Reportagens

Cobras criadas

Duas jararacas sofreram mutações para sobreviver em ilhas do litoral paulista. Livro do Instituto Butantan fala das serpentes ilhoas e de seu rico hábitat.

Lorenzo Aldé ·
11 de novembro de 2005 · 18 anos atrás


Pode ser lenda, mas o conhecimento científico justifica o temor. A ilha é um dos locais com maior concentração de cobras venenosas do mundo. Na verdade, uma única espécie: a jararaca ilhoa (Bothrops insularis, foto abaixo), que só existe ali. São 2 mil animais num espaço de 78 hectares. E elas de fato podem matar: são cinco vezes mais venenosas do que as do continente.


Ambas merecem a distinção. As duas jararacas ilhoas são exemplos fantásticos de capacidade evolutiva. Isoladas do continente com o fim da última glaciação, há cerca de 12 mil anos, elas viram seus habitats se modificarem e para sobreviver precisaram desenvolver, geração após geração, novas características físicas e de comportamento. Com o tempo, tornaram-se completamente diferentes de sua ancestral, a Bothrops jararaca, jararaca comum.

O principal motivo das alterações genéticas foi a escassez de alimento. Habituadas, em terra, a comer pequenos mamíferos como ratos e gambás, as jararacas se viram obrigadas a buscar outras dietas depois que o alimento se extinguiu, em sua pequena floresta ilhada em alto-mar. O mais interessante é que, partindo do mesmo ponto e da mesma limitação, as duas espécies tornaram-se diferentes também entre si.

Mudança de cardápio


A jararaca ilhoa de Queimada Grande teve melhor sorte. O veneno aguçado foi a solução para poder atacar aves, um hábito único, até pelas dificuldades envolvidas na caçada. Por exemplo: se para comer suas presas tradicionais bastava picá-las, esperar o veneno fazer efeito e ir buscá-las onde caíssem mortas, com aves isso não dá certo. Soltas para voar, mesmo que morram mais à frente já terão se afastado demais da cobra que pretende devorá-las. O que faz a jararaca, então? Além de picar, segura a pobre ave na boca até que ela morra. Também esta, uma habilidade única. E mais: para alcançar suas vítimas, elas passaram a morar em cima das árvores e desenvolveram hábitos diúrnos. Em contrapartida, só comem aves migratórias, pois as locais também se adaptaram à ameaça das jararacas, e obviamente mantêm distância delas.

Não à toa, a jararaca ilhoa é uma “serpente que tem deixado os herpetólogos perplexos”, como diz o livro, editado por Luiz Felipe Heide Aranha Moura, da ong Ama-Brasil. Ainda há muito o que estudar sobre elas, principalmente em relação à reprodução, que inclui estratégias como a partenogênese (por divisão de cromossomas, sem a participação do macho) e a presença de órgãos copulatórios na fêmeas. E, apesar da superpopulação, entender por que o número de cobras vem diminuindo em Queimada Grande nas últimas décadas.

Afinal, como afirma o livro, “a presença de jararacas é um dos fatores importantes na preservação da ilha, pelo temor que despertam nos homens”. Para não depender só delas, e preservar também a rica fauna das águas do entorno, a ong Conservação Internacional está em campanha para fazer da ilha de Queimada Grande um Parque Nacional Marinho.

A riqueza de Alcatrazes


O trabalho de descrição das espécies que habitam suas seis ilhas, uma ilhota, seis lajes e dois parcéis (formação de arrecifes) arrebanhou para o livro colaboradores de várias áreas e instituições: Instituto Florestal de São Paulo, Projeto Tamar, Museu de História Natural da Unicamp, Ibama e Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro (SDLB). Suas conclusões revelam um cenário natural realmente impressionante.


No ar, 80 espécies de aves freqüentam o arquipélago de Alcatrazes, desde as marinhas até as típicas de Mata Atlântica, como o beija-flor, e migratórias como o falcão peregrino e o pingüim-de-magalhães. Com 10.300 indivíduos residentes, trata-se da maior concentração de aves marinhas do Sudeste brasileiro. 

Debaixo d’água, 150 espécies de peixes, também endêmicos — como a enguia de jardim — ou ameaçados — como o peixe-borboleta, o peixe-néon e o cação-lixa. E a ilustre visita de vários mamíferos marinhos, como a baleia-de-bryde, o golfinho-pintado-do-atlântico e a orca. Para coroar tamanha diversidade, abrigam-se em Alcatrazes todas as cinco espécies de tartarugas marinhas brasileiras, entre elas a tartaruga-verde, que, além dali e de Queimada Grande, só faz ninhos em Trindade, Atol das Rocas e Fernando de Noronha.


A proposta está parada em Brasília, e o pessoal do Projeto Alcatrazes enxerga um lobby pesado contra ele, partindo de outra instituição que também assina o livro Serpentes Ilhoas: a Marinha do Brasil.

Guerra nos bastidores

Na década de 70, a Marinha escolheu um costão rochoso na ilha de Alcatrazes como alvo para seus treinamentos de tiro. Como na época não existia a obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental, e o arquipélago era pouco conhecido pelos biólogos e conservacionistas, os bombardeios seguiram tranqüilamente.

Segundo Fausto Pires de Campos, coordenador do Projeto Alcatrazes e um dos editores científicos do livro, as atividades chegaram a ser mensais nos anos 80. Hoje acontecem, em média, a cada oito meses, mas os marinheiros promovem queimadas para espantar as jararacas e abrem trilhas na mata para pintar os alvos. Além do fogo intencional, o impacto dos tiros provoca faíscas que podem resultar em incêndios. “É um crime”, resume Campos.

Em 1991, entidades ambientalistas entraram com uma ação civil pública contra os bombardeios, alegando que, sem estudo de impacto ambiental, eles não poderiam prosseguir. No ano seguinte, a Justiça concedeu liminar suspendendo a atividade, mas ela foi derrubada pela Marinha em 1994.

O caso ficou parado por cerca de dez anos, até que em outubro de 2004 um cinegrafista registrou um incêndio provocado pelos tiros em Alcatrazes. A imagem foi parar no Jornal Nacional e o Ibama foi chamado às falas. Decidiu multar a Marinha em pouco mais de 1 milhão de reais, e embargou os treinamentos. Decisão que vale até hoje.

O oficial responsável pelas atividades em Alcatraz, do 8° Comando Naval de São Paulo, estava viajando e por isso não pôde responder a O Eco. Mas na apresentação de Serpentes Ilhoas, o vice-almirante Marcélio Castro de Carmo Pereira afirma que a Marinha “utiliza-se de porção pequena” de Alcatraz, e mesmo assim “de forma sustentável e em harmonia com as limitações ecológicas”.

Fausto Pires de Campos contesta, com uma pergunta: “Como é que uma atividade cujo propósito é destruir pode ser inofensiva para o meio ambiente?”. E reforça a necessidade do estudo ambiental com um exemplo concreto: a recém-descoberta rã-de-Alcatrazes, que só existe num único córrego da região conhecida como Saco do Funil, vive a 100 metros da área de bombardeios.

Em posição privilegiada para analisar o caso está o almirante Ibsen Gusmão Câmara, notório conservacionista com uma vida de serviços prestados à Marinha. Ele torce por uma saída negociada. “Não vejo que estrago maior esses exercícios possam causar. Primeiro porque são esporádicos. Depois porque são feitos sem carga explosiva. Por fim, porque acontecem num costão rochoso, sem vegetação. Ocasionalmente, pode ocorrer um incêndio, mas a Marinha precisa de um lugar para fazer esse treinamento”, defende.

Ele lembra que, antes de Alcatrazes, os exercícios eram feitos em parceria com a Marinha americana nas bases de Vieques, em Porto Rico. Mas além de serem muito dispendiosas, lá sim as manobras causavam grandes estragos ambientais. Muito mais por causa dos poderosos armamentos americanos, entre eles os nucleares, do que dos nossos pobres tiros, é claro. Alcatrazes foi a melhor solução encontrada pela Marinha por se localizar perto do Rio de Janeiro, onde está a maioria dos navios. “Concordo que deve haver uma reavaliação do impacto, mas vejo que há uma certa má vontade dos ambientalistas com a Marinha. Vá lá que os tiros assustem as aves e provoquem revoadas, mas não deve haver um prejuízo muito maior”, conclui.

Assim se espera. Afinal, a segurança nacional não pode negar defesa a um pedaço de Brasil tão raro, rico e frágil.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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