Reportagens

A cartilha da Baesa

Nada como a "Cartilha Ambiental" da usina de Barra Grande para mostrar que, derrubando araucárias no rio Pelotas, a empresa está melhorando a natureza.

Marcos Sá Corrêa ·
3 de junho de 2005 · 19 anos atrás

Meio ambiente, na definição que o jornalista Elio Gaspari deu aos primeiros vagidos da consciência ecológica na imprensa brasileira, era o nome que as pessoas davam ao gramado do vizinho, depois de cimentar o último metro quadrado de seu lado da cerca. Mas isso é história dos anos 70. Agora, na “Cartilha Ambiental” da usina de Barra Grande, é o próprio cimento que se chama área verde.

Veja-se, para o esclarecimento definitivo da opinião pública, o que a Baesa tem a declarar sobre a represa, onde estão prestes a se afogar mais de 4 mil hectares de mata nativa no rio Pelotas, entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina: “A formação do reservatório vai proporcionar uma nova paisagem na região. Um grande lago passará a fazer parte do cotidiano, de modo que o seu adequado aproveitamento vai gerar inúmeras oportunidades de lazer e turismo”.

É de dar água na boca, não é? Se é para isso, terá valido a pena até o relatório fraudado de impacto ambiental que deu origem à barragem no fim dos anos 90. Aliás, até o lago parece disposto a agradar todo mundo, pois ele cresce ou encolhe ao sabor dos argumentos a que a empresa recorre para justificá-lo. Quando se trata de minimizar os estragos na borda dos cânions que pretende inundar, ele fica pequeno, contido no “vale extremamente encaixado e íngreme” dos rios Pelotas e Vacas Gordas, garante o diretor Carlos Alberto Bezerra de Miranda.

Na hora de oferecer novas opções de lazer – “ou seja, passeios, pesca, prática de esportes aquáticos, trilhas ecológicas e roteiros turísticos” – ele extravasa esses limites naturais. Diz a cartilha: “O lago a ser formado pela Usina Hidrelétrica de Barra Grande reúne números significativos. Ele terá 94 quilômetros quadrados de superfície, 100 metros de profundidade média, 118 quilômetros de comprimento e 616 quilômetros de perímetro. A partir da barragem principal, o espelho d’água terá uma largura máxima de mil metros”.

Trata-se, portanto, de uma intervenção humana para a “melhoria do ecossistema local e da bacia hidrográfica”. Depois de cheio, provará que “é possível conjugar desenvolvimento socioeconômico com preservação ambiental”. E ficará ali como testemunha do “interesse da BAESA em preservar as riquezas naturais da região”. Afinal, “a preservação do meio ambiente é mais que uma obrigação para a BAESA. É um princípio”.

Por isso, “todas as atividades realizadas pela empresa contemplam o respeito à natureza. Nada é feito ou desenvolvido sem que a questão ambiental esteja presente, não apenas pela fiscalização de órgãos públicos e da população, mas sobretudo pela consciência de cada um dos colaboradores deste empreendimento. Todos são entusiastas e também fiscalizadores das atividades ambientais. Entendem, percebem e cobram que a obra deve ser construída em harmonia com o meio ambiente”.

Dessa doutrina corporativa não se desvia sequer o corte das florestas de araucárias nas margens do Pelotas e do Vacas Gordas. Pois na verdade se trata, para esses “entusiastas e fiscalizadores das atividades ambientais”, de “uma limpeza da área a ser alagada pelo futuro lago”, o que sem dúvida “contribui muito para melhorar a qualidade da água”. Para tanto, o Projeto Limpeza da Bacia de Acumulação se divide “em três subprojetos”.

O primeiro, “denominado Supressão da Vegetação da Bacia de Acumulação, permite alcançar dois objetivos precípuos: a melhoria da qualidade da água e o deslocamento induzido da fauna antes do enchimento do reservatório, reduzindo a mortalidade dos animais”. Em outras palavras, a derrubada da floresta é quase um favor que a Baesa faz ao meio ambiente, aprimorando-o com retoques de motosserra.

Como se vê, toda a discussão sobre Barra Grande não passa de um lastimável mal-entendido, provocado pelo relatório de impacto ambiental que classificou como capoeira rala e roçados os terrenos condenados pela represa. O EIA/Rima, a rigor, foi até modesto. Minimizou efeitos que, pela Cartilha da Baesa, serão maiores do que se pensa, embora ambientalmente positivos. A região perderá florestas centenárias. Mas ganhará em troca da mão do homem, através de medidas baseadas “na ética e no conhecimento dos profissionais” encarregados de zelar na hidrelétrica pelo meio ambiente, um monumento de concreto à “convivência harmoniosa com a natureza”. Se é assim, pau nas árvores.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Leia também

Salada Verde
25 de abril de 2024

Acnur anuncia fundo para refugiados climáticos 

Agência da ONU destinará recursos do Fundo para proteger grupos de refugiados do clima. Objetivo é arrecadar US$ 100 milhões de dólares até o final de 2025

Salada Verde
25 de abril de 2024

Deputados mineiros voltam atrás e maioria mantém veto de Zema à expansão de Fechos

Por 40 votos a 21, parlamentares mantém veto do governador, que defende interesses da mineração contra expansão da Estação Ecológica de Fechos, na região metropolitana de BH

Notícias
25 de abril de 2024

Do Brasil à Colômbia, conservação ambiental através da literatura

Feira do livro de Bogotá traz os biomas brasileiros em destaque, com uma curadoria literária voltada para o meio ambiente

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.