Reportagens

Ao sabor das dunas

Os turistas que procuram Itaúnas impactam menos o litoral norte capixaba do que seus próprios moradores. Mesmo sem saber que se divertem num parque estadual.

Andreia Fanzeres ·
3 de março de 2006 · 18 anos atrás

A capital nacional do forró fica em um dos pontos mais paradisíacos do litoral capixaba. Nos feriadões, milhares de pessoas viajam para Itaúnas, quase na divisa com a Bahia, para dançar até o sol raiar, na areia da praia ou no chão batido da cidadezinha de pouco mais de mil habitantes.

Até o ano passado, quando não havia um portal no caminho da vila para a praia, nem o trabalho constante de monitores ambientais, quase todos que aproveitam a vida mansa dali no verão iam embora sem saber que aquele paraíso faz parte do Parque Estadual de Itaunas. Uma unidade de conservação de 3.500 hectares que protege 38 quilômetros de praias, alagados, matas de tabuleiro, além de ser um importante ponto de desova de tartarugas marinhas. O parque também preserva o rio que deu nome ao lugarejo.

Outra coisa que poucas pessoas se dão conta é que Itaúnas foi uma vila soterrada pelo movimento da maior duna do Espírito Santo, a mesma que encanta os turistas que sobem lá para ir à praia, observar o céu estrelado, ver o sol nascer ou se pôr. Tão famosa é essa formação, que a própria localidade é conhecida por alguns como simplesmente Dunas.

Essa história é uma mistura de lendas com ações do homem em uma natureza frágil. O que se sabe com certeza é que até fins da década de 30 existia uma vila construída entre o mar e o rio Itaúnas, cercada por dunas que eram cobertas com vegetação de restinga. Mas a partir daquela data, a mata que impedia o deslocamento natural das dunas começou a ser retirada. Uns dizem que para a produção de lenha, outros para limpar a área e cultivar mandioca.

O fato é que as dunas ficaram desprotegidas e, ao longo de 40 anos, a vila foi engolida pela areia. Hoje restam apenas ruínas das antigas construções e Itaúnas foi reconstruída mais afastada da praia. Mas o vento não pára e elas continuam se deslocando. Ameaçam as áreas de alagados e a estrada que leva a Riacho Doce, que marca a divisa com a Bahia. A gerência do parque já desenvolveu projetos de replantio da vegetação de dunas para frear seu deslocamento, mas os esforços são poucos. O principal acesso dos turistas às praias continua sendo as dunas.

“Impedir que as pessoas passem pelas dunas é praticamente impossível. Mas por causa do calor e do tamanho delas, já existe uma área limitada por onde os turistas transitam”, diz Maria da Glória Brito Abaurre, secretária estadual de meio ambiente do Espírito Santo. Para ela, o pisoteio repetido numa mesma área permite que as outras se recuperem. Mas para os turistas, as poucas restrições que o parque impõe não fazem muita diferença, desde que diariamente as barracas na praia continuem tocando forró à tarde e eles possam apreciar a natureza de cima das dunas.

Relacionamento com a comunidade

Embora o parque tenha recebido no último verão cerca de 46 mil turistas, Maria da Glória acredita que a maior pressão é exercida pela própria comunidade local, formada basicamente por pescadores. Apesar de conviverem há 15 anos com o parque, os nativos não concordam em não poder mais caçar nem tirar madeira da região, seja para fazer lenha ou produzir carvão vegetal. A gerência do parque estima que existam hoje 1.500 fornos ilegais para produção de carvão no entorno de Itaúnas.
Frequentemente, os funcionários do parque recebem denúncias para desmontar armadilhas, apreender redes de pesca no rio e interceptar caminhões transportando ilegalmente madeira. Segundo Maria da Glória, até ameaças de morte os gerentes do parque têm recebido nos últimos anos.

“É barra pesada”, diz ela. Isso sem falar no aumento do consumo de drogas e na questão da regularização fundiária. Até hoje, nenhuma propriedade recebeu indenização e a população resiste, já que apenas R$ 500 mil dos R$ 4,5 milhões que o parque precisa para regularizar as terras foram liberados.

Para lidar com essa delicada situação, o Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), responsável pela administração do parque, colocou um biólogo de 25 anos como gerente da unidade de conservação. Com experiência na gerência de outras áreas protegidas no Espírito Santo, André Tebaldi encara seu trabalho como um desafio de vida e vive o conflito da pouca idade e do excesso de responsabilidades em Itaúnas.Desde que assumiu, há um ano e meio, o gerente equipou a unidade com um computador, uma moto, um veículo novo, rádio comunicadores e um sistema de tratamento de efluentes para as barracas e os banheiros na praia de Itaúnas. Mas os desafios ultrapassam suas demandas dentro do parque.

Meio prefeito

Itaúnas é um distrito de Conceição da Barra, que fica a 26 quilômetros dali – distância suficiente para que os problemas da vila recaiam sobre os ombros do gerente do parque, que acabou virando uma espécie de prefeito. “Já tivemos que bancar a alimentação de policiais militares durante o verão, além de comprar 200 litros de álcool para abastecer os veículos da PM”, relata. Com três funcionários de nível superior e quatro guardas-parque, não é fácil dar conta de tudo isso. Especialmente porque o diálogo com a comunidade acontece sempre com limitações.

Apesar de Itaúnas ter uma sociedade civil extremamente organizada para o tamanho da vila – tem associações de moradores, pescadores, produtores rurais e duas organizações não governamentais – a impressão é de que ninguém consegue se entender. “Eles têm que compreender que a administração de um parque estadual é para o bem da região em longo prazo”, diz Maria da Glória. “Não podemos deixar detonarem tudo, como fizeram em Guarapari”, compara. Segundo ela, se não houvesse parque, a orla já estaria tomada de quiosques, que hoje ocupam uma faixa limitada de cerca de 150 metros. Maria da Glória diz ainda que o Iema se esforça para oferecer à população tradicional alternativas de subsistência, como incentivo a cultivos consorciados e agricultura orgânica.

Mas Cecília Donizete Marcondes, presidente da Sociedade dos Amigos do Parque de Itaúnas (Sapi) tem lá suas dúvidas sobre as ações do estado. “O parque é uma imposição do governo sobre a comunidade”, avalia. “O governo estadual é omisso, falta fiscalização, o som do forró é muito alto, em temporada os ônibus lotam as ruas da vila”, enumera. Para ela, o parque tem responsabilidade nessas questões e a falta de diálogo junto a ongs como a sua impede que outras entidades prestem ajuda.

Ameaças

E ajuda é o que o parque não deve negar. Segundo Tebaldi, 65% da área rural de Itaúnas são cobertos por eucalipto. Inclusive algumas no limite da unidade de conservação. “Nosso plano de manejo prevê que os eucaliptos localizados no entorno imediato do parque não sejam cortados como os outros para permitir o crescimento de sub-bosques”, diz a secretária de meio ambiente.

Mas os eucaliptos são fichinhas perto do que a prefeitura de Conceição da Barra anda fazendo por lá. Há 20 anos, antes da criação do parque, ela autorizou o fechamento da foz do rio Itaúnas, que desembocava na cidade, porque o movimento das águas ameaçava um hotel. O proprietário teve então a brilhante idéia de abrir uma foz artificial num ponto intermediário do rio (hoje protegido pelo parque estadual). “Uma área muito grande que não tinha contato com o mar foi salinizada, muitas plantas e animais morreram, houve assoreamento e a foz continua se abrindo”, conta Tebaldi. Segundo o gerente, o impacto ambiental dessa intervenção ainda não foi mensurado. Mas a secretária de meio ambiente do Espírito Santo informa que um especialista em dinâmica costeira analisou a área e concluiu que a área pode voltar a se equilibrar se tudo for deixado do jeito que está. “Optamos por não reabrir a foz original e fechar a nova, senão o impacto seria ainda maior”.

Tartarugas marinhas

Por causa do desvio dessa e de outra foz também próxima a Conceição da Barra, de uns anos pra cá, o município está sendo invadido pelo mar. Já teve o calçadão por onde tradicionalmente passavam os blocos de carnaval completamente destruído, o que a cada ano esvazia mais a cidade.

As ameaças iminentes de Conceição da Barra motivam os pesquisadores do Projeto Tamar a transferir os ninhos das tartarugas que desovam perto da cidade para um cercado de incubação, onde estão mais protegidos do excesso de iluminação urbana e do pisoteio das pessoas. Todos os anos, de outubro a janeiro, os quelônios procuram toda orla protegida pelo parque para depositar os ovos, sendo que em Itaúnas ocorre a espécie de tartaruga mais ameaçada do mundo, a gigante. Até março, as tartaruguinhas saem dos ovos. Segundo Luciana Veríssimo, bióloga do Tamar, nesta temporada foram identificados 88 ninhos e já nasceram 5.596 tartarugas. “Faltam só dois ninhos eclodirem”, diz animada.

Mas o término das atividades na temporada de desova não significa o fim dos trabalhos com as tartarugas. Em alto mar, o Tamar desenvolve um projeto de educação ambiental com os pescadores de lagosta e camarão, que quando lançam suas redes para arrasto acabam prendendo tartarugas. Luciana diz que eles são orientados a preencher uma ficha com dados sobre a localização e o tipo de tartaruga encontrada. Neste ano, 110 animais foram pegos presos às redes, praticamente metade já sem vida. Mas a bióloga faz uma avaliação positiva da temporada, já que não foi necessário transferir a maioria dos ninhos da praia – sinal de que as ameaças, ao menos às tartarugas, estão cada vez mais controladas.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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