Reportagens

Gravidez de risco

Raias saem das águas profundas para ter seus filhotes no litoral gaúcho. Mas boa parte não volta. Vítimas da pesca ilegal, estão ameaçadas de extinção.

Cristina Ávila ·
24 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

O verão atrai para o litoral as raias-viola. Elas vão parir nos próximos meses, bem pertinho da praia, depois de um ano de gestação. É o momento em que chegam também os pescadores, que provocam verdadeira chacina no berçário. Esses peixes vivem entre São Paulo e a Argentina, mas é na costa gaúcha que se concentram. Tanto que somente no Rio Grande do Sul a pescaria de raias se mantém como uma tradição.

A raia-viola estará nas peixarias do Mercado Público de Porto Alegre até o final deste mês, como acontece todo ano. É um dos peixes mais baratos nas bancas, por volta de R$ 4 o quilo. Longe de ser uma carne nobre, geralmente é usada no preparo de bolinhos. Comercializada para vários estados brasileiros, por empresas regulares e também por clandestinas, a espécie Rhinobatos horkelii está na lista oficial de animais ameaçados de extinção no Rio Grande do Sul.

”Os peixes são negligenciados na legislação brasileira de proteção à fauna. Não são considerados como fauna, mas como recursos pesqueiros. A raia-viola é uma das exceções. Há pouco mais de um ano está protegida por lei, pela Instrução Normativa 5 do Ministério do Meio Ambiente. A pesca é crime ambiental. Mas o que fazer com os pescadores que tradicionalmente pescam? Prendê-los?”, pergunta o oceanógrafo Sandro Klippel, da ONG gaúcha Igaré.

Entre 2001 e 2005, Klippel integrou a equipe do projeto “Salvar Seláquios do Sul do Brasil”, da Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Seláquios é o nome da subclasse de peixes formada por tubarões e raias, que têm em comum o fato de serem predadores e cartilaginosos. A pesquisa foi coordenada por Klippel e pelo biólogo Carolus Maria Vooren em cerca de 800 quilômetros da costa entre o Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina, e o Chuí, no Rio Grande do Sul. Os resultados serão publicados até o final do ano em um livro editado pela universidade, que terá o título “Ações para a conservação de tubarões e raias da Plataforma Sul” e distribuição gratuita para instituições.

Segundo o oceanógrafo, as raias – ou arraias – vivem o resto do ano a cerca de 180 quilômetros da praia e em profundidades de até 200 metros. Ou seja, bastante protegidas da predação humana. Mas quando chega o verão, começam a se aproximar do litoral, onde permanecem um mês, grávidas. É aí que viram pescaria farta e fácil.

Os partos, de em média sete filhotes, geralmente ocorrem em janeiro e fevereiro. O desenvolvimento dos embriões se completa nas águas costeiras, em profundidades menores que 20 metros. Após nova fecundação, em março, as que sobram da matança voltam a migrar para águas mais frias e profundas, onde permanecem até o próximo verão.

Criticamente em perigo

Existem vários tipos de pescaria da raia-viola. O método “rede de arrastão” é o mais usado no litoral sul do estado. Uma rede de malha fina com 800 metros de largura é jogada a cerca de 300 metros da praia, cercando o cardume. Nas praias ao norte, é preferida a malha mais larga, que prende o animal quando ele tenta atravessá-la. Muitos pescadores costumam abrir os peixes para a retirada das vísceras e dos filhotes, descartando-os como lixo.

”Nos últimos 20 a 30 anos, o número de raias no estado diminuiu de 85% a 90%, e embora a espécie apareça na categoria ‘vulnerável, com alto risco de extinção’, no Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção no Rio Grande do Sul, nós sabemos que já chegou à categoria ‘criticamente em perigo’, que significa risco extremo de extinção”, ressalta Sandro Klippel.

O livro informa que a população da raia-viola está em declínio. O desembarque da espécie no porto de Rio Grande aumentou de 100 toneladas, em 1960, para 1.300 toneladas em 1980. A obra acentua a ineficiência da fiscalização, embora existam “inúmeras portarias emitidas pelos órgãos federais responsáveis pelo controle de pesca, que regulamentam aspectos como o tamanho mínimo permitido, época de defeso, artes de pesca consideradas predatórias, limitação do esforço de pesca, entre outros”.

Um dos indícios da redução da população é o crescente esforço dos pescadores, ano após ano, para capturar o mesmo número de animais. Outros foram colhidos nas expedições científicas realizadas desde 2001, a última recém-chegada ao porto de Rio Grande.

Para Sandro Klippel, uma das formas de enfrentar o problema é a criação de áreas de proteção integral no mar, como a que existe em Abrolhos. Outra é a educação dos consumidores de peixes, para que deixem de comprar a espécie. “Os peixes não são belos e não têm o apelo das onças e micos-leões dourados, por isso não temos muitos parceiros na luta pela proteção. A opinião pública não liga muito para as espécies marinhas, com exceções de golfinhos e baleias”, lamenta. Ele lembra que os 8 milhões de km² da área terrestre nacional têm 7% protegidos por unidades de conservação, enquanto os 3 milhões de km² do Atlântico brasileiro só têm resguardados 0,39%.

A chefe do escritório regional do Ibama em Rio Grande, Maria Odete Pereira, diz que a fiscalização não é suficiente para evitar a chacina. “Temos autuado e apreendido pescado, mas infelizmente depois da pesca. O problema é que a Instrução Normativa 5 foi criada de cima para a baixo. Se tivesse sido criada em conjunto com os pescadores, seria mais fácil que eles entendessem que precisam desse recurso e por isso precisam preservá-lo. Eles não são marginais. O que fazem é minimizar a situação, que consideram de pouca importância”.

Maria Odete diz que é comum encontrar em restaurantes peixes provenientes da atividade proibida. “A gente encontra raia-viola até mesmo em restaurantes ‘naturebas’ que têm proposta a favor da ecologia. A comunidade está totalmente desinformada sobre a proibição de pesca de certos peixes. A sociedade precisa ser responsabilizada, mas isso só se consegue com informação e com a construção de regras junto com os pescadores e armadores”, queixa-se.

* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre e tem 25 anos de profissão.

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