Reportagens

Gripe de contrabando

Vírus da gripe aviária se espalha, mas Brasil não deve se preocupar tanto com aves migratórias. Mais ameaçadora é a chegada do H5N1 pelo tráfico de animais.

Andreia Fanzeres ·
23 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

A cada dia, o noticiário internacional traz alguma novidade sobre a rápida disseminação do H5N1, cepa mais violenta do vírus da influenza aviaria atualmente em circulação pelo mundo. Pela primeira vez identificado no sudeste asiático, esse vírus – que pode infectar também suínos e eqüinos – espalhou-se pela África e Europa. Ao que tudo indica, chegar às Américas é uma questão de tempo. E cada um que se prepare para lidar com uma epidemia em potencial.

Impossível prever o futuro, mas quem entende de aves no Brasil avisa: em vez de temer que a doença chegue pela migração natural de algumas espécies, o país deveria se preocupar mais com o que entra por seus portos e aeroportos. São muito maiores as chances de o vírus chegar dentro de uma mala cheia de papagaios africanos ou demais bichos diariamente contrabandeados para cá.

Basta conhecer um pouquinho sobre a dinâmica das migrações para concordar com esses especialistas. Pra começar, essa história de que as aves migratórias não conhecem fronteiras e poderiam espalhar o vírus para qualquer canto não pode ser levada ao pé da letra. Ela tem inspirado alguns alarmistas (principalmente na América do Norte) a propor o extermínio das aves migratórias ou a drenagem de áreas pantanosas que servem de refúgio para patos, marrecos e outras espécies viajantes. Tudo para evitar que elas migrem para determinada região.

Os ornitólogos vêem dois grandes equívocos em propostas desse tipo. Primeiro que, ao aterrar as áreas de alimentação dessas aves, elas naturalmente vão procurar outros pontos, o que aumentaria o risco de disseminação da doença. Além do mais, conhecidos os destinos de migração fica mais fácil elaborar estratégias de monitoramento e manter essas áreas longe de animais domésticos – esses sim, os mais prováveis disseminadores da patologia para humanos. Além disso, não é por serem migratórias que as aves podem voar para onde quiserem. Existem muitas rotas conhecidas, e, felizmente, elas são limitadas. O que dá margem para fazer simulações sobre as possibilidades de o vírus chegar ao Brasil através dos bichos alados.

Coincidências

O ornitólogo Fábio Olmos faz alguns exercícios hipotéticos. Por exemplo, sabe-se que existem algumas rotas do sudeste asiático para a Sibéria e de lá para a América do Norte. “Essa é uma via improvável, mas não impossível. Uma vez no continente americano, é uma questão de tempo para que essas aves, eventualmente com o vírus, cheguem ao Brasil”, diz. Imaginar que aves contaminadas na Europa migrem diretamente para a América do Sul é algo bem mais remoto, já que a maioria das rotas acontece na direção Norte-Sul, e não na Leste-Oeste.

Há, no entanto, albatrozes e petréis que em pequeno número chegam ao litoral brasileiro provenientes de ilhas próximas à Europa e à África, e até mesmo de países escandinavos. Mas, além de até agora esses animais não terem sido pegos com o vírus, os especialistas os consideram indivíduos vagantes – aqueles que, por alguma razão, como desorientação, chegam a lugares inusitados e geralmente pouco habitados. Segundo Olmos, os patos, cisnes e gansos já identificados na Europa com o H5N1 não são aves que atravessam o Oceano Atlântico de forma regular. Eles poderiam infectar espécies selvagens migratórias, mas são poucas as que sobrevivem a uma travessia dessas, ainda mais se estiverem doentes.

Comércio ilegal

“Agora, essa história de querer ter em casa bichos silvestres pode ter implicações sérias na saúde pública”, avisa Olmos. Mais ainda agora, com o H5N1 circulando por aí. O Brasil é conhecido por ser um grande fornecedor no mercado ilegal de animais silvestres. Todo ano, cerca de 38 milhões de bichos são retirados da nossa natureza por comércio que movimenta 25 bilhões de dólares em todo o mundo. No entanto, além de exportador, o país também importa ilegalmente diversos animais do exterior, que obviamente entram sem passar pelos exames sanitários obrigatórios em portos e aeroportos.

Segundo Dener Giovanini, presidente da Renctas, maior organização não-governamental brasileira de combate ao tráfico de animais, as mais comuns são aves como o canarinho belga, calopsitas e cacatuas (tipos de papagaios australianos), espécies africanas, avestruzes e muitas outras facilmente encontradas em lojas de bichos de estimação.

As autoridades sanitárias brasileiras dizem que estão se preparando há meses para a chegada do temido H5N1. No site do Ministério da Saúde há uma seção especial sobre gripe aviária, estratégias de prevenção e calhamaços de textos sobre um plano nacional de contingência. Mas Caio Graco Machado, presidente da Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO), lembra que o país deveria investir muito mais em pesquisas sobre transmissão de doenças pelas aves.

“São poucos os recursos aplicados nesse setor. O Ministério da Saúde e o Ministério de Ciência e Tecnologia deveriam abrir editais para financiar mais estudos e compra de equipamentos para laboratórios”. Machado conta que numa pesquisa realizada pelo Instituto Adolpho Lutz, em São Paulo, foram identificados 27 tipos de vírus, todos desconhecidos, numa única espécie de papagaio. “Não sabemos o que esses bichos podem estar carregando”, alerta.

Violento por tempo limitado

Fabio Olmos explica que qualquer vírus pode causar grande mortalidade se afetar populações que ainda não têm defesas naturais contra ele. E, no caso do perigoso H5N1, a tendência é que, depois de se espalhar com rapidez e causar muitas mortes, o vírus se torne menos violento. “Não interessa para o vírus matar seu hospedeiro. O que ele quer é aumentar a chance de infectar mais organismos”, diz. Como na seleção natural, tanto os mais fracos e quanto os mais virulentos tendem a dar lugar a cepas que sobrevivam por mais tempo. “É por isso que as epidemias nunca duram muito”.

As pessoas mais suscetíveis à infecção com o H5N1 são as que têm contato direto com aves, como aconteceu em áreas rurais da Europa e no sudeste asiático. Aqui no Brasil, essa convivência não é tão intensa como lá. Por isso, o risco de contaminação ainda é baixo. “O problema vai ser quando o vírus puder ser transmitido de pessoa para pessoa. Mas não dá para calcular se uma mutação dessas vai acontecer. É algo completamente aleatório”, diz Olmos.

A Sociedade Brasileira de Ornitologia recomenda que a melhor forma de se prevenir contra o vírus é não ter contato com aves domésticas nas áreas onde a doença já foi registrada e, em zonas costeiras, manter distância de animais que aparecerem mortos. Além, é claro, não incentivar o comércio ilegal de aves comprando animais exóticos.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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