Reportagens

Desmatamento zero – com Carlos Cerri

O professor Carlos Cerri estuda o impacto da agropecuária no aquecimento global e diz que no Brasil ela ainda tem um mundo de espaço para crescer. E isso sem cortar nem mais uma árvore.

João Teixeira da Costa · Manoel Francisco Brito ·
30 de março de 2007 · 17 anos atrás

O Professor Carlos Cerri, aos 70 anos de idade, é um veterano das trincheiras do aquecimento global. Começou a acompanhar o debate científico sobre o efeito estufa ainda na década de 80. Em 1994, estava em Paris, participando da elaboração de parâmetros de emissão e seqüestro de gases para o agora manjadíssimo IPCC, ou International Panel on Climate Change. O trabalho serviu de base para o Protocolo de Kyoto e definiu as valorações iniciais de um mercado então inexistente, o de crédito de carbono. O Brasil não se beneficiou diretamente de Kyoto. Mas poderia. Faltou um pouquinho mais de método. “Nós seqüestramos desde Kyoto o equivalente a 10 milhões de toneladas de carbono. Foi uma mitigação importante. Mas nunca contabilizamos a nosso favor”, diz Cerri. Um problema técnico impediu a vitória diplomática na época em que o tratado foi escrito.

“Perdemos na falta de metodologia para medir o seqüestro pelo solo. Sem ela, não houve sustentação política para colocar o assunto no texto”, insiste. As deficiências de método não foram inteiramente resolvidas. “Seqüestro de carbono pelo solo ainda hoje é difícil de avaliar. E as medições de fixação continuam com muitas incertezas”, lembra ele. Mas a ciência sobre o assunto está cada vez mais robusta. Em grande parte, graças ao seu trabalho. Desde a década de 90, Cerri juntou suas duas paixões intelectuais, a agronomia e a geologia, e pôs sua lupa de cientista na expansão da fronteira agrícola em Rondônia e Mato Grosso. Foi estudar o solo da região e seus tipos de uso para encontrar a solução para seus dilemas de medição. Não resolveu todos e deu com outros. Hoje, comanda uma equipe de 17 alunos de pós-graduação que palmilha os dois estados fazendo investigações para uma pesquisa que tem a parceria da NASA e de três universidades do exterior. Ele disponibilizou para os leitores de O Eco um artigo seu e daquele que talvez seja o seu colaborador mais próximo, seu filho Carlos Eduardo. É uma introdução ao tema agricultura e aquecimento global, que será publicado no Boletim da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo.

Eles estudam os impactos da agricultura no aquecimento global, quais os meios para mitigá-lo e como estabelecer mais metodologias de medição que possam ser aplicadas no mercado de crédito de carbono. “No Brasil, a agricultura e o uso da terra é responsável por 75% das emissões anuais de gases do efeito estufa”, diz Cerri, que apesar disso, não tem nada contra fazendeiro. Muito de suas pesquisas tem a ver com o uso de mecanismos para melhorar a produtividade da terra e reduzir seu impacto ambiental. Ele afirma que o país ainda tem muito espaço para ampliar a sua agropecuária de larga escala. Não, não se trata de fazê-la crescer em cima de floresta. Cerri estima que há 150 milhões de hectares de pasto improdutivo e terra degradada pelo país. “Dá para expandir cana, soja e boi à vontade, sem precisar cortar sequer mais uma árvore”. O número e sua óbvia conclusão não foram as únicas coisas surpreendentes que Cerri revelou ao longo das três horas em que ele concedeu, no seu escritório na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós (ESALQ), da USP, uma entrevista para O Eco.

Seu trabalho de pesquisa hoje se concentra em Mato Grosso e Rondônia.

Carlos Cerri – Hoje não. Estou naquela região há 20 anos, acompanhando a expansão da fronteira agrícola e olhando seu impacto no aquecimento global. É que agora é que esse assunto ficou na moda.

Quanto do agronegócio está nessa região?

Cerri – Quarenta e cinco por cento da fronteira agrícola do país está lá. Estou avaliando o impacto ambiental provocado pela conversão e uso da terra devido às emissões de gases do efeito estufa, como CO2, CH4 e N2O nos últimos 30 anos. E desenvolvendo um modelo para prever os impactos futuros da atividade agrícola. Parte do trabalho envolve investigar a degradação do solo e as implicações sócio-econômicas da expansão agrícola naquela área. Os resultados que conseguirmos poderão ser usados para mitigar o aquecimento global, sem perder de vista a produção de alimentos e o desenvolvimento sustentável da Região Amazônica.

Você pode explicar um pouquinho melhor?

Cerri – Minha pesquisa fundamental é sobre o impacto da agricultura no aquecimento global. Olho muito pouco para as consequências do aquecimento global para a agricultura.

E por quê?

Cerri – Porque eu não tenho fôlego, embora não tenha o que reclamar do tamanho da equipe e da estrutura que disponho. Eu tenho uma base de dados aqui, laboratórios na Amazônia e 17 alunos de mestrado e doutorado. Estamos sempre no campo. E tem o pessoal que vem de fora, porque esse trabalho é levado a cabo em conjunto com a NASA e várias universidades como Brown e Colorado, nos Estados Unidos, e Montpellier, na França.

Não, mas por que você escolheu a primeira opção?

Cerri – Porque a outra é muito recente. Ainda está no começo.

E qual a aplicação desse trabalho?

Cerri – Eu estudo três grandes tópicos: um são as conseqüências dessa expansão agrícola, outro a bioenergia e, finalmente, a criação de metodologias de medição que possam ser usadas no mercado de crédito de carbono. Principalmente no setor florestal. Mas para simplificar, minha pesquisa busca desenvolver metodologias que possam ser incluídas no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Tratado de Kyoto, permitindo que o país participe de maneira mais ativa no mercado mundial de crédito de carbono.

Você é um velho defensor do uso do plantio direto na agricultura por conta de seus benefícios ambientais e econômicos. Por que ninguém usa no Brasil?

Cerri -É o que você pensa. Trinta por cento da agricultura nacional empregam o plantio direto, que é uma técnica de preparação do solo para a semeadura. A técnica dominante no Brasil foi herdada dos europeus e desenvolvida para solos que se submetem todo o ano a um inverno mais rigoroso. Na Europa, não há nenhum grande dano causado por passar arado no solo e deixá-lo como se fôsse uma mesa. Em países quentes como o Brasil, mexer no solo desse jeito é quase uma revolução. O solo é um ser vivo, com microorganismos como a bactéria e o fungo, que se utiliza da matéria orgânica para obter a sua fonte de energia, o carbono.

Desviamos do plantio direto. Acabamos no solo.

Cerri – Calma. Vou chegar lá.

Então estamos no solo. O daqui é diferente do da Europa?

Cerri – A diferença fundamental é de temperatura. Então o microorganismo ao retirar este carbono do húmus, da matéria orgânica do solo, se multiplica, emitindo gas carbônico, num processo semelhante ao nosso humano com as fezes. E que vão para atmosfera. O grau de atividade dos microorganismos depende da temperatura e da quantidade de oxigênio e água Na Europa isso não tem muita importância, porque a temperatura é muito baixa e os microorganismos não são muito ativos. Ao contrário da Europa, temos temperatura elevada e água em abundância. Quando você revolve intensamente um solo como o nosso, o microorganismo sai de seu estado de latência, aumenta sua atividade, consome mais matéria orgânica e acaba produzindo mais CO2.

Podemos voltar ao plantio direto?

Cerri – Pois é, o plantio direto minimiza esse impacto de revolver profundamente a terra. Ele faz aberturas pequenas no solo, suficientes para deslizar a semente para dentro dele. O resto ele deixa parado.

Custa menos?

Cerri – Sob o ponto de vista econômico sim. Mas tem situação em que isso não acontece.

Como assim?

Cerri – Tem lugar onde para não revolver a terra, mas mantê-la produtiva, o fazendeiro precisa aumentar a carga de material orgânico sobre o solo. Para tanto, ele precisará recorrer a mecanismos artificiais, colocando mais máquina no campo, talvez até mais do que no plantio convencional, para passar o rolo e cortar bem rente as sobras de vegetação de uma colheita.

Qual a vantagem então?

Cerri – A vantagem do plantio direto é sobretudo ambiental. É um método que reduz sensivelmente a emissão de gases do efeito estufa pela agricultura. O plantio direto é uma filosofia, um sistema de manejo. Nele, os resíduos da colheita ficam na superfície do solo e são decompostos por seus microorganismos. Eles estão retirando carbono da matéria orgânica e reintroduzindo no solo. Portanto sequestram um gás que, não fosse por isso, iria para atmosfera contribuir com o efeito estufa. O preparo convencional do solo para o plantio emite gases e não fixa muito. O plantio direto pode virar uma vantagem competitiva no mercado futuramente, se os consumidores continuarem a aderir à tese de não comprar produtos de quem desmata ou polui.

Esse cálculo sobre emissão, seqüestro e compensação é fácil de fazer?

Cerri – Ele é complexo. No trabalho de pesquisa que coordeno em Mato Grosso e Rondônia, estamos fazendo investigações detalhadas dessa contabilidade para ver se avançamos nos cálculos. Ele é influenciado por uma série de variáveis. Por exemplo, o sujeito que precisa usar mais máquina para fazer plantio direto não estará, necessariamente, emitindo mais CO2 na atmosfera. O solo pode ficar compactado pelo uso de máquinas e a emissão pela queima de combustível fóssil vai aumentar. Mas aumento no volume de material orgânico pode muito bem corresponder a um aumento do seu consumo pelos microorganismos do solo e compensar, por exemplo, o emprego de máquinas. No balanço, é preciso se descobrir o que mais beneficia o sistema. O seqüestro pode ser maior do que a emissão.

Em resumo, a contabilidade existe, mas seus parâmetros variam.

Cerri – É complicado. Tem muitas variáveis. Antes de mais nada, precisamos medir essas emissões para quantificá-las. Por exemplo, quanto de carbono eu produzo para fazer um litro de álcool? Mas não é simples porque há uma série de incertezas e nós precisamos aprender a calcular as incertezas.

Como assim?

Cerri – Quando eu calculo um estoque de carbono, não posso sair investigando as florestas do mundo inteiro, desmatar um pedaço e dizer que ali eu registrei um grau de emissão que vale para todas. Quando converso sobre emissão causada pelo desmatamento, sempre falo de um número que equivale de 8 a 14 kilogramas de CO2 por hectare. E eu te dou essa conta inexata porque a variabilidade de um local para outro pode ser grande e depender de fatores dos quais você nem sempre tem ciência. A contabilidade precisa ser específica para cada ponto em que se faz a medição.

“NÃO POSSO ILUDIR DIZENDO QUE PLANTANDO CINCO ÁRVORES O CARBONO DESSA ENTREVISTA FOI COMPENSADO. “

Vamos tentar um cálculo. A gente veio de carro de São Paulo para esta entrevista. Se quiséssemos compensar todo o carbono emitido, o que teríamos que levar em consideração?

Cerri – Muita coisa. Não posso fazer esse cálculo tirando um lápis da orelha. Como pesquisador, preciso lutar para criar uma contabilidade mais eficiente. Não posso iludir dizendo que plantando cinco árvores o carbono dessa entrevista foi compensado.

Esse recente decreto da prefeitura e governo de São Paulo mandando plantar árvores para fazer compensação de carbono…

Cerri – Isso é bobagem. Dá visibilidade e só. Não é uma coisa muito direta. Nós estávamos falando antes que há espaço para expansão do agronegócio no Brasil sem provocar mais desmatamento. Se nós adotarmos procedimentos tecnológicos corretos, podemos fazer isso de forma correta. E o nosso problema não é só de compensação e redução de emissões. Mesmo que consigamos fazer isso, a questão do aquecimento global não estará resolvida.

Você está falando dos gases estufa que já estão lá em cima na atmosfera?

Cerri – Exatamente. Eu preciso fazer as duas coisas: de um lado eu tenho que reduzir a taxa de emissão e do outro lado eu tenho que retirar de lá de cima o que já existe e deslocá-lo para um outro sistema. E tenho que fazer os dois processos simultaneamente. Um é redução, o outro é fixação.

O quanto das emissões de gases estufa no Brasil é responsabilidade do agronegócio?

Cerri – Globalmente, 76% das emissões de gases estufa vem da queima de combustíveis fósseis e da indústria de cimento. Vinte por cento vêm da agricultura e 14 por cento do desmatamento, da conversão do uso da terra. O Brasil tem um padrão diferente. Setenta e cinco por cento das nossas emissões vem da agricultura e da conversão da terra, do desmatamento. Apenas 20 por cento vem dos combustíveis fósseis. Por isso que o Brasil é o quinto emissor mundial se considerarmos o desmatamento, e o décimo sétimo se deixarmos ele de fora.

Como é que se dá essa emissão na conversão?

Cerri – Na verdade, ela é fruto de um desequilíbrio. Imagina uma floresta. Através da fotossíntese ela captura e fixa o CO2 na planta, na forma de tecido vegetal. Esse tecido tem biomassa produzida por água, nitrogênio e cálcio que estão no solo e carbono, retirado da atmosfera. A planta não absorve carbono do solo, ela absorve CO2 do ar. Quarenta a 50% de uma árvore é carbono que veio desse CO2. Em um sistema florestal, esse processo está em equilíbrio. As folhas caem na superfície do solo, são decompostas pelos microorganismos e parte do CO2 de sua massa fica capturado no solo, enquanto outra parte continua a ser liberada pela própria respiração. Então o teor de carbono aqui do solo fica constante. Cortou a floresta, esse balanço se vai.

Esse equilíbrio tem valor econômico?

Cerri – Por enquanto não. É lindo manter a floresta de pé em nome da biodiversidade. Mas para a agricultura, aquele monte de árvores é patrimônio sem valor. Então o sujeito que tem a posse da terra primeiro corta as árvores que tem valor comercial como madeira. O restante ele derruba e põe fogo nesse tecido vegetal, causando emissões de CO2, N2O, metano, e um monte de outros gases. Ficou um pouco de carvão e o resto se transformou em gás que foi para a atmosfera. Esse estoque de carbono que tinha aqui no solo, como não tem mais a entrada através da folhagem, vai diminuir.

Você então tem dois fatores de emissão numa situação dessas: o provocado pelo consumo de carbono dos microorganismos que não é mais sequestrado pela árvores e o produzido pela queima de resíduo vegetal. Qual é o mais nocivo?

Cerri – É o da queimada mesmo. Ela emite de 8 a 14 quilogramas de carbono por hectare. Uma maneira de compensar essa perda de capacidade de seqüestro de gases é planejar melhor o uso do solo.

Existem exemplos disso?

Cerri – O pecuarista bem consciente usa as boas práticas de manejo.

Existe pecuarista consciente?

Cerri – Existe, mesmo que ele não tenha consciência disso. Basta ele fazer um bom manejo na sua propriedade. Por exemplo, não deixar o gado comer o capim abaixo de uma certa altura, para fazer ele rebrotar, ao invés ter que recorrer ao replantio para recuperar o pasto. Isso evita a degradação do solo e recupera a sua capacidade de seqüestro de carbono.

Uma outra alternativa de manejo, no caso de plantações, é o plantio direto?

Cerri – Exato.

Qual é o tamanho do plantio direto no Brasil?

Cerri – Nós temos 22 milhões de hectares.

Quantos hectares a gente tem no total para agricultura?

Cerri – São cerca de 68 milhões de hectares. Dez por cento plantados com cana de açúcar.

E por que nem tudo está com plantio direto?

Cerri – O plantio direto não é um sistema único. Ele é simples, mas tem que ser ajustado. É um sistema relativamente novo, tem 30 anos. Nem todas as culturas foram pesquisadas e ele ainda está no começo em muitas regiões do país. E o Brasil tem dimensões continentais. Ele começa a 5 graus no Norte e desce até os 30 graus no Sul. Nossa variabilidade de clima é grande e cada um deles exige um plantio diferente. Começa pela escolha de planta. Você não vai plantar trigo na Amazônia. Nem cana no fundo do Rio Grande do Sul. Não vamos plantar uva em Manaus. O clima define as plantas, que por sua vez definem os métodos de plantio direto que podem ser usados num determinado local. Não dá para transplantar para o Pará uma técnica usada em Santa Catarina. Existem plantios diretos diferentes, de acordo com a região. No sul, o plantio direto tem uma seqüência de três anos, envolve rotação e sucessão complexas de culturas. Claro, essa é a regra. Mas há cultura que tolera qualquer clima e outras que têm ciclos de anos.

Quais?

Cerri – A cana-de-açúcar é uma monocultura que fica o ano todo no campo.Você colhe, ela rebrota. Não precisa replantar. O eucalipto demora sete anos para ser cortado.

Mas a média é planta de ciclo curto e sensível ao clima?

Cerri – A cultura de grãos, como soja e milho, tem um ciclo muito curto, três meses, quatro meses. Então o que você vai fazer nos outros meses? Vai suceder a cultura. Se você planejar direito essa sucessão, dá para fazer coisas incríveis.

Tipo?

Cerri – Eu posso colocar primeiro plantas que fixam nitrogênio do ar. O nitrogênio é base para proteína e a proteína é base da nossa vida. Então a planta precisa retirar esse nitrogênio para nós consumirmos proteína. você pode dar o nitrogênio à planta na forma de fecundantes ou… você pode usar plantas que farão isso naturalmente. Elas retiram o nitrogênio do ar através das raízes, nos nódulos onde vivem bactérias, e o transformam em proteína sem envolver fertilizantes. Todas as leguminosas podem desempenhar esse papel. O feijão faz. A soja faz. O que eu quero dizer é que nessa seqüência de cultura, às vezes eu preciso colocar uma planta que vai fazer essa fixação biológica do nitrogênio. Talvez eu nem vá utilizá-la comercialmente, mas o resíduo dela vai me produzir nitrogênio livremente, gratuitamente. Então é uma sucessão lógica.

Uma provocação: se o bom manejo agrícola pode trazer tantos benefícios ao meio ambiente, por que se preocupar com a preservação das florestas da Amazônia, por exemplo?

Cerri – Veja bem: uma floresta presta serviços ambientais. Um deles é a promoção do balanço hídrico, porque ela tem um processo de reciclagem da água. A retirada dessa floresta pode mudar isso e ter impacto sobre o regime de chuvas mesmo em áreas distantes da mata. Outro serviço ambiental que uma floresta presta em larga escala é a estocagem de carbono. Para você ter uma idéia, hoje nós temos 730 petagramas ou bilhões de toneladas de carbono na atmosfera terrestre. No sistema de vegetação nós temos 500 petagramas, e no solo 1500 petagramas. Petagramas é uma unidade técnica.

Ou seja, 500 petagramas são…

Cerri – 500 bilhões de toneladas. Você tem 500 e 1500 patagramas na vegetação e no solo e qualquer mudança em um dos dois sistemas tem consequência para atmosfera. Tem mais carbono na vegetação e no solo do que na atmosfera.

Mas eu posso corrigir isso com práticas agrícolas, boas práticas agrícolas?

Cerri – Pode. Mas não dá para substituir inteiramente o trabalho que faz uma floresta. Cortou, o carbono sobe direto para a atmosfera. Esses serviços ambientais em conjunto são indispensáveis. Evidentemente que um país tem que desenvolver seu território. Isso é uma política, não vou questionar. Os grandes países são grandes porque usaram seus recursos naturais. E usaram até os nossos. E eles são grandes porque desmataram tudo. Portanto, do ponto de vista histórico, é fato que nossa responsabilidade no nível atual de gases do efeito estufa é mínima, para não dizer inexistente.

Quer dizer, sobre o estoque de carbono que já está na atmosfera, a maior responsabilidade é deles.

Cerri – Dos europeus, dos americanos, e dos chineses.

Mas atualmente temos responsabilidade direta pelas emissões. Ou não?

Cerri – Agora temos. As nossas emissões causadas pela agricultura e o desmatamento são altas. Mas além disso, é bobagem imaginar que acabar com a Amazônia não nos trará problemas localizados. Se o regime de chuvas mudar, muda o país. Se mantivermos apenas as matas ciliares, elas não darão mais conta da regulação do sistema hídrico. Se eu cortar tudo, aquela chuva vai cair e correr sobre o solo. Não será filtrada até o lençol freático e redistribuida a partir de lá. A mata ciliar não tem a mesma superfície que a vegetação para reter toda aquela água. Por outro lado, precisa desenvolver também a Amazônia. Então tem que fazer o que está sendo feito, como o zoneamento, e a definição do uso do solo.

“A EXPANSÃO DO AGRONEGÓCIO SOBRE ÁREA DE FLORESTA PODE SER UM TIRO NO PÉ E MUDAR TUDO O QUE CONHECEMOS SOBRE O COMPORTAMENTO DE NOSSAS PLANTAÇÕES.”

Mas desenvolver significa só o agronegócio?

Cerri – Aproximadamente 20% de nosso PIB vem do agronegócio. E se o Brasil tem uma situação de crescimento de 2,5% , 3% ao ano, é por causa do agronegócio. Nós não exportamos computador, exportamos muito poucos produtos manufaturados. Nós exportamos commodities, soja, açúcar, café. E para crescer a economia de uma forma imediata, rápida, como se quer fazer, ou se assimila uma tecnologia rapidamente, o que não é tão fácil, ou se vai para o agronegócio, onde detemos alta tecnologia. Mas aí você se confronta com a parte ambiental e tem dois caminhos: mudar nosso padrão de crescimento, deixar o agronegócio e buscar um substituto para ele, coisa que não é imediata, ou buscar uma solução de compromisso, implantando regras de manejo na agricultura.

Mesmo neste segundo caso, não dá para imaginar que todos os dilemas ambientais serão resolvidos?

Cerri – Correto. Ao fazer uso dos recursos naturais para fins agrícolas, nós estamos contribuindo para o aquecimento global. O aquecimento global pode levar à mudança climática, e isso terá um impacto na agricultura. Mesmo com todos os cuidados, a expansão do agronegócio sobre área de floresta pode ser um tiro no pé e mudar tudo o que conhecemos sobre o comportamento de nossas plantações. Um país europeu, um país asiático que exporta produtos manufaturados, computadores, veículos, não depende muito da mudança climática.

E eles também têm a riqueza para se adaptar.

Cerri – A sua capacidade de adaptação é mais elástica. A adaptação na agricultura não é uma coisa muito simples e rápida. Então nós temos que preservar o nosso meio, fazer um agronegócio com sustentabilidade.

Vamos imaginar que você fosse o Ministro da Agricultura. O que faria para tornar a atividade mais sustentável? Que caminho seguiria para, por exemplo, expandir a produção do álcool?

Cerri – Eu faria primeiro uma redefinição do uso da terra. No Brasil é um troço ainda tratado com alto grau de informalidade. Eu não sou purista a ponto de dizer que não se pode tocar em uma árvore da Amazônia. Mas para tocar, deveria antes haver a necessidade. E se investirmos em pesquisa e organização, talvez nunca mais tenhamos que lidar com a necessidade de cortar mata na Amazônia. Além disso, buscaria também uma solução de compromisso entre a produção de alimentos e a produção de energia. A terra, até agora, foi utilizada sobretudo para a produção de alimentos. Com esse problema do aquecimento global, ela terá que ser cada vez mais empregada para produzir bioenergia.

Quantos hectares de cana nós temos?

Cerri – Hoje nós temos 6 milhões de hectares de cana no Brasil. E cerca de 60 milhões de hectares destinados para outras culturas. É possível, com planejamento, atender às duas demandas da agricultura: alimentos e energia.

Sem expandir a área agricultável?

Cerri – Exato. Basta ter tecnologia e planejar o uso da terra. Hoje nós temos uma imensa área de pastagem usada de modo primitivo, com baixa produtividade ou já abandonadas. São áreas já desmatadas que podem, sem muito investimento, ser destinadas para outros usos, como por exemplo a cana ou até o reflorestamento.

E o que se faz com o boi que está nessas áreas?

Cerri – Nós também precisamos expandir a nossa produção de carne. E há tecnologia para fazer isso sem empurrar o gado para cima de zona de floresta. Agricultura e pecuária podem coexistir numa mesma área simultaneamente. De que forma? Pode-se plantar, por exemplo, a soja, que é uma cultura de 3, 4 meses, e uma vez ela colhida, entra-se ao mesmo tempo com o milho e a braquiária, que é a pastagem. O milho cresce mais veloz que o capim e quando ele for colhido o pasto estará na altura ideal para ser consumido pelo gado, que passa a estar integrado ao sistema de lavoura. Sem se desmatar um único metro quadrado a mais, expandiu-se a pecuária. Se a terra que dispomos para criar e plantar for melhor utilizada, não precisaremos expandir eternamente nossa fronteira agrícola.

Essa mudança pode se resolver apenas pelo mercado?

Cerri – Ajuda muito se tiver polícia, fiscalização e planejamento. Mas hoje, o preço para você desmatar uma área é muito caro. As vantagens de se crescer fronteira agrícola em cima de floresta estão desaparecendo.

Mas se os preços subirem no mercado internacional essa desvantagem não desaparece?

Cerri – Não, porque dificilmente você começa a colocar a soja num local onde antes tinha floresta. Não dá para fazer isso.

Mas há muitos casos de conversão direta de solo de floresta para soja no Norte do Mato Grosso e na região de Santarém.

Cerri – É possível fazer isso, mas com rendimento muito baixo, porque a cultura da soja exige o emprego de máquina. E o terreno desmatado, por ter muito toco espalhado, dificulta seu emprego. A primeira conversão de solo desmatado em geral vem com o plantio de arroz, porque ele tem o poder de germinar em solo ácido. Depois vem a pastagem, porque ela não precisa de máquinas e os bois não se importam de pastar em cima de tocos. Hoje, destocar uma área de floresta é praticamente inviável do ponto de vista financeiro. Precisa de máquinas muito grandes, o estrago é enorme. A pastagem produz uma decomposição natural do sistema dos tocos, das raízes, e depois de um certo tempo, fica fácil limpar o terreno sem danificá-lo. A conversão direta de uma floresta para grão é possível de fazer num cerradão, que é quase uma floresta, uma transição entre a floresta e o cerrado.

No cerrado propriamente dito, dá para fazer conversão direta para a soja?

Cerri – Pode. Mas ainda assim meter pasto primeiro é mais barato e gera melhor rendimento no curto prazo. E ao longo do tempo, o pasto permite outros usos para a terra.

O pasto tem impacto sócio-econômico positivo?

Cerri – A pastagem depende de poucas pessoas não especializadas, e conseqüentemente ela produz menos benefícios sócio-econômicos na sua região. Quando se converte a pastagem para grãos, no caso soja ou milho, aí precisamos de um pessoal mais especializado, engenheiros, técnicos agrícolas, mecânicos de máquinas. Esse pessoal estabelece uma cadeia para a produção de grãos que depende sobretudo de melhor infra-estrutura e isso dá partida numa espécie de desenvolvimento regional. Nesse processo surgem as escolas, os hospitais, o saneamento. Então veja: a conversão do sistema de pastagem para um sistema agrícola, de produção de grãos, aumenta índice de desenvolvimento humano de uma região.

A cana tem esse mesmo efeito sócio-econômico que a soja?

Cerri – Ela está mais para a pecuária. Ou pior. Você tem duas maneiras de colher a cana. A primeira envolve o corte manual. É um trabalho escravo.

E essa é a forma dominante de colheita da cana hoje no Brasil?

Cerri – Hoje nós estamos com um sistema de colheita de cana que chega a 35%, 40% de área colhida mecanicamente. Se reduzirmos essa mão-de-obra escrava, estaremos criando um problema social no curto prazo, mas erradicando do Brasil um trabalho que é degradante. Além da questão social, o corte manual tem uma série de outros efeitos nocivos. Por exemplo, a queima dos resíduos, o que é uma bobagem. Por que queimar? É uma biomassa que foi feita gratuitamente, pode funcionar como adubo ou para gerar energia, e nós estamos queimando desnecessariamente.

“TECNOLOGIA DE APROVEITAMENTO DE BIOMASSA NÃO FALTA.”

Falta tecnologia para operar essa mudança, mecanizar a lavoura de cana e aproveitar seus resíduos?

Cerri – Tecnologia de aproveitamento de biomassa não falta. E a de máquinas também avançou muito. Ainda há limitações de uso dependendo da topografia. Se for muito acidentada, a eficiência do corte diminui e isso é ruim para o produtor. O corte manual tem 100% de eficiência. Mas as máquinas estão chegando lá.

O que é um solo degradado?

Cerri – Uma área que foi mal manejada para fins agrícolas ou outros fins, e que não está mais sustentável. Quando produz, seu resultado é baixo e conseguido à custa de muito insumo. Ela precisa ser recuperada.

Deixada de lado, o que essa terra vai ser?

Cerri – Ao longo do tempo, um lugar que não produz nada.

Quanto a gente tem de área degradada no Brasil hoje?

Cerri – Difícil, nós não sabemos exatamente. As imagens de satélite que a gente tem não são sensíveis a ponto de revelar o grau de degradação de um terreno.

Não há nem um chute?

Cerri – Não. Porque é um sistema muito dinâmico. Uma terra que hoje está degradada amanhã pode não estar. Não é um número que se possa obter por amostragem.

Custa caro recuperar uma área degradada?

Cerri – Depende da finalidade e depende do valor da terra inicial. Pastagem, por exemplo, degradada, você pode recuperar com novas pastagens. Ou você pode recuperar uma pastagem degradada para um novo uso, reflorestamento, soja, cana.

Ou seja, o plantio de cana, por exemplo, dá para expandir sem cortar uma árvore a mais?

Cerri – Nós temos espaço para dobrar a nossa área de cana-de-açúcar. Sem grandes conseqüências.

É mesmo? Quer dizer, pular para 12, 13 milhões de hectares.

Cerri – Acho que podemos passar para 30.

É mesmo?

Cerri – Dá para crescer em cima de área de pastagem. Não gosto de usar esses números porque eles não são exatos. Apenas uma estimativa. Quase um chute. Segundo ela, temos 260 milhões de hectares de pastagens no país. Utilizamos cerca de 90 milhões apenas para gado.

260 milhões de pastagem, nossa.

Cerri – Um terço disso está sendo corretamente utilizado. Então veja, nós temos 150 milhões de hectares em excesso para aproveitar, que é 10 vezes, ou 20 vezes a área de cana-de-açúcar. E isso fazendo sucessão de culturas e rotação de plantio, podendo se dar ao luxo de colocar muita área para descansar um ano, voltar a produzir no outro e etc. Podemos fazer tudo isso e crescer nossa agricultura sem tirar mais um pé de árvore.

E o que tem para o gado é suficiente?

Cerri – Talvez seja mais do que precisamos. Mas só vai dar realmente para saber depois que o país investir na melhoria de suas pastagens e rebanhos. Nosso gado ainda é ruim. Melhorou. Mas a agricultura está muito na frente. Nossa genética de plantas é bem mais variada. A produtividade maior. Precisamos fazer esse tipo de trabalho, para fazer a produtividade do gado crescer e conseguirmos colocar mais bois em cima de um hectare de pasto. Esse investimento garante que a agricultura cresça sem cortar um único pé de árvore.

Mas a gente está investindo nessa melhoria?

Cerri – Está. Mas anda devagar montar esse bicho que come menos, engorda mais e reduz sua contribuição para o efeito estufa. Se eu conseguisse fazer com que o animal ao invés de arrotar – vocês sabem que a vaca não peida, ela arrota, eruta – metano arrotasse CO2 seria melhor, bem melhor. Por quê? Me ajudem.

Porque metano é um gás muito mais potente em termos de efeito estufa

Cerri – Então. Os gases têm um potencial de aquecimento global diferente. O CO2 é a referência. Se eu tiver uma vaca arrotando CO2 e não metano, estou contribuindo menos para o aquecimento global.

Dá para mudar o arroto da vaca?

Cerri – Dá. É uma questão de alimentação. Ao invés dela se alimentar só com capim, posso fazer uma mistura de leguminosas que ajude a reduzir o metano. Com a engenharia genética, posso alterar o conjunto de fermentação de alimentos do bicho.

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