Reportagens

Os seca-laranjeira

Empresas do consórcio de Barra Grande agora querem matar de sede uma planta rara, para implantar nova hidrelétrica. Ambientalistas começam a fazer barulho.

Renan Antunes de Oliveira ·
18 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Anote o nome desta plantinha insignificante, mirrada, espinhosa, sem frutos, meio seca, que dá uma florzinha vermelha, puxando pro púrpura: Raulinoa echinata. Foi batizada assim em homenagem ao padre alemão Raulino Reitz, pesquisador atento e incansável da flora catarinense, hoje no céu.

Nem com a ajuda do santo homem lá em cima ela está protegida: algumas das pessoas mais ricas e influentes do estado estão dispostas a acabar com ela em nome do progresso, tudo porque a plantinha atrapalha uma hidrelétrica planejada pros grotões de Santa Catarina.

Desde que a presença dela na área de influência da futura Usina de Salto Pilão foi detectada pelo EIA-Rima, o estudo obrigatório do impacto ambiental da obra, ricos investidores, burocratas insensíveis e funcionários de órgãos supostamente fiscalizadores do meio ambiente em todos os escalões ficam olhando uns para os outros e todos para os lados, sem saber o que fazer com ela.

O pessoal também faz que não sabe ler a Lei da Biodiversidade, que garante o lugar da raulinoa no solo brasileiro. Tramaram até um holocausto verde: um prefeito chegou a montar um batalhão de colhedores treinados para ir aos grotões arrancar todos os pés possíveis do arbusto – de olho na recompensa de uma empreiteira.

A insanidade não vingou porque o bando era meio preguiçoso e a raulinoa reina mesmo no escondidaço, uma curva do rio tão complicada de chegar que só de rafting.

Esta azarada espécie de laranjeira precisa de defesa porque só existe num ponto do planeta, nas pedregosas margens do rio Itajaí-açu, no trecho do triângulo Lontras-Apiúna-Ibirama. Está condenada porque o projeto prevê um duto forçado da cabeceira do rio até um ponto mais à frente, dando uma volta nos canteiros dela e deixando-a na maior secura.

Irônica é a sorte das plantas no caminho de hidrelétricas. Em Barra Grande, no rio Pelotas, o consórcio Baesa usou um EIA-Rima fajuto para ignorar uma floresta de araucária que teria que engolir com seu lago. Em Salto Pilão, o EIA viu a raulinoa, mas não fez caso: não se vai alagar nada – só cortar a água dela. Ou seja: umas hidrelétricas afogam, outras estrangulam.

A estranguladora Salto Pilão tem know how como afogadora: suas principais acionistas são a Votorantim e a Camargo Corrêa, duas empresas também participantes do consórcio Baesa, aquele de Barra Grande.

O BNDES recém liberou dinheiro público para estas empresas privadas construírem o novo aproveitamento. Salto Pilão vai gerar 181 MW e deve custar 500 milhões, com previsão de funcionamento para daqui a quatro anos.

Quem está na defesa da raulinoa é um outro tipo de consórcio: a Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses (FEEC). Os ambientalistas sob o guarda-chuva da FEEC andavam meio calados porque Salto Pilão era apenas uma usina de papel, até que o dinheiro para as obras começou a jorrar da cachoeira do governo, semanas atrás.

“Agora a ameaça é séria”, diz o professor João de Deus Medeiros, do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um raulinoaísta de primeira hora. Ele conta que a FEEC vem trabalhando na surdina desde 2001. Conseguiu da Celesc (Centrais Elétricas de Santa Catarina), uma das participantes do consórcio, o compromisso de poupar a planta – mas houve troca de comando no órgão e foi-se embora a pouca boa vontade com o verde.

Você defenderia ou pelo menos sabe como é a Raulinoa echinata? Ela é uma laranjeirinha que não dá laranja, ou, da mesma família, parece um limoeiro sequinho, que não dá limão. O povo ribeirinho a chama de “sarandi”. Mas pra sarandi a gente tem que ir a um dicionário e usar da imaginação: os índios usavam a palavra para descrever tanto um arbusto como uma ilha.

Nossa raulinoa é bem nossa porque sua única ocorrência conhecida na galáxia se dá caprichosamente em apenas 14 quilômetros do rio Itajaí-açu. A outra forma notável de vida do pedaço é a Vera Fischer. Mas a planta é mais nova do que a atriz: foi descoberta e descrita para a ciência em 1961.

A plantinha tem lá algum poder medicinal. Pesquisadores andam querendo saber se ela é boa contra o Mal de Chagas e outros achaques – mas seu valor comercial/medicinal/social ainda não foi claramente identificado.

O caso da sobrevivência da raulinoa já está no Ministério Público. Em março do ano passado a Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) e a FEEC protocolaram na Procuradoria da República local representação do movimento ambientalista, questionando o licenciamento ambiental de Salto Pilão.

A Fatma, fundação ambiental estadual, foi então obrigada a produzir um segundo estudo na região. Mas empurra com a barriga. A FEEC já levou o caso para a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, mas ela ficou muda como uma planta, sem prometer nada: sequer cobrou da Fatma os novos estudos sobre o assunto. Posição não-assumida: se varrerem a raulinoa do planeta, tanto faz.

A briga pela sobrevivência da raulinoa vinha se dando sob o silêncio da imprensa e no total desprezo da elite industrial catarinense, interessada na energia.

Mas agora ela vai ganhar a mídia mundial: o Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica entrou na briga contra a Fatma e contra Marina. Os ambientalistas vão denunciar o descaso com a plantinha à ONU. E se preparam desde já para fazer barulho durante o COP-8, encontro entre os países signatários da Convenção da Diversidade Biológica, previsto para março de 2006, em Curitiba.

Com uma forcinha do padre Raulino, talvez consigam mudar a tempo o curso dessas águas pra lá de conhecidas.

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