pode poupar alguns milhões de quilômetros alagados.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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