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Políticos, mineradores, fazendeiros e ambientalistas discutem acréscimos e cortes no Parque da Serra da Canastra (MG). Não se sabe o que vai restar de natureza.

Andreia Fanzeres ·
27 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

Ué, cadê o parque que deveria estar aqui? Essa foi a pergunta que me ocorreu quando recebi um mapa turístico todo detalhado do Parque Nacional da Serra da Canastra, ao chegar num hotel de São Roque de Minas (MG). Quatro portarias, centro de visitantes, diversas estradas, sinalização, piscinas naturais, cachoeiras e ruínas de antigas construções eram alguns dos vários pontos indicados no encarte. Mas era pouco. Faltavam naquele mapa 130 mil dos 200 mil hectares do parque nacional.

Nada mais coerente. Desde que o parque foi criado, em 1972, com o objetivo principal de proteger as nascentes das bacias do rio São Francisco e Paraná, o governo federal só conseguiu a desapropriação e conseqüente regularização de 71.525 hectares das terras. Por isso, apenas dentro dessa área reconhecem-se as estruturas de um parque nacional. “A área regularizada está muito bem cuidada. E não temos problemas de caça”, diz Vicente Paulo Leite, chefe da unidade de conservação. De acordo com dados do Ibama, foram identificadas ali cerca de mil espécies da flora e 354 tipos de aves, entre elas o raro pato-mergulhão (Mergus octosetaceus). Animais de maior porte, como lobos-guarás e tamanduás, também freqüentam o parque e, com sorte, podem ser vistos no final do dia.

Problemas todo mundo tem, mesmo na área reduzida. A parte alta do parque, conhecida como Chapadão da Canastra, é cortada, de ponta a ponta, por uma estrada com cerca de 70 quilômetros de extensão, por onde podem passar veículos de carga. Existem também linhas de transmissão de Furnas e Cemig ornamentando a paisagem, além da exploração de caulim (um tipo de rocha de cor branca usada em pó para fabricação de papel), eventuais incêndios criminosos e a substituição da vegetação nativa por capim-gordura e braquiária em algumas zonas.

Mas onde o parque só existe no papel, sem controle do Ibama, as dores de cabeça são bem maiores. A área, conhecida como Chapadão da Babilônia, é ocupada por plantações de pinus, café, milho, pastagens para gado leiteiro e mineradoras. Para Wagner de Lima Moreira, chefe substituto do parque, a pecuária é a grande vilã. “Os fazendeiros colocam fogo no capim para ele rebrotar, queimando quase metade da área todo ano”, diz. O Ibama informa que 8 mil hectares foram profundamente alterados pela atividade de 30 mineradoras de quartzito. E o pior é que elas tiveram licenças ambientais concedidas pelo próprio instituto. “Ultimamente não temos renovado essas licenças, que foram dadas por outros escritórios”, alega Vicente Paulo Leite.

Dentro e fora

Um dos casos mais preocupantes é a exploração de diamantes na Serra da Canastra, numa área próxima a um de seus principais atrativos: a Casca d’Anta, primeira queda do rio São Francisco, com 186 metros de altura. Segundo Lucio Coelho, diretor-executivo da maior empresa interessada no negócio, a Samsul Mineração, foram feitos estudos preliminares em vários pontos, e em pelo menos um deles foi comprovada a viabilidade econômica da exploração. “Mesmo com autorização restrita a pesquisas, sabemos que eles já tiraram diamantes”, diz o chefe do parque. Suspeita desmentida pelo diretor de Ecossistemas do Ibama, Valmir Ortega. Ele informa que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) negou o pedido de concessão de lavra para a Samsul Mineração. O representante da mineradora diz que espera a solução da nova delimitação do parque para decidir suas próximas investidas.

Enquanto uns torcem para que certas áreas deixem de ser parque, outros defendem a proteção do que ficou praticamente abandonado. Para a bióloga Rosana Romero, da Universidade Federal de Uberlândia, a riqueza de flora nas proximidades da represa de Furnas justifica sua regularização, de fato, dentro do parque nacional. “Há espécies que só ocorrem ali e a área está completamente desprotegida. É uma região que definitivamente tem que ser conservada”, alerta.

O secretário de Meio Ambiente de São Roque de Minas, André Picardi, faz uma avaliação um pouco diferente da situação ecológica da região. Ao menos no que se refere à pecuária, ele acredita que a atividade é compatível com a preservação da natureza. “Nesses 12 anos em que vivo aqui, observo que as áreas regularizadas são muito parecidas com as que não sofreram desapropriação. Existe gado ali há mais de 300 anos e isso não alterou de forma substancial o meio ambiente”, considera. Não é o que parece: para onde quer que se olhe é possível perceber erosões, voçorocas e o solo exposto pela intensidade do pisoteio bovino. Picardi também opina sobre as queimadas. “Quando há incidência de fogo, você pode ver que o impacto é maior onde é parque. E quanto às espécies invasoras, elas são mais bem controladas fora da unidade do que dentro”.

Mas em um ponto a bióloga e o secretário concordam. Existem áreas tão alteradas na parte não regularizada que não vale mais a pena lutar para que aquilo fique dentro da unidade de conservação. “Algumas áreas dentro desses 130 mil hectares precisam ser repensadas, pois são caras e sem justificativa. Outras precisam ser adquiridas pelo Ibama, como os campos rupestres”, diz Rosana.

Mobilização pela demarcação

Em novembro de 2005, o Ibama surpreendeu a todos ao incluir no plano de manejo do parque, pela primeira vez, os 200 mil hectares oficiais, e não apenas os 71 mil protegidos na prática.

Com a notícia, todos se mexeram. Deputados federais com reduto eleitoral na região juntaram forças com donos de mineradoras e pecuaristas para evitar que o Ibama conquiste a área total do parque. Formaram uma “Frente Popular em Defesa da Serra da Canastra”, sob liderança do próprio secretário Picardi. A Casa Civil prometeu coordenar um grupo de trabalho interministerial para reavaliar os limites do parque, mas segundo ele, até agora nada aconteceu.

Muito mais adiantado parece um outro grupo de trabalho que atua na Comissão de Meio Ambiente no Congresso Nacional. Segundo Ortega, o Ibama acompanha os debates sobre a delimitação da Canastra e reconhece que os deputados têm autonomia para apresentar um projeto de lei que defina outros limites para a unidade de conservação. “Caso seja necessário fazer ajustes, queremos executá-los assegurando as condições de conservação, retirando algumas áreas já bastante degradadas e incluindo outras”, diz.

Por exemplo: foi descoberta uma nascente do São Francisco fora da área original do parque, o que sugere que, nessa reavaliação, ela seja incluída. Leite reconhece que a nascente do Samburá, no município de Medeiros, drena uma área maior, tem maior vazão e extensão do que a nascente considerada “oficial” pelo parque. “A do Samburá é a verdadeira nascente do Velho Chico”. Mas a região onde se encontra está totalmente alterada, sufocada por plantações de milho, batata e soja. “O ideal seria criar um outro modelo para proteger a nascente, mas não faz sentido querer anexar ao parque tudo o que está no entorno”, opina.

Cinco mil mensais

Enquanto o Ibama aguarda o início do ano legislativo para fechar as propostas de redelimitação, segue investindo em desapropriações. Ortega está otimista. Diz que os recursos para indenizações já estão a caminho, mas não dá prazos. “Queremos acelerar a regularização fundiária. Posso dizer que essa quantia deve ser algo entre 9 e 11 milhões de reais”. Um dinheiro razoável, mas insuficiente pelas contas de Picardi. “Teria que ter R$ 500 milhões para fazer todas as desapropriações, de acordo com um levantamento que fiz junto aos escritórios imobiliários da região”.

A escala de valores desce a ladeira quando o assunto é a gestão do parque. Míseros 5 mil reais por mês são destinados pelo governo para a administração da área e dos conflitos que a cercam. A receita própria não faz diferença: vai toda para Brasília. “Arrecadamos de R$ 130 mil a 150 mil reais por ano nas portarias, mas infelizmente não podemos fazer a gestão desse recurso”, lamenta Leite.

Para colocar em prática o novo plano de manejo, foram estimados mais R$ 8 milhões. Mas como esse dinheiro não tem data pra chegar, a chefia do parque aposta suas fichas no pagamento de compensações ambientais das hidrelétricas localizadas dentro da zona de amortecimento, e das linhas de transmissão que cortam a unidade. Ortega explica que não pode aplicar retroativamente a lei de compensações, que nasceu em 2000, porque ela está vinculada ao licenciamento do empreendimento. Mas tem uma boa notícia. “Nós consolidamos no final do ano passado com Furnas um pacote grande de compensações ambientais na ordem de R$ 24 milhões, atendendo a 19 unidades de conservação de Minas Gerais. Entre elas a Serra da Canastra”. É esperar pra ver.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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