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Memória curta

Denúncias e gravações telefônicas feitas pela Polícia Federal revelam os bastidores dos crimes ambientais que originaram a Operação Curupira em Mato Grosso.

Andreia Fanzeres ·
1 de junho de 2006 · 18 anos atrás

A Operação Curupira, que desmascarou um esquema de corrupção dentro do Ibama e da Fundação Estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso (Fema) envolvendo empresários locais, ganhou corpo depois que a Polícia Federal quebrou o sigilo telefônico de funcionários suspeitos de acobertarem contrabando de madeira. As gravações deixaram claro que onde deveria haver fiscalização contra corte e comércio ilegal de produtos florestais, havia suborno e falta de estrutura do Estado para inibir esquemas às vezes banais de falsificação de documentos.

Para marcar um ano da operação, O Eco divulga trechos dessas gravações. Todos os funcionários do Ibama que aparecem nas transcrições abaixo ainda trabalham no instituto, aguardando a conclusão das investigações.

Os trechos revelam, entre outras coisas, que despachantes e empresários da região de Colniza recebiam informações privilegiadas, como as fornecidas pelo então chefe do escritório regional do Ibama de Aripuanã, Paulo Roberto Salazar, sobre futuras operações de fiscalização na região (clique para ouvir).

O pagamento de propina a fiscais do Ibama era um crime comum. O analista ambiental Jesuíno Vieira dos Santos, na época lotado em Aripuanã, é outro dos acusados desse tipo de infração. Numa das conversas, Paulo Salazar fala a Jesuíno que “uma pessoa” não deixou “nada” com ele, mas vai deixar. E que logo vai receber as ATPFs de “aviãozinho” (clique para ouvir e ler a transcrição).

Além disso, denúncias indicaram que Jesuíno mantinha contato com Dirceu Benvenutti, responsável técnico de diversos planos de manejo da empresa Bioflora Planejamento Florestal Ltda, da qual era sócio. As investigações apontaram para a formação de uma grande organização criminosa que grilava terras públicas e adquiria ATPFs para legalizar madeiras em estoque de serrarias. Como Dirceu precisava de apoio dentro do Ibama, Jesuíno dava pareceres favoráveis de vistoria das propriedades beneficiadas com as permissões para manejo.

Ele também é acusado de levar para dentro do escritório de Aripuanã a senhora Tatiana Teles Barreto, que tinha acesso a toda documentação de madeireiras e operava o Sismad (Sistema de Fluxo de Produtos e Subprodutos da Floresta), podendo acrescentar créditos para o corte de madeira a qualquer empresa, mesmo sem vínculo legal com o serviço público.

Embora esses crimes acontecessem por todo estado, era grande a concentração de atividades suspeitas – para dizer o mínimo – no escritório do Ibama em Aripuanã. Izael Gonçalo da Costa, analista ambiental de lá, é indicado em gravações telefônicas negociando a liberação de carga apreendida no posto fiscal do Ibama no Trevo do Lagarto, nas proximidades de Cuiabá (clique para ouvir e ler a transcrição). Numa conversa com uma mulher chamada Karina Almeida Gomes, o servidor promete contatar Marcos Pinto Gomes e Benedito Paes de Camargo, então chefe e substituto da divisão de fiscalização de Cuiabá.

Em seguida, Izael comenta o pedido com Marcelo e fala sobre as providências que está tomando (clique para ouvir e ler a transcrição).

Segundo as apurações do grupo de trabalho chefiado pelo procurador federal Elielson Ayres de Souza, muitos servidores apontados no esquema foram omissos em seus serviços. Alfredo Hiroshi Abe, por exemplo, é acusado de não verificar os dados enviados pelas empresas para que fosse realizado o controle do saldo de madeira. O servidor foi denunciado também por propositalmente não comparar as duas vias das ATPFs, procedimento obrigatório para checar se o documento não havia sido falsificado.

Em um dos diálogos captados pelas investigações, os despachantes Elvis Portela e Wilson Rossetto conversam sobre a conduta de Alfredo Hiroshi Abe (clique para ouvir), que supostamente intercepta e destrói as ATPFs falsas porventura remetidas à verificação do Ibama.

Simplicidade do crime

João Alves da Luz, presidente do sindicato das indústrias madeireiras da região de Juína não foi citado nos grampos divulgados, mas ele mesmo não se incomoda em explicar, em linhas gerais, a dinâmica das fraudes ambientais no noroeste do Mato Grosso que, segundo ele, não foram extintas.

“Por exemplo, você compra um ‘grilo’ em Colniza (MT). Procura o Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat) e registra que tem uma área de 400 alqueires, quando na verdade você tem 800. Com os 400, faz um projeto de manejo para vender madeira e retira as toras da área maior, claro.” E como é que se faz para transportar a madeira da área sem documentação do Intermat? Compra notinha”, ele conta. Entenda-se, notinha: ATPF. “Para obter as ATPFs e os projeto de manejo aprovados, tinha que ter suborno”.

Segundo o presidente do sindicato, era comum pedir plano de manejo para o Ibama de uma área completamente derrubada. “Eles não iam verificar. Davam o papel para a gente, regularizava a área e tirávamos árvore de outro lugar”. Parece tão simples.

Os madeireiros se aproveitavam da falta de estrutura do Ibama, que não tinha condições de enviar engenheiros para vistoriar os planos de manejo, para subornar servidores, que atestavam mentirosamente terem verificado a área, para que o setor continuasse em atividade. “Toda vida aconteceu assim. Às vezes, o próprio Ibama nos procurava e passava o chapéu para o dinheiro do combustível, por exemplo”.

Mesmo com as novas regras, João Alves da Luz diz que o setor madeireiro em Mato Grosso sempre vai precisar de uma “facilitação” para continuar cortando árvores no estado. “Se for seguir a legislação ao pé da letra todo mundo pára”. Mas diz que toda essa rede se desmantelou depois da Operação Curupira. Mesmo assim, garante que os ilegais estão em plena atividade. “Todo mundo continua esquentando madeira, só não sei como”, diz.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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