Reportagens

De olho no Catarina

Cientistas concluem que o evento foi mesmo um furacão e alertam que outros estão a caminho. Mas admitem: o país ainda não está preparado para os próximos.

Andreia Fanzeres ·
1 de julho de 2005 · 19 anos atrás

“O céu estava estrelado, a temperatura agradável, deu até para tirar um sono gostoso”. Essa era a sensação do pesquisador Reinaldo Haas (foto) no início da madrugada do dia 28 de março de 2004. Mas ele segurava sua ansiedade à beira do mar, na cidadezinha catarinense de Balneário Arroio do Silva. Uma hora e meia depois, ventos de até 180 km/h voltaram a soprar assustadoramente, chegando com o barulho de uma turbina de avião e derrubando tudo o que estivesse na frente. Nenhuma surpresa para o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele estava ali para isso. E saiu inteiro para contar a calmaria que sentiu no olho do primeiro furacão brasileiro, e a agitação de antes e depois.

Furacão foi o nome que ganhou o inédito fenômeno que atingiu as regiões norte do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina aos olhos de Haas, de outros três pesquisadores da UFSC e do motorista do grupo (foto, de colete preto). Ao tomarem conhecimento do inesperado evento atmosférico que se aproximava, os primeiros caçadores de furacões do país entraram numa caminhonete e tentaram escolher o local exato onde ele tocaria o continente para coletar dados. Acertaram na mosca. Só esqueceram de se preparar adequadamente para aquilo. “Foi tudo feito de supetão. Colocamos nossas vidas em risco ao ficarmos sob um quiosque. Tivemos sorte porque o mar não avançou sobre nós. Tinha gente da equipe que não levou nem dinheiro ou roupas secas”, disse Haas, que repetiria a dose se surgisse nova oportunidade.

Quanto a isso, ele pode ficar despreocupado. Segundo os pesquisadores que se reuniram entre os dias 28 e 29 de junho no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em São José dos Campos (SP), a ocorrência de outro furacão é uma questão de tempo. “Se aconteceu uma vez, pode acontecer duas”, disse o australiano Greg Holland, um dos diretores do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR) dos Estados Unidos.

Naquele primeiro semestre de 2004, quatro episódios semelhantes atingiram o litoral do estado. Mas o Catarina foi o mais forte deles, e apresentou características incomuns quanto à estrutura térmica e velocidade dos ventos, além de ter trajetória leste-oeste, algo jamais visto no Atlântico Sul até então. Mas não foi um estranho sem causa. Segundo o professor Pedro Dias, da Universidade de São Paulo (USP), outras excepcionalidades ocorreram na mesma época, indicando uma nova condição meteorológica numa escala mais ampla. “O verão foi o mais frio em 25 anos na região Sudeste e as chuvas foram bem acima do normal, provocando graves inundações no Nordeste. Em janeiro daquele ano foi identificada uma tempestade tropical atípica em Salvador, além de anomalias no pólo sul, por exemplo”.

A partir do dia 26 de março de 2004 foram emitidos alertas e a população se mobilizou para sair da imprevisível rota do fenômeno. Na opinião de Haas, de todos os lugares onde o furacão poderia chegar, aquele foi o menos pior. “Tinha relativamente pouca gente e muitas árvores serviram de quebra-vento. Além do mais, os catarinenses estavam acostumados a tempestades e agiram muito bem”, conta. Uma pessoa morreu em terra, duas embarcações naufragaram e outras 11 vítimas desapareceram no mar. Já os danos materiais foram impressionantes: quase 36 mil residências sofreram avarias e 40 cidades foram atingidas. Como acontece em alterações naturais desse porte, a fauna deu o alarme e sentiu seus efeitos. De acordo com o Centro de Informações de Recursos Ambientais e Hidrominerais de Santa Catarina (Ciram), a população percebeu mudanças no comportamento dos animais, como maior agitação dos insetos e mugidos de vacas uma hora antes da chegada do Catarina. Aves costeiras foram encontradas a mais de 30 quilômetros do litoral.

Depois de um ano e três meses de incerteza técnica sobre a classificação do Catarina, os 160 pesquisadores que estiveram em São José dos Campos tentaram chegar a uma posição oficial sobre o que aconteceu no Atlântico Sul entre os dias 22 e 28 de março de 2004. “Não houve consenso e nem vai haver”, considera a coordenadora do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/INPE), Maria Assunção Faus da Silva Dias. Mas já estava combinado. Daquela reunião, um nome tinha que sair.

Ao interpretar as informações sobre o fenômeno, surgiram vários palpites: ciclone subtropical, extra-tropical, e até a sugestão de um novo nome, que traduzisse o hurricane tupiniquim. Aos 45 minutos do segundo tempo, quando meia dúzia de jornalistas começou e entrar no auditório para a coletiva de imprensa, venceu o furacão, o mais simples e impactante de todos. A intenção foi facilitar a assimilação do público e enfatizar a gravidade de fenômenos dessa natureza. Afinal, apesar de ciclone ser um conceito mais geral, que engloba inclusive os furacões, tratar o Catarina como tal poderia não surtir o efeito de alerta desejado. “Entre outros fatores, furacão é um ciclone tropical que se intensificou, passando a apresentar ventos superiores a 130 km/h”, conta Maria Assunção. Foi o que aconteceu com o Catarina.

Além da discussão de modelos matemáticos incompreensíveis para leigos, a reunião foi balizada pela necessidade de uma comunicação eficiente entre os próprios meteorologistas, diante da mídia e do público em situações de emergência. Segundo Viviane Algarve, que chefia o Serviço de Produtos e Atendimento ao Usuário do CPTEC, seu setor, que recebe cerca de 10 ligações diárias, foi surpreendido por quase 200 solicitações durante a evolução do Catarina.

Para não desesperar a população à toa, os meteorologistas reconhecem que precisam ser mais criteriosos e precisos. “Estabelecemos três níveis de comunicação para apresentarmos ao público uma visão coesa de algum fenômeno extremo”, conta Maria Assunção. O primeiro nível é o alerta e a troca de informações entre os pesquisadores, depois comunica-se à Defesa Civil e, por último, à imprensa. A pesquisadora ficou particularmente chateada com o que chamou de “opressão da mídia”. “Quisemos dar avisos sobre a ocorrência de um sistema muito intenso, com ventos muito fortes, e só o que a imprensa colocava no ar era a polêmica: é ciclone ou furacão?”, reclama.

Além do desafio de dobrar os jornalistas, outra dificuldade tem a ver com a articulação entre os centros de pesquisa em situação de emergência. Não existe, por exemplo, uma entidade nacional que tome a frente e divulgue um alerta oficial. Para resolver essa questão, os pesquisadores renovam suas esperanças na criação do Conselho Nacional de Meteorologia e Climatologia (Coname), que ainda não saiu do papel. “Seria bom se esse conselho definisse atribuições para o CPTEC e para o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)”, sugere Manoel Alonso Gan, do INPE. A distribuição de tarefas específicas pouparia o governo de investir duplamente em centros nacionais de meteorologia que fazem rigorosamente a mesma coisa. “Às vezes, temos muito recurso para algo que os dois fazem e não temos nada para outras áreas”, diz a presidente da Sociedade Brasileira de Meteorologia, Maria Gertrudes Justi.

Quando se fala em eventos atmosféricos extremos, é quase automático lembrar de como procedem países como Estados Unidos e Austrália em casos de furacões ou ciclones. Essa foi a razão da presença do meteorologista Jack Beven, do National Hurricane Center (NHC), e do australiano Holland, que contaram como funciona o trabalho de alerta em seus países e orientaram os brasileiros a tentaram adaptar os procedimentos à realidade cultural e orçamentária daqui. Eles propuseram a criação de um centro de gerenciamento de crise, uma espécie de “Centro Brasileiro de Furacões”, formado por uma equipe fixa acionável em casos de urgência.

Beven, que em 25 de março de 2004 identificou a formação do Catarina e, dos Estados Unidos, tomou a iniciativa de avisar os cientistas brasileiros da iminência do fenômeno (não sem antes se desculpar pela intromissão), sabe como o fator tempo é importante nesse processo. “A melhor época para planejar alguma coisa não é quando ela acontece. Essa é a hora de executar”, receitou. Durante o evento em São José dos Campos, o especialista foi visto correndo em busca de um computador para informar os centros de pesquisa mexicanos sobre algum evento que ocorria por lá.

Como ensina Jack Beven, é hora de correr. O Brasil ainda não dispõe de equipamentos suficientes como bóias marítimas, radares em terra e outros sensores que alimentam com informações os sistemas de previsão. Aliás, está muito longe disso. “Para suprir essas limitações, nossas opções são o sensoriamento remoto e os modelos numéricos”, conta o comandante Alberto Costa Neves, da Divisão de Previsão Numérica do Centro de Hidrografia da Marinha. Manoel Gan resume as necessidades em basicamente treinamento de pessoal e instrumentos eficientes de previsão. “Seria importante ter também um avião para pesquisas e coleta de dados, estações para medição de temperatura, ventos e umidade”, aponta.

A esse cenário, soma-se a sensação de que já não existe mais motivo para os brasileiros se vangloriarem por estarem livres de desastres naturais. Os terremotos (ainda que de baixa intensidade), as grandes inundações e agora os tornados já estão praticamente na boca do povo. Com características muito diferentes do furacão Catarina, Maria Assunção esclarece que os tornados são “filhotes” de tempestades severas: partes que se desprendem delas e, como peões girando, vão perdendo força com o tempo. “Enquanto os furacões se desenvolvem em 4 ou 5 dias, os tornados nascem e morrem num intervalo de 10 a 15 minutos”, diz. Além disso, eles não são eventos novos no Brasil. “Não é novidade nenhuma para os meteorologistas. A diferença é que hoje temos mais facilidade para registrá-los”, diz. Num rápido exercício de memória, Maria Assunção lembra de diversos casos, especialmente o que viu se formar perto da estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. “Felizmente, esse não se desenvolveu muito, mas houve um em 1991 no ABC Paulista, outros em Itu, Ribeirão Preto (SP), Santarém (PA), Campo Grande (MS), em janeiro deste ano houve dois em Criciúma (SC), para citar só alguns”.

Nenhum meteorologista se arrisca a responder se esses eventos extremos estão relacionados com o aquecimento global. Para Isimar Santos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os gases do efeito estufa tendem a provocar um aquecimento nas camadas mais baixas da atmosfera, que ficam mais energizadas. Uma das formas de aproveitamento desse excesso de energia é a formação de sistemas como ciclones. No entanto, ainda não existem estudos provando que a Terra reage a esse aumento de calor com tempestades mais severas, já que o planeta dispõe de outros meios de absorção de energia que não a atmosfera. “A meteorologia sozinha não é capaz de responder a essa pergunta”, diz.

Mesmo assim, correm pelos centros internacionais de meteorologia simulações para verificar em que condições um sistema como o Catarina se formaria novamente. O pesquisador peruano José Marengo, do INPE, mostrou uma montagem feita no Hadley Centre, na Inglaterra, apresentando Santa Catarina e o Rio de Janeiro como as zonas de maior incidência de ciclones no Atlântico Sul, em caso de aquecimento da região. E debochou: “Já pensaram em como ia ficar a governadora do Rio diante de uma dessas?”.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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