Reportagens

Floresta de incertezas

Incentivado por gente do governo do Pará, Benedito Rocha grilou um pedaço de terra. Hoje acha que sua vida piorou e tem dúvidas se quer mesmo ficar onde está.

Manoel Francisco Brito ·
29 de julho de 2005 · 19 anos atrás

A segunda frente de invasões que a Orsa Florestal que enfrenta no Jari tem um clima bem diferente da primeira, onde estão os madeireiros. A relação entre invasores e invadidos é surpreendentemente cordial. Conversam entre si como se não estivessem em lados opostos de uma mesma disputa. Ela aconteceu numa Área de Preservação Permanente cheia de igarapés, próxima a uma região há muito desmatada e onde hoje crescem plantações de eucaliptos. O número de invasores é reduzido. São 16, trabalhadores ligados a uma associação extrativista, a Pró-Vida, fundada há pouco mais de dois anos. Raramente estão por lá. Poucos são os que se dispuseram a construir barracos (foto) nos terrenos ocupados, lotes com tamanho médio de 15 hectares. A maioria desmatou cerca de um hectare a machadadas dos terrenos invadidos, mas preferiram construir acampamentos – sinal de que não têm muita certeza se ficarão por lá.

Estive na área na última semana de julho com funcionários do Jari que fazem vistoria periódica do local. Encontramos apenas duas pessoas e uma delas, um menino que deu o nome de Deivid, nem invasor a rigor era. Mora em Macapá. Disse que veio passar férias com seu tio, o “Macarrão”, ele sim o ocupante do terreno, onde abriu uma clareira e fêz apenas um acampamento. O outro apareceu na hora em que nos preparávamos para sair de outra área, encostada num igarapé, onde achamos, igualmente, árvores derrubadas e outro acampamento – uma base construída com toras de árvores finas apoiadas em estacas e coberta por um plástico azul.

Veio a passos largos e não parecia ser ameaçador. Não era. Deu bom dia e ao me ver fumando, foi logo pedindo um cigarro. Maltrapilho, sujo de pó e lama da cabeça aos pés e com a boca escurecida pelos dentes mal tratados e o consumo de açaí, sentou-se num tronco que derubou com um machado e soltou o verbo. Deu o nome, Benedito Wagner da Rocha (foto), a idade, 40 anos, e pelo que contou, há muito não sabe o que é viver sem o nome Jari à sua volta. Ele mora em Laranjal do Jari, Amapá, cidade às margens do rio Jari, que faz fronteira com as terras onde fica Projeto Jari. Há 20 anos, ele vive de catar açaí nas florestas que hoje estão sob o contrôle da Orsa Florestal desde fins da década de 60, quando o bilionário americano Daniel Ludwig começou a materializar sua idéia de erguer uma fábrica de celulose bem no meio do que era então uma das regiões mais inóspitas da Amazônia.

Rocha sempre levou uma vida dura. Ela começou a melhorar um pouco no final dos anos 90, quando fundou com outros catadores de açaí e a Associação dos Trabalhadores em Extração do Açaí dos Estados do Pará e do Amapá (ATEAEPA). “Antes da ATEAEPA surgir, a gente ganhava 2, 3 reais pela lata de açai que catávamos”, diz Guilherme Ribeiro, atual presidente da associação. Naquela época, início da década de 90, pelo fruto colhido, nem dinheiro vinha. Trocava-se tudo por comida. “Não tinhamos nenhum poder de negociação com os atravessadores”. Hoje, a lata, no período de fruta madura, que vai de maio à outubro, é vendida por 8, 10 reais. Na entressafra, a produtividade cai bastante. Mas a lata sai pelo dobro do preço. Há dois anos, por conta de uma discussão dentro da ATEAEPA sobre qual a melhor maneira de tratar o açaí que cresce no mato durante os meses em que ele ainda está amadurecendo, a vida de Rocha mudou radicalmente.

Ele continua catando açaí. Mas meteu-se numa confusão que começou com uma dissidência na ATEAEPA, continuou com a fundação de uma nova associação extrativista, a Pró-Vida, e deu numa ação de ocupação de terras que ainda parece longe de uma solução. De quebra, ele conta que o processo todo o forçou a entregar um naco razoável de suas escassas economias a um aproveitador e a um funcionário do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) chamado Paulo Rosso. Sua vida mudou muito e ele não sabe exatamente onde é que tudo isso vai acabar. Teme, no entanto, que no fim dessa estrada esteja a morte, sua e de outras pessoas, coisa que o deixa muito assustado. E não por causa da reação do Jari e da sua controladora, a Orsa Florestal. A empresa decidiu não enfrentar os invasores. Está deixando tudo correr nas mãos da justiça. Rocha no fundo acredita que meteu-se numa disputa sobre a qual não detém muita informação.

“Eu não tenho coragem de morrer e muito menos de matar por uma lata de açaí”, diz, sem conseguir explicar extatamente porque enxerga a possibilidade de a situação em que se encontra ficar violenta. Há alguns meses, instado por Rosso, uma mulher que Rocha diz ser funcionária do Iterpa e que conhece apenas pelo nome de Leonora e pela liderança da Pró-Vida, ele ocupa um lote de 15 hectares às margens de um igarapé onde desmatou com um machado cerca de 1 hectare para montar o acampamento (foto). Mas não tem certeza se deve se estabelecer por lá. Por isso não construiu um barraco. “Venho e volto todo dia para Laranjal no caminhão contratado pela Pró-Vida para recolher o açaí que a gente cata”, diz ele. Pergunto como ele acabou ocupando um terreno numa área que frequenta sem problemas há duas décadas para catar açaí. “Eu vou contar a verdade para o senhor”, diz.

A história começa há uns dois anos, quando a direção da ATEAEPA, Ribeiro à frente, reuniu os associados e propôs uma nova maneira de coleta do fruto durante a entressafra. “O pessoal estava catando açaí verde ainda, prejudicando muito a safra”, diz Ribeiro. A proposta era parar por 30 dias com a coleta e a partir daí, até maio, quando tem início a estação do açaí, entrar na floresta para pegar o fruto apenas 4 dias por semana. “Para mim ficava ruim. Tenho 8 filhos. Como é que eles iam comer? Tinha gente com o mesmo problema”, diz Rocha. Ele se lembra que foi nessa hora que surgiu em Laranjal do Jari um tal Valdivino, um personagem que, pelo seu relato, tem toda a pinta de ser um aproveitador de “rachas” dentro do movimento extrativista na região e da boa-fé das pessoas.

Valdivino Eterno Cardoso apareceu apresentando-se como sociólogo. “Ele dizia que ia fazer uma revolução no extrativismo”, recorda-se Rocha. Propunha uma forma de trabalho que juntasse a extração do açaí com o plantio de côco, banana e mandioca. A idéia parecia boa. Mas para começar, faltava a terra. Disso se encarregou a dupla do Iterpa, órgão cuja função primordial deveria ser o de zelar pela estabilidade fundiária e um mínimo de tranquilidade no campo no Pará. “O Paulo e a moça disseram que a gente podia ocupar aqui, que o Jari não tinha título nessa área”, diz Rocha. Mesmo que esse fosse o caso, tratava-se de uma APP, área que pela lei federal deveria permanecer intocada (foto). Mas antes de a invasão começar, a Pró-Vida precisava se preparar.

Tinha que ser constituída e, para sustentar juridicamente uma eventual ocupação, cadastrar os seus membros que se dispunham a ocupar essas terras – Rocha diz que dos 48 que formaram a associação, 16 toparam a empreitada – no Incra. “Eu dei ao Valdivino para fazer tudo isso cerca de 300 reais”, conta. Não tem idéia de como exatamente o dinheiro foi empregado. No ano passado, diz Ribeiro, o presidente da ATEAEPA, quando as invasões ainda nem tinham acontecido, ensaiou-se uma espécie de armistício entre a associação e seus dissidentes estavam se amainando. Eles se reuniram sob os auspícios do Ibama, no final de 2004, na Estação Ecológica do Jari, que fica ao Norte das terras controladas pela empresa, com outras duas associações extrativistas da região.

Elaboraram um documento com regras de convivência que fez com que o Ibama expandisse as áreas para a coleta do açaí. “Daí o Rosso apareceu novamente com o Valdivino e o pessoal voltou a falar em invasão”, conta Ribeiro. A ocupação aconteceu no início do ano e logo os invasores começaram a desmatar, jogando troncos e galhos sobre os igarapés, represando o curso das águas. A Pró-Vida fechou para seus associados terrenos onde antes todo mundo catava. Valdivino sumiu e foi sucedido na liderança da Pró-Vida por Humberto Pessoa, que continuou a ter ao seu lado a presença de Rosso, do Iterpa.

A Jari denunciou as ações de Rosso ao órgão. Há três semanas, Rosyan Brito, presidente do Iterpa, me disse em entrevista pelo telefone que tinha ordenado a saída de Rosso da região. Mas pelo menos até a segunda-feira da última semana de julho, ele ainda estava por lá, andando pelas áreas invadidas para coletar dinheiro para financiar sua ida e a de Pessoa até Belém. “Não sei bem para que”, diz Rocha. “Sei que ele pegou de todos aqui uns 400 reais. Eu só dei 10”. Seja lá o que vai acontecer, Rocha tem pelo menos uma certeza. Sabe que sua vida não melhorou. “Para falar a verdade, ficou pior”, admite.

A produção de açaí diminuiu. “Antes eu catava no chão. Agora, tenho que sempre subir na árvore”, conta. Tem uma leve suspeita que a razão para isso tem a ver com o desmatamento que foi feito na área. Sobre o tal projeto de agricultura familiar pregado pela direção da Pró-Vida, Rocha também tem dúvidas. Sabe que precisa de algum dinheiro para que ele seja iniciado e não tem idéia de onde arranjá-lo. Pergunta-se ainda se ele sabe plantar. Diante da súbita escassez do açaí, da incerteza de seu futuro como agricultor, ainda é obrigado a lidar com a tensão gerada pela sua atual situação. “Não sei se posso estar aqui. O Iterpa diz que sim, mas ao certo, a gente não sabe”, diz. “Se tivesse um emprego, caia fora daqui, fora dessa vida”.

* O repórter esteve na região do Jari em final de julho a convite da Orsa Florestal.

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Comentários 6

  1. valdenilson diz:

    Esse bandido do Valdivino tem que ser preso!


    1. U s t n diz:

      P
      Vv realmente não conhece esse Grande lider….


  2. mara pinho diz:

    É um safado esse valdivino, alugou minha casa em macapá, passou alguns meses e depois foi embora sem me devolver as chaves, deixando contas pra eu pagar e minha casa numa situação horrivel. Verdadeiro bandido.


  3. marcio Santos diz:

    Nos ajudem a pegar esse tal de Valdivino.
    Ele aplicou um golpe em mais de mil famílias de agricultores em Porto grande Tartarugalzinho e Macapá!


  4. marcio dantos diz:

    Esse tal de Valdivino Eterno Cardoso fez o mesmo e até pior aqui no porto grande e em Macapá. Ele está foragido desde 20/09/ 2015. Eu também fui enganado e sei que ele enganou muita gente aqui.


    1. U s t n diz:

      Vc devia conhecer melhor esse Grande lider que ao longo de sua vida ajudou assentar mais de 5.000 familias por todo o Brasil a fora..contribuindo com a reforma agraria