Reportagens

Para além da Amazônia

Governo vai criar duas Reservas Extrativistas no Cerrado, uma experiência até agora restrita à região Norte e ao litoral brasileiro. As áreas de proteção integral vêm depois.

Manoel Francisco Brito ·
9 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Se tudo correr como planejado, até o fim de setembro o presidente Lula assina os decretos que vão expandir para o Cerrado um conceito de área protegida cuja aplicação, até agora, estava restrita à Amazônia e a alguns pontos do litoral brasileiro. Trata-se da Reserva Extrativista (Resex), uma categoria incluída no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) com base na idéia de que é possível integrar populações tradicionais, que vivem da coleta de produtos em regiões de relevância ecológica, com a preservação do meio ambiente.

Serão duas Resex, ambas em Goiás. Uma, no município de São Domingos, Oeste do estado, terá 12 mil hectares e beneficiará 110 pessoas. A outra, ao Norte, no município de Aruanã, será demarcada com 18 mil hectares e vai envolver outras 160 pessoas. Mauro Pires, coordenador do núcleo Cerrado da Secretaria de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA), avisa que a medida não faz parte de um plano para a implantação em larga escala de Reservas Extrativistas na região. “Estamos apenas dando vazão a demandas que já estão oficializadas, algumas há mais de dez anos. E com muito cuidado.”.

Razões não faltam para invocar cautela. A legislação que regula a criação de Resex, apesar de prever que elas possam ser instaladas em todo o território nacional, foi escrita de olho na Amazônia. “No Cerrado, a coleta de produtos florestais desenvolveu-se em contexto biológico e cultural diferente. Nosso extrativismo criou, historicamente, uma espécie de simbiose com a agropecuária. Em alguns poucos casos, até com a mineração”, diz Ricardo Ribeiro, professor de sociologia e antropologia na PUC de Minas. Pela variedade de ecossistemas, lembra Pires, o Cerrado oferece uma cesta mais variada de produtos extrativistas que a Amazônia.

O fator gado

Mas exceto pela coleta de plantas medicinais, ela não funciona o ano inteiro. A produção de frutas como o pequi, ou sementes como o barú, é normalmente restrita ao período que vai do fim da estação de seca, lá para setembro, até o meio da época da cheia, em fevereiro, março. No resto do ano, os grupos extrativistas dependem da agricultura e da pecuária, o que torna sua regulamentação infinitamente mais complexa. Na letra da lei, agricultura passa, desde que se restrinja à subsistência. Mas gado, nem pensar. O texto prevê que os habitantes de uma Resex podem criar alguns animais, mas nenhum de grande porte.

“A questão da agricultura eu até acho conciliável com os aspectos legais”, diz Mário Barroso, gerente do Programa Cerrado da Conservação Internacional (CI). “Difícil vai ser a questão do gado”. O MMA pretende resolver a questão nas Resex de São Domingos e Aruanã aplicando uma jurisprudência já estabelecida nas Resex da Amazônia. Embora a lei não traga esse critério explícito, a burocracia ambiental, quando leva em consideração os quesitos para ter animais dentro de uma Resex, dá mais peso ao tamanho do rebanho do que ao porte de um animal. “Tem boi dentro de Resex na Amazônia. O fundamental é controlar a quantidade. Mesmo que fossem patos”, diz Pires.

Barroso, no entanto, também vê dificuldade em conciliar o pastoreio tradicional com os cuidados ambientais exigidos para uma área de proteção. Para início de conversa, o hábito é criar o gado solto e isso exige um recurso bem mais escasso no Cerrado: terra. “Não dá para fazermos Resex lá do tamanho das que temos na Amazônia, onde a menor tem 100 mil hectares”, diz Pires. E pelos rebanhos de populações tradicionais que Barroso já viu, metê-los dentro de uma Resex vai obrigá-las a reduzir o número de animais. Ribeiro acha que a adaptação será possível na maioria dos casos, nem que seja para sobreviver ao avanço da fronteira agrícola no Cerrado.

Mas para Barroso o espaço não é o único problema. O gado alimenta-se da vegetação rasteira nativa – o que em princípio é bom, porque ele não depende de pastos exóticos. Só que para torná-la acessível aos bois, queima-se o terreno para livrá-lo de árvores e arbustos. O impacto ambiental é significativo. Enquadrar essa prática em Reservas Extrativistas vai exigir uma espécie de choque cultural. “O extrativismo é praticado por comunidades muito pobres, nem sempre organizadas e que se comportam assim há séculos. Largar o fogo seria uma mudança radical”, diz ele.

Quantos são?

Ribeiro acredita que o caso do gado não é o único que vai exigir uma certa adaptação do conceito de Reservas Extrativistas para o Cerrado. “Além de integrar coleta com cultura, o extrativismo aqui, pela variedade de ambientes, adquiriu características distintas em cada uma das comunidades”, diz. Com a criação das duas Resex, muitas dessas dúvidas começarão talvez a ser mais profundamente examinadas. No caso específico do gado, a idéia é, em uma delas, em São Domingos, experimentar separar do resto da Resex uma área comunitária para o pastoreio. Não se sabe se dará certo.

E mesmo que dê certo, tanto Ribeiro quanto Barroso dizem que para as Reservas extrativistas funcionarem, será preciso mais que resolver a questão do gado. “Uma idéia pode parecer boa e, na prática, virar um desastre”, diz Barroso. “Ela precisa de um plano de manejo, fiscalização e estrutura”. Ribeiro é mais explícito sobre o último ponto. “Esses projetos dão resultado só quando são acompanhados de políticas de fomento para ter acesso à tecnologia, meios de distribuição e mercados”, insiste. Isso exige dinheiro e o aperto no caixa é mais um incentivo para o governo andar devagar com o andor das Resex no Cerrado.

A sensação de se estar trilhando um caminho sem mapa para navegação fica mais aguda quando se nota a ausência de uma idéia clara da dimensão do problema. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas poderiam ser incluídas em comunidades extrativistas no Cerrado e nem exatamente onde elas estão. “Isso também dificulta a definição de uma política geral para cuidar do assunto”, diz Pires. “As Resex podem não ser boas nem para tudo e nem para todos”. Pires recentemente participou de um seminário em que o tema foi discutido e decidiu-se dar a partida no processo de mapeamento das populações tradicionais do Cerrado.

Enquanto suas informações não chegam, o governo decidiu tocar a questão das Resex no Cerrado a partir das demandas que já foram oficializadas no Ibama, 18 no total, e pedidos de financiamento feitos por comunidades da região em instituições como o Fundo Nacional do Meio Ambiente. Olhando mais detidamente para elas, o governo espera ser capaz de desvendar muito do que não sabe sobre a economia tradicional no Cerrado.

Preservação humana

A criação das duas Resex em Goiás exportou para o Cerrado um debate que apesar de antigo na Amazônia, só agora começou a ganhar corpo em público. Ele se dá em torno do impacto ambiental das reservas extrativistas. Elas foram elevadas à categoria de Unidade de Conservação pelo SNUC dentro de uma estratégia que ficou conhecida como a do muro verde. A idéia era cercar áreas de preservação permanente com unidades de uso direto, Florestas Nacionais ou Resex, para criar ao mesmo tempo uma zona de amortecimento e um corpo de indivíduos comprometidos com a conservação da paisagem.

Em várias Resex da Amazônia, não aconteceu nem uma coisa e nem outra. Pires reconhece os problemas, mas diz que há também muitos casos onde as reservas extrativistas vêm cumprindo seu papel na conservação. E acha que sua proposta é vítima de um preconceito e uma confusão. “Existe uma implicância por parte de determinados grupos com populações tradicionais”, diz. “E elas sofrem porque, no caso da Amazônia, são confundidas com os assentamentos do Incra, que produziram sérios problemas ambientais”.

Ribeiro lembra que sua criação tem um impacto positivo imediato no Cerrado. “Uma Resex no mínimo congela determinados tipos de ocupação, como a da agricultura mecanizada”, afirma. Diz também, que do ponto de vista ambiental, uma Resex tem condições de ser mais efetiva se estiver enquadrada num mosaico de unidades de conservação. Pires concorda e diz que essa é a intenção do governo federal. Ele conta que o plano é criar 7 unidades de conservação de uso restrito no Cerrado, a maioria fazendo fronteira com outras áreas de proteção. Um dos lugares candidatos a um mosaico é o Sul do Piauí.

Barroso também faz coro com a tese de que era melhor criar Resex dentro de um conceito de mosaico. Mas mesmo neles, não têm certeza sobre se teriam impacto positivo sobre o meio ambiente no longo prazo. “Sem os recursos necessários e o interesse político, elas vão sofrer o mesmo esvaziamento que atinge os parques nacionais. E o que é pior para a natureza, com gente dentro”, diz. Ele acha até que, no curto prazo, ela pode servir para barrar o avanço da fronteira agrícola. Mas for a isso, o outro único benefício que ele consegue enxergar agora com a implantação do modelo no Cerrado, é que ele preserva um modo de vida que está sumindo da região.

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