Reportagens

O desafio do desenvolvimento na Amazônia – com Francisco de Assis Costa

O economista Francisco de Assis Costa diz o que deu certo e errado nas estratégias de desenvolvimento na Amazônia. E fala que a região pode ser de novo palco de um vale-tudo.

Manoel Francisco Brito · Andreia Fanzeres · Carolina Elia ·
5 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

De uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Norte para Oxford. Esses são os marcos inicial e atual da carreira do economista Francisco de Assis Costa. Pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, ele é hoje um dos acadêmicos brasileiros de maior prestígio na área de desenvolvimento econômico sustentável da região. Mas esse nordestino de Pedro Avelino conheceu a Amazônia por acaso. Foi a indústria naval que o levou a desembarcar em Belém pela primeira vez, nos anos setenta, quando trabalhava como especialista em finanças e análise de custos empresariais. Lá, decidiu entender a frenesi da fronteira agrícola naquela época, em estudos sobre a economia da região. Começou fazendo um curso sobre planejamento agrícola, depois partiu para um mestrado na mesma linha e finalmente doutorado em economia na Alemanha, onde foi provocado a refletir sobre a relação entre economia e ecologia, tendo a Amazônia como referência empírica. Desde então, não parou mais de fazer isso.

Diretamente do Centro de Estudos Brasileiros de Oxford, onde leciona como professor-visitante, Costa concedeu a O Eco esta entrevista, em que mostra erros e acertos ao se tentar alavancar a economia amazônica. Mais erros do que acertos, como o que vem pela frente. Para ele, o modelo de desenvolvimento deste segundo governo Lula será igualzinho ao primeiro: dependente das exportações, mantendo a soja, carne e madeira com o mesmo valor estratégico para o país. Ou seja: o vale-tudo na Amazônia, como sempre foi.

O que o senhor achou da refundação da Sudam? Daqui pra frente tudo vai ser diferente?

Francisco de Assis Costa – Tenho defendido que um desenvolvimento de novo tipo na Amazônia requer instituições que permitam uma filtragem das tensões sobre a região que derivam do desenvolvimento nacional por governanças que resultem da interação de forças representativas das realidades locais. Uma “nova Sudam” seria parte disso, com o gigantesco desafio de minimizar as contradições que têm dissociado, na Amazônia, o desenvolvimento econômico do desenvolvimento social e que têm feito as visões de curto prazo de agentes particulares prevalecerem sobre necessidades coletivas de longo prazo. Esses divórcios têm transformado a dinâmica econômico-social em ameaça séria aos fundamentos naturais únicos e preciosos da região. Para desempenhar esse papel, a “nova Sudam” deve ter alguns atributos, se armar de certas capacidades sem as quais correrá o risco de aprisionamento pelas mesmas forças que destruíram a “velha Sudam”.

E que atributos são esses?

Costa – Ela terá que ter grande capacidade de discernimento macro-social, o que só é possível se ela tiver acesso ao melhor conhecimento possível sobre a sociedade e a economia amazônicas e sua base natural. Terá que ter capacidade de mediação das perspectivas de desenvolvimento dos vários sujeitos sociais relevantes na região, o que exigirá a democratização do seu processo decisório. Terá que ter capacidade de indicar rumos à ação privada e de governos locais na Amazônia. Terá que ter capacidade de prover direção e sentido estratégico à ação do Estado nacional na Amazônia; o que historicamente tem se mostrado muito difícil. Deverá ter capacidade operacional e de financiamento compatíveis com todas as necessidades acima mencionadas, que caracterizariam um novo modelo de planejamento e desenvolvimento. Tudo isso junto não é fácil. Mas é necessário e possível. Propus um modelo institucional que poderia operar nessa direção em um artigo recente na Revista Brasileira de Inovações. É o modelo que iniciei a implementação na ADA [Agência de Desenvolvimento da Amazônia] quando, por um ano e meio, no início do primeiro mandato do presidente Lula, fui o Coordenador Geral de Planejamento.

O senhor escreveu artigo em 2003, a partir do desejo explícito do então novo governo, sobre como os mecanismos de financiamento devem funcionar para garantir um desenvolvimento na Amazônia de baixo impacto ambiental. Esse mapa foi seguido pelo governo Lula?

Costa – Em relação ao financiamento do desenvolvimento, duas coisas têm que ser diferenciadas. A primeira, o mecanismo do Fundo Constitucional do Norte (FNO), em operação desde início dos anos 90 e, a rigor, o único instrumento de financiamento a agentes privados manejado por instituições de desenvolvimento na região. A segunda tem a ver com mecanismos de financiamento do desenvolvimento que tenham escopo mais amplo, atingindo infra-estrutura tangível e intangível e alcançando agendes privados e públicos. Em artigo, discutimos bastante o FNO e muito pouco os fundos de desenvolvimento regional desse segundo tipo. A história do FNO tem nos ensinado muito. Mostra uma coisa muito importante, que os economistas chamam de desenvolvimento dependente de trajetória.

O senhor pode explicar isso melhor?

Costa – A tese é a seguinte: as instituições mudam, assim como mudam os países e as regiões. O fazem, contudo, constrangidas pelo seu passado e pelas condições presentes do ambiente em que se inserem. Pois bem, o FNO, na sua concepção uma importante inovação institucional sob qualquer aspecto, foi usado pelo Basa [Banco da Amazônia S/A] inicialmente para financiar velhos clientes de recursos subsidiados; depois, o Banco foi forçado a mudar para atender forças novas, que o novo ambiente institucional do país permitiu emergir, mostrar a face; depois voltou a ceder a forças antigas, premido em parte por pressão dos clientes antigos, em parte por dificuldade dos novos, em parte porque a mentalidade dos técnicos e diretores do Banco esteve presa às concepções de desenvolvimento que favoreciam o passado, enquanto as idéias de um desenvolvimento de novo tipo (sustentável, endógeno…) não eram apreendidas por eles, nem, tampouco, pelos quadros das demais organizações que compõem o ambiente institucional circundante. Como idéias, as proposições de um desenvolvimento diferente, pautado em pluralidade, equidade de direitos, cooperação e uso prudente dos recursos naturais não são facilmente assimiláveis no espaço cognitivo formado no longo processo de intervenção autoritária, tecnocrática e excludente que marcou a história recente da região. Uma herança da história do Brasil, aliás.

E isso mudou? O Basa hoje é diferente?

Costa – Temos que ver o que vem se passando com o Basa em seu contexto. Até a promulgação da constituição de 1988, a “velha Sudam” e seu principal instrumento de intervenção e os incentivos fiscais mediados pelo Fundo de Financiamento da Amazônia (Finam) catalisaram praticamente toda a intervenção federal na região amazônica. Assim, prevaleceu uma divisão de papéis institucionais na qual à Sudam, propriamente, competia, a priori o julgamento de mérito, a escolha do lugar e do sujeito do “projeto” de desenvolvimento a ser financiado pelo Finam – o destinatário de ativos públicos monetários; a posteriori, o acompanhamento e fiscalização do empreendimento promovido. A administração técnica do Finam, a gestão estritamente financeira dos recursos competia ao Basa, que trabalhava sem indagar “por que”, sem verificar “por que sim” ou “por que não”. Ao Incra, um operador de campo, competia garantir a relação de propriedade latifundiária; sendo parte dessa tarefa conter, nos projetos de colonização, a contestação da fronteira em movimento.

Os ministérios construtores armavam o palco, às vezes algum cenário onde se desenrolava epopéias, dramas e tragédias que eram facilmente debitadas ao progresso. Com o FNO, houve uma espécie de cisão do campo institucional, pois o Basa passou a ter um fundo de sua competência em relação ao qual podia dizer e fazer muita coisa. De modo que se tornou, ele mesmo, um catalisador de forças com influência na trajetória de desenvolvimento. Durante algum tempo, formaram-se dois centros institucionais, com um acordo tácito de que, pelos mesmos princípios, a Sudam geria o Finam e o Basa o FNO. Como já mencionamos antes, o Basa foi forçado a ceder, mudando, mesmo que parcialmente, critérios e clientes. A Sudam, vítima de sua trajetória, aprisionada em sua tradição, fincou pé, como se diz na minha terra. Não mudou nada, ao contrário, se aprofundou no modus operandi tradicional e deu no que deu.

Por que o Fundo Constitucional de Desenvolvimento do Norte (FNO) não deu certo?

Costa – Não concordo com a perspectiva de que o FNO não deu certo. Ao contrário, o Fundo foi e é, no contexto brasileiro e amazônico, uma grande inovação institucional: ele nasceu indicando a possibilidade de uso, preferencial, aliás, por atores que jamais tiveram acesso aos instrumentos de financiamento do desenvolvimento no país. Ele indicou a possibilidade de instrumentação de novas idéias de desenvolvimento (endógeno, sustentável, se quiser…). Ele exige responsabilidade gerencial local e permite compartilhamento dessa responsabilidade. Ele garante fundos relativamente independentes dos humores da política. Todas essas possibilidades e características continuam no Fundo, mantendo um grande potencial (e alguma realização) no fomento de mudanças de grande envergadura, numa perspectiva de desenvolvimento defendida, por exemplo, pelo ganhador do Prêmio Nobel, Amartya Sen. A grande questão é a operação do Fundo.

Como assim?

Costa – O Basa não é uma ilha: sofre influência de cima, resultado da sua posição hierárquica numa estrutura burocrática que não tem considerado, em absoluto, os requisitos que um instrumento de financiamento de um desenvolvimento moderno deve apresentar; sofre influência dos lados, pelas organizações que produzem normas, conhecimento e assistência, amarradas em suas próprias perspectivas do que são conhecimentos e normas necessárias ao desenvolvimento; sofre influência de baixo, pelas características e capacidades dos agentes que financia e, por fim, sofre influência de dentro de si mesmo, da sua cultura organizacional, das fraquezas e habilidades de seus próprios membros.

Apenas para esclarecer: dá para qualificar o que você chama de desenvolvimento moderno?

Costa – Quando falo em desenvolvimento moderno quero sublinhar processos que levam a um desenvolvimento endógeno, com raízes nas capacidades locais, e sustentável porque promove eqüidade e “trata” com cuidado, inteligência e modéstia, a natureza. Não atribuo o carimbo de moderno ao uso indiscriminado da mecânica e da química num “confronto” com a natureza que caracterizou a concepção de moderno dos séculos XIX e XX. Isso é justificável em nível mundial e muito mais ainda quando se trata da Amazônia. Infelizmente, as mentes de nossas tecnocracias, os manuais de procedimento que produzem e manejam e as relações de poder a que obedecem estão mais ajustados a esta última perspectiva de desenvolvimento. O resultado são os constrangimentos que reorientam continuamente o FNO, como uma espécie de força de gravidade que contraria o tempo todo o esforço de tê-lo trabalhando por novos caminhos de desenvolvimento.

Mas essas forças não têm anulado alguns impactos e efeitos verdadeiramente modernizadores do FNO. Em pesquisa recente que fiz para a RedeSist retomei o indicador de alocação do Fundo que confronta aplicações para um desenvolvimento alternativo e a pecuária de corte. No artigo que vocês mencionam, eu demonstro que para o primeiro tipo de aplicações destinava 10% do Fundo no início da década de 90, chegando a 60% em 1997 e recuando no ano de 2000 a 30%. Retomando agora os dados de 2000 até 2005, o que a gente vê é que o indicador estabilizou, ao longo da atual década, nesse patamar. O que demonstra que há dificuldades para mudar, sim; mas, ao mesmo tempo, verificaram-se mudanças que permanecem. Houve recuos, mas não se voltou simplesmente ao ponto de partida.

“O INSISTENTE COMPROMISSO COM O CRESCIMENTO QUE O PRESIDENTE REAFIRMA CONSTANTEMENTE (…) PODE SIGNIFICAR UM VALE-TUDO NO QUE SE REFERE À AMAZÔNIA. AFINAL NÃO FOI ASSIM SEMPRE?”

Que perigos as metas de desenvolvimento do segundo mandato de Lula representam à região?


Costa – No que se refere às questões de desenvolvimento do país e o que o encaminhamento de tais questões representa para a Amazônia, os impasses do segundo mandato do presidente Lula não diferem substancialmente do primeiro. O ponto nevrálgico está na relação entre o necessário aumento na capacidade de investimento do Estado e a manutenção das condições de estabilidade macroeconômica. E, sobre isso, não vejo idéias novas. Como no primeiro mandato, se aposta nos efeitos de um balanço comercial crescentemente positivo e no papel desempenhado pelos setores exportadores com baixo coeficiente de importação.

O desmatamento vai continuar…

Costa – O crescimento da produção de soja, carne e madeira, nesse contexto, mantém o mesmo valor estratégico e, portanto, mantém a mesma capacidade de influência nas decisões do poder central que teve no primeiro mandato. Ora, sabemos o que isso significa de pressão sobre as bases naturais e sociais de um desenvolvimento equilibrado da Amazônia. Essas pressões, aliás, podem ser até maiores mediante o quadro de alianças formado, onde há um grande peso na representação das demandas da soja, do gado e da madeira, e o insistente compromisso com o crescimento que o presidente reafirma constantemente. Atingindo o nível da cruzada pessoal e moral, tal compromisso pode significar um vale-tudo, no que se refere à Amazônia. Afinal, não foi assim, sempre?

O senhor é favorável ao asfaltamento da BR-163?

Costa – Novamente, aqui, não há uma resposta razoável sem tratamento de contexto. Há um princípio defendido por economistas do Ipea de que, entre abrir novas estradas e asfaltar estradas já existentes, a segunda alternativa será sempre preferível, inclusive na perspectiva do desenvolvimento com menor pressão ambiental. Isso porque a melhoria da infra-estrutura física eleva o preço da terra, forçando uma aplicação mais intensa, em que se obtenha maior resultado por cada unidade de área. Presume-se que, se isso acontece, as atividades extensivas seriam desestimuladas e, assim, se teria menos pressão sobre a floresta. Isso é verdade para muitos produtos e um desenvolvimento alternativo de base permanente, como fruticultura, essências florestais reflorestadas e extração seletiva de madeira e produtos não madeiráveis requer essa infra-estrutura.

A questão é que, ao lado disso, há atividades com grande rentabilidade por unidade de área que, todavia, se desenvolvem exigindo muita terra, como é o caso da soja. Se aumenta o resultado da soja porque reduziu o custo de transporte, o potencial de mercado da produção brasileira cresce, se realizando por um rápido crescimento do plantio. Se pela expansão da oferta brasileira o preço cai, as plantações reduzem, mas o estrago está feito. E mais, considerando as condições de solo e pluviometria da região, bem como o pacote tecnológico prevalecente, o uso continuado de uma mesma área tem limites estreitos (seis anos, falam alguns, outros arriscam um pouco mais, mas não negam a existência de limites), criando uma agricultura itinerante altamente tecnificada. Comparada à itinerância da agricultura camponesa tradicional, essa “moderna” itenerância mecânico-química tem um poder de destruição muitas vezes maior. É como comparar guerra com arco, flexa e cavalo a guerra com tanques e bazucas. Uma área de capoeira de shifting cultivation dos camponeses leva de sete a 10 anos para se tornar em algo muito parecido com uma floresta primária; uma área compactada pelo uso continuado da soja (ou um pasto degradado, aliás) pode nunca mais se recuperar, ou se recuperar a alto custo em 50 ou 100 anos, dependendo de certas condições secundárias. A questão é, enfim, que não se pode pensar em desenvolvimento avançado na Amazônia sem infra-estrutura tangível (o hardware); só que isso não é suficiente para requalificar o desenvolvimento tendo estritamente o mercado, o mecanismo dos preços, como o único software. São necessárias infra-estruturas intangíveis como organização social, conhecimento objetivado àquelas condições, justiça funcionando bem, Estado sensível ao controle social, etc.

Sustentável é uma qualificação usada ora com um certo abuso, ora com evidente cautela. O senhor acredita em sustentabilidade?

Costa – Eu costumo utilizar a idéia de “esperança de sustentabilidade” para qualificar processos de reprodução social, no que se refere aos seus fundamentos estruturais e naturais. Isso quer dizer que quando se fala de sustentabilidade, não se está acionando uma idéia absoluta, que qualifique uma mecânica sempre reproduzível, uma certeza de relógio. Mas sim, que observados certos princípios, uma certa estrutura apresenta, ou parece apresentar, uma maior possibilidade de permanência que outras, porque demonstram maior eficiência reprodutiva, capacidade de absorção de impactos, adaptação a contingências e evolução. As modernas teorias da complexidade indicam, por exemplo, que quanto maior a diversidade de componentes de um sistema, maior sua resiliência, isto é, sua capacidade de absorver impacto e de se ajustar. Com base nisso eu posso olhar para um sistema na Amazônia, por exemplo, e, após exame de sua estruturação e lógica reprodutiva, dizer: dado que é baseado em muito poucos elementos, a resiliência deve ser baixa e, com ela, a capacidade permanência também dever ser baixa. Eu posso dizer, portanto, que esse é um sistema com baixa “esperança de sustentabilidade”.

Isso é mensurável?

Costa– É. Há uma matemática desenvolvida por Theil que permite trabalhar essa esperança, relacionando o grau de entropia de informação com a consistência estrutural de um sistema. A minha primeira pesquisa relevante sobre a Amazônia me ensinou que isso é importante. Eu pesquisei o projeto do Henry Ford nos anos 20, no Tapajós. Ficou claro para mim que o Ford, com todo poder econômico que tinha, perdeu para esse princípio. Não foi a única frente em que foi derrotado, mas foi uma derrota fundamental. A mesma que fui observar na minha terceira pesquisa de maior fôlego: sobre os empreendimentos pecuários patrocinados pela Sudam. O mesmo princípio derrotou sistematicamente a idéia da grande pecuária moderna acalentada pelos estrategistas da ditadura. Hoje, os problemas enfrentados pelas grandes plantações de dendê e pimenta-do-reino, etc. mostram a mesma coisa: sistemas homogêneos têm baixa capacidade de permanência porque não têm defesas contra a enormidade de possibilidades de ataques que podem provir da diversidade da vida nas condições úmidas e quentes dos trópicos.

Isso tem sido uma verdade histórica a corroborar um enunciado científico. Por outro lado, a grande dependência externa de energia desses sistemas faz com que eles tenham poucas possibilidades de adaptação, isto é, de evolução. Pode-se tentar uma adaptação em laboratório. Mas o grande número de possibilidades de ataque criado pela biodiversidade natural da região torna a pesquisa com tais propósitos muito cara, se possível, de fato. Isso tudo me permite dizer que, para sistemas homogêneos e fortemente dependentes de energia externa há baixa esperança de sustentabilidade. Pelas mesmas razões, posso dizer que sistemas heterogêneos, com elevada autonomia e reduzidas dimensões têm maior esperança de sustentabilidade: maior resiliência e capacidade de adaptação evolutiva.

“NÃO SE SABE EXATAMENTE O QUE É ESSE IDEÁRIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. MAS SE SABE QUE ESTÁ EM CRISE NESTA SOCIEDADE ATUAL E QUE ‘PARECE’ SER CONSISTENTE COM A PERSPECTIVA DE UMA SOCIEDADE MAIS EQUILIBRADA”.

Sustentabilidade só é possível fora de grandes propriedades?

Costa – Essa pergunta se vincula completamente à anterior. Claro que posso organizar, ad hoc, um estabelecimento de grande extensão num sistema diverso e complexo, com alta esperança de sustentabilidade. O problema numa empresa rural, latifundiária ou não, é a interação de dois sistemas: um natural e outro econômico-social. O primeiro responde a leis físicas, químicas e biológicas. O segundo a leis sociais e econômicas. Para que o sistema que montei seja aceitável na outra perspectiva, é necessário que ele permita o pagamento de salários num nível determinado pelo mercado e por regulações sociais de outra ordem e que gere lucros num nível compatível com outras alternativas de aplicação de capital. E quanto mais lucro, melhor, por suposto. Pois bem. Aqui está o problema: a diversidade nas empresas de grande escala aumenta os custos de trabalho, de gestão e de transação e, portanto, reduz consistentemente, na mesma proporção, a finalidade do sistema enquanto economia. Isto é, se tem um trade-off, um dilema nesse tipo de estrutura: se tenho um sistema crescentemente eficiente, naturalmente falando, tenho, economicamente falando e também tendencialmente, um sistema crescentemente ineficiente. Esse dilema na Amazônia tem sido claro.

Eu tenho dificuldade de pensar um processo de desenvolvimento ao qual eu possa atribuir alta esperança de sustentabilidade, baseado nesse tipo de estrutura e sua rationale. Por outro lado, se eu tenho um tipo de empresa que se preocupa com ganho, mas se preocupa muito mais com consistência intertemporal desse ganho numa perspectiva em que o que vem primeiro são as condições de vida e consumo, a segurança alimentar e reprodutiva, a educação dos filhos, etc, a diversidade dos componentes do sistema produtivo, visto como sistema natural, pode ser base de eficiência para o sistema econômico e social a ele articulado, pois reduz as flutuações e os riscos. A diversidade natural, nesse caso, é base para eficiência econômico-social nos termos da rationale do sistema. Nesse caso, os sistemas, natural e social, convergem na garantia de um atributo de grande significado para uma perspectiva de desenvolvimento com maior esperança de sustentabilidade numa região como a amazônica: a diversidade de fundamentos. O que enfatizo, a partir daí, em muitos dos meus trabalhos, é que, se se leva a sério a idéia de um desenvolvimento diferente na Amazônia, então se tem que levar em conta essas diferenças estruturais e objetivas.

A lógica econômica dominante também não afeta a prática econômica comunitária, levando, por exemplo, pequenos produtores a desmatarem e colocarem gado ou plantarem commodities onde antes havia floresta?

Costa – De fato. Não obstante a ênfase nas necessidades reprodutivas e na redução do risco no atendimento dessas necessidades, a dinâmica evolutiva dos estabelecimentos depende de muitas condicionantes, as que têm a ver com a natureza e as que têm a ver com a sociedade e o mercado. Os resultados são muito diversos, havendo desde regiões onde se generalizou trajetórias com graus muito elevados de especialização, sobretudo em pecuária, e outras, onde elas se baseiam em diversidade. Em pesquisa recente que fiz para o CGEE [Centro de Gestão e Estudos Estratégicos] e Embrapa, me dei ao trabalho de diferenciar essas trajetórias em toda a região Norte chegando a resultados muito interessantes.

Quais?

Costa – As trajetórias orientadas à especialização, entre os camponeses, representam 23% de toda economia camponesa na região. E as baseadas em diversidade de maior ou menor grau representam os demais 77%. Já as trajetórias baseadas em especialização das empresas e fazendas representam nada menos que 82% de tudo que esses estabelecimentos produzem. Em estreita correlação com isso está o fato de que esses últimos produzem nada menos que 72% das áreas degradadas encontradas em toda a região Norte (86% disso, por unidades especializadas). Os camponeses produzem os demais 28% das áreas que chamo de “capoeira sucata” (46% disso unidades especializadas). Isso é uma demonstração empírica forte dos meus argumentos. E não é em absoluto trivial na discussão sobre desenvolvimento e sustentabilidade na região.

Qual seria a tecnologia certa a ser aplicada na Amazônia com o intuito de desenvolver a região economicamente e ao mesmo tempo conservá-la?

Costa – Não há uma tecnologia a ser citada como panacéia. Há princípios e procedimentos tecnológicos para os quais policy makers preocupados com um desenvolvimento moderno, nos termos a que já nos referimos acima, devem atentar. Esses princípios podem organizar regras. Para os mecanismos de política, sejam os de financiamento, sejam os de produção e divulgação de conhecimento, os sistemas de produção que se baseiam em diversidade e durabilidade deveriam ter precedência sobre os que se baseiam em homogeneidade e transitoriedade; ao mesmo tempo, os procedimentos que se baseiam em fundamentos biológico-físicos (que marcarão este e os séculos vindouros) devem ter precedência sobre os que se baseiam em fundamentos mecânico-químicos (que marcaram o século passado). Acho que regras desse tipo poderiam orientar para um norte, como uma bússola.


Segundo um artigo de Carlos Nobre, do Inpe, há pouca pesquisa científica na Amazônia sobre desenvolvimento sustentável porque, entre outras causas, faltam economistas e cientistas sociais preocupados com o tema. O senhor concorda com isso?

Costa – Não li o artigo. Mas parece ser uma afirmação problemática. É como se o desenvolvimento sustentável fosse uma fórmula a ser descoberta e a ciência, por sua vez, capaz de descobrir os meios de implementação dessa rota para a felicidade. Um pensamento que se deriva imediatamente daí seria: como os cientistas da sociedade (economista, sociólogos, etc) não são capazes ou não querem conceituar o que é exatamente para fazer, os cientistas da natureza não podem descobrir os meios. Isso é equivalente a um álibi, com o qual não posso concordar. A noção de desenvolvimento sustentável não conforma conceito positivo, absoluto. Ela permite estruturar um ideário, como as discussões filosóficas da segunda metade do século passado fizeram, quando articularam três atributos como qualificativos ideais de um tal processo. Olhando para uma realidade que apresenta claros riscos de colapso, eles disseram: “um processo de desenvolvimento que alia eficiência econômica com equidade social e prudência ecológica poderá ser sustentável”. Mas isso é um ideário. É uma idéia-força, que como tal só se demonstra correta ou errada no processo histórico de que fez parte – a posteriori, como se diz na academia. É que as sociedades são evolucionárias, se encontram em constante desenvolvimento com base em muitos modos e muitos processos de produção e reprodução concorrentes entre si. Se se organizam instituições, isto é, normas não escritas, normas escritas, valores, crenças, etc. que orientam os que protagonizam esses modos e processos dizendo “ajudo os que corroboram a trindade liberdade, igualdade e fraterninade e vou infernizar a vida dos que não corroboram com isso”, é provável que ao final se terá uma sociedade mais livre e justa, mesmo que lá no início não se soubesse exatamente o que seria uma sociedade livre e justa, posto que isso não existia. A rigor, continua não existindo como forma acabada.

É isso que ocorre com o conceito da sustentabilidade?

Costa – O mesmo ocorre com o ideário do desenvolvimento sustentável. Não se sabe exatamente o que é isso. Mas se sabe o que está em crise nesta sociedade atual e que “parece” ser consistente com a perspectiva de uma sociedade mais equilibrada. Para interagir com essa perspectiva, a ciência deve enfrentar a questão geral de como tornar competitivos os sistemas baseados em diversidade, de modo que eles possam enfrentar os sistemas baseados em homogeneidade, claramente insustentáveis. As ciências naturais vêm produzindo conhecimentos há quase três séculos para tornar os sistemas homogêneos eficientes, ao par de profundamente dependentes de energia fóssil. Chegou a hora dela atuar na direção contrária, pois há uma crise real associada a esse paradigma. Isso é verdade para o mundo todo, é verdade gritante no que se refere à Amazônia. Pois bem, essa questão geral tem centenas de desdobramentos objetivos para a C&T na região, pois cada uma das trajetórias tecnológicas em andamento, lá, tem a sua lista de questões para a ciência, atinentes com sustentabilidade. A ciência tem um tremendo papel a desempenhar, já, respondendo a essas questões e, assim, influenciando incrementalmente as trajetórias mais promissoras. Não sei é se seu mainstream consegue ouvir e decodificar essas indagações, tão habituado está o seu ouvido para um outro tipo solicitação.

O senhor acredita que os movimentos sociais na Amazônia estejam livres de influência política?

Costa – Claro que esses movimentos não estão livres da influência política. Ao contrário, em muitos casos eles são fortemente politizados, atuando em processos abertos nos quais estão sujeitos a fracassos e desvirtuamentos em suas pretensões, ações e resultados. Como, aliás, todas as formas de organização social. O que procuro chamar a atenção é para o fato de que há o protagonismo desses sujeitos. Eles existem com voz e consciência. Essa razão é por vezes amigável em relação à floresta, por vezes estranha em relação a ela. E entendo que essa não é a questão fundamental. O que importa é que, em qualquer dos casos, essa razão deve ser observada e ouvida, interpretada, decodificada atentamente pois ela pode fundamentar processos de desenvolvimento de longo alcance, com maior esperança de sustentabilidade. Ela pode ser muito mais importante para um processo de modernização (no sentido que damos a esse termo) do que crê o senso comum e muitas cabeças acadêmicas.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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