Reportagens

O geógrafo atento

Orlando Valverde foi pioneiro em quase tudo que tem a ver com geografia no Brasil. Mas foi na Amazônia que ele descobriu para que servia o que aprendeu.

Juliana Tinoco ·
13 de julho de 2006 · 18 anos atrás

Em 16 de junho, o Brasil perdeu um de seus principais geógrafos: Orlando Valverde. A notícia pouco circulou, mas nunca é tarde para contar a história de quem depois de lutar na Intentona Comunista decidiu estudar geografia e enfrentar os problemas ambientais descobertos na disciplina.

Valverde morreu aos 89 anos. Pelo menos 30 deles foram dedicados à preservação da Amazônia. Para impedir a instalação de projetos que ameaçavam a região, ele fundou a Campanha Nacional de Defesa e pelo Desenvolvimento da Amazônia (CNDDA). Ele também foi o primeiro geógrafo com carteira assinada do IBGE, onde trabalhou por quase meia década. A experiência lhe rendeu convites para dar palestras em diversas universidades estrangeiras. No Brasil, foi professor da PUC do Rio de Janeiro.

A carreira de geógrafo teve como ponto de partida a expulsão da Marinha em 1935, depois da Intentona Comunista. Optou por ingressar na faculdade para recomeçar a vida e tornou-se aluno da primeira turma do curso de geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, na época, ainda se chamava Universidade do Brasil.

De lá, foi trabalhar no recém criado IBGE. Especializou-se em geografia agrária e viajou pelo país, conhecendo bem quase todas as regiões. Nos anos 50, ganhou fama como defensor da reforma agrária. E como nunca abandonou por completo suas idéias esquerdistas, brincava que foi graças à patente de Capitão de Mar-e-Guerra, concedida a ele após a anistia, que não foi preso durante a ditadura.

Apesar de suas certezas em relação à reforma agrária, Valverde não largava as questões ambientais. “A geografia é uma ciência social e, ao mesmo tempo, natural. É a única ciência que abrange esses dois aspectos. As inúmeras análises que Valverde fazia sobre os problemas agrários incluíam questões sociais, claro, mas levavam sempre em conta aspectos como clima, solo, relevo e ecossistemas. Assim é a cabeça de um geógrafo”, explica Marcelo José Lopes de Souza, colega de profissão e amigo pessoal de Valverde.

Após o golpe de 64, dos dois volumes de sua obra Geografia Agrária do Brasil, apenas um recebeu permissão para ser lançado: o que tratava das bases ambientais da organização do espaço agrário brasileiro. O volume proibido falava sobre a questão da reforma agrária. Valverde foi então muito criticado por suas idéias ligadas ao tema, até mesmo dentro do IBGE. Foi a partir dessa época que o geógrafo se voltou para a Amazônia.

Em 1967, ao avaliar a intenção do projeto de construção de uma barragem no Rio Amazonas para a construção de uma hidrelétrica, na altura do município de Óbidos, no Pará, Valverde descobriu o projeto Plano dos Grandes Lagos Amazônicos, elaborado pelo Instituto Hudson, nos Estados Unidos. A idéia era alagar grande parte da floresta com represas para gerar energia. A necessidade de criar uma oposição séria contra este projeto o levou a fundar, no mesmo ano, a ong Campanha Nacional de Defesa e pelo Desenvolvimento da Amazônia, CNDDA, que reunia técnicos, cientistas e até oficiais militares nacionalistas em torno de questões relacionadas à Amazônia.

Uma comissão de estudo, organizada para analisar e criticar o projeto, pôs lenha na fogueira ao afirmar que este seria, além de prejudicial à região, economicamente fraco. Com os dados das análises feitas pelo CNDDA, o projetou passou pelo Congresso Nacional e pelas Forças Armadas, até finalmente ser arquivado.

A vitória contra as barragens impulsionou uma série de outras intervenções na região amazônica. Através do CNDDA, Valverde lutou contra a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) em projetos pecuários que devastariam a mata e contra a empresa Mineração Rio do Norte, que lançava rejeitos em lagos. Presença certa em audiências públicas, ele também se posicionou contra a construção de rodovias como a Transamazônica e estradas como a Macapá -Laranjal, que percorreria uma área de reserva extrativista. Junto a ativistas nacionalistas do grupo, combateu a venda de terras para países estrangeiros no Norte do país.

Também estiveram sob sua mira diversos planos de construção de hidrelétricas, que, por não terem relatórios de impacto ambiental consistentes, foram ao longo do tempo, graças à CNDDA, deixados para trás. Com uma base científica extremamente sólida, Valverde tornou-se rapidamente o maior analista de Estudos de Impacto Ambiental para qualquer obra amazônica. Em uma região de população de baixa renda e com pouca instrução, era sempre Valverde quem ficava encarregado de analisar os relatórios que vinham das empresas e, na maioria das vezes, não passavam por nenhuma inspeção. “Os projetos de exploração da região vinham com Eia-Rimas ridículos, feito por idiotas. Valverde dava todos os pareceres técnicos e argumentos contra os projetos. Colocava todos os idiotas no bolso”, diz Marcelo.

“Ele era um cientista engajado. Lidava com os seringueiros, buscava chamar a atenção para as ignorâncias ambientais do povo. Impedia a ocupação da Amazônia de forma desproporcional e descuidada”, conta Marcelo. “Valverde era um apaixonado pelo Brasil e a Amazônia era o seu maior xodó. Pouco tempo antes de morrer, ainda fazia planos de trabalho na área, sempre me dizendo que o país precisava de nós” relembra o amigo.

  • Juliana Tinoco

    Juliana Tinoco é jornalista multimídia especializada na cobertura de Meio Ambiente, Ciência e Direitos Humanos. Por quinze an...

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