Reportagens

Disputa por Terras Indígenas aumenta ameaça ao meio ambiente

Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, conflitos podem incentivar o desmatamento, a mineração e a instalação de garimpos nas TIs.

Maurício Thuswohl ·
5 de fevereiro de 2014 · 10 anos atrás

16 de abril de 2013. Revoltados com a criação de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que dá ao Congresso Nacional poderes para demarcar terras indígenas, centenas de índios invadiram o plenário da Câmara dos Deputados e tomaram as cadeiras dos parlamentares. Foto: José Cruz/ABr
16 de abril de 2013. Revoltados com a criação de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que dá ao Congresso Nacional poderes para demarcar terras indígenas, centenas de índios invadiram o plenário da Câmara dos Deputados e tomaram as cadeiras dos parlamentares. Foto: José Cruz/ABr

Rio de Janeiro – O acirramento das tensões em torno da demarcação e conservação de reservas indígenas no Brasil promete atingir seu ápice em 2014. Neste início de fevereiro, estão em curso em diversos pontos do país pelo menos seis importantes conflitos que opõem índios de diferentes etnias a invasores, posseiros ou fazendeiros instalados – ou que pretendem se instalar – em Terras Indígenas (TI) legalmente demarcadas pelo governo federal. Para além de seu componente social, estes conflitos, que acontecem do Amazonas ao Rio Grande do Sul, trazem mais uma vez à tona a discussão sobre a expansão, em importantes áreas ainda preservadas no Brasil, de algumas atividades potencialmente danosas ao meio ambiente, como a derrubada de árvores para plantio de monoculturas, a mineração, a instalação de garimpos, a poluição dos rios e a pesca predatória.

A situação entre índios e não índios nas TIs brasileiras ainda poderá se agravar nos próximos meses, já que é aguardada para o primeiro semestre a votação pelo Congresso Nacional da PEC 215 (que transfere do Executivo ao Legislativo a prerrogativa de aprovar a demarcação de TIs) e do PLP 227 (que legaliza a presença de empresas de energia, de mineração e do agronegócio nas TIs). Se aprovadas, alertam os críticos, essas propostas provavelmente servirão como incentivo a novas disputas pela posse das terras ocupadas pelos índios no Brasil, com inevitáveis conseqüências ambientais: “Hoje, se verifica pouco desmatamento ou qualquer outro tipo de agressão ambiental nas Terras Indígenas do país. O problema é a pressão dos que querem entrar”, resume Fany Ricardo, especialista em Terras Indígenas e Unidades de Conservação do Instituto Socioambiental (ISA).

O alto índice de preservação ambiental observado dentro das áreas demarcadas como TIs também é citado por Cleber Buzatto, secretário nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi): “Diversos estudos têm demonstrado que as Terras Indígenas, em particular na região amazônica, são mais preservadas, inclusive, do que as Unidades de Conservação Ambiental. Então, nesse aspecto, a demarcação de Terras Indígenas contribui decisivamente para a preservação da natureza e do meio ambiente no Brasil, muito embora exista atualmente uma pressão muito grande sobre essas terras para a exploração madeireira, haja vista a situação no Maranhão”, diz.

A estimativa do governo é que existam pelo menos 300 ocupações ilegais no território, que tem área total de 116 mil hectares e se espalha pelos municípios de Centro Novo do Maranhão, Governador Newton Bello, Zé Doca e São João do Caru.

Buzatto se refere ao conflito na Terra Indígena Awá-Guajá, situada no noroeste do Maranhão, onde vivem atualmente, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), cerca de 400 índios ainda isolados, mas que sofrem constante pressão de madeireiros. A TI Awá-Guajá foi reconhecida pelo governo federal em 1992 e homologada somente em 2005. Ainda mais atrasado, o processo de desintrusão (retirada de não índios) da área só teve início em janeiro último, com o envio pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de 187 notificações de expulsão a posseiros instalados na TI. A estimativa do governo é que existam pelo menos 300 ocupações ilegais no território, que tem área total de 116 mil hectares e se espalha pelos municípios de Centro Novo do Maranhão, Governador Newton Bello, Zé Doca e São João do Caru.

Segundo a Funai, um terço da área total da TI Awá-Guajá já foi atingido pela ação de madeireiros. Na primeira semana do ano, toras de madeira retiradas ilegalmente da TI foram apreendidas pelo Ibama: “Quem está lá dentro da TI Awá-Guajá é irregular mesmo, ao contrário do que diz a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) e a Confederação Nacional de Agricultura (CNA)”, garante Fany Ricardo, citando como exemplo as “várias brigas travadas pelos índios” para retirar de sua terra a Agropecuária Alto Turiaçu: “Essa empresa tem uma atividade de profundo impacto ao meio ambiente em uma região onde a terra é muito desmatada. O desmatamento até 2011 era de 39 mil hectares”, diz. Em reportagem de Karina Kiotto, ((o)) eco já havia feito um relato sobre a perda florestal nesta região da Amazônia maranhense.

A pesquisadora do ISA afirma que os Awá-Guajá estão hoje entre os maiores defensores da floresta no Brasil: “Eles são caçador-coletores e dependem da mata para viver, têm um histórico de proteção à floresta antigo, mas nunca foram protegidos”, diz. Além da TI Awá-Guajá e da vizinha Reserva Biológica do Gurupi, há referências de índios Guajá ainda isolados vivendo também nas TIs Caru, Alto Turiaçu e Araribóia.

Desmatamento, mineração e pesca

A degradação do meio ambiente é também o pano de fundo do conflito mais violento entre índios e não índios neste começo de ano.

A degradação do meio ambiente é também o pano de fundo do conflito mais violento entre índios e não índios neste começo de ano. Na Terra Indígena Tenharim-Marmelos, localizada às margens do Rio Madeira, no município de Humaitá, no sul do Amazonas, a presença dos não índios é associada pelas organizações indigenistas a problemas como desmatamento, mineração e pesca ilegais: “Na Tenharim-Marmelos, existe pressão sobre a pesca e também os madeireiros, com os quais os índios nunca fizeram acordo. Tem a questão do minério também. Na época da Constituinte de 1988, a empresa Paranapanema já fazia mineração em uma terra Tenharim, em Igarapé Preto”, diz Fany Ricardo, ressaltando que existem “mais de 500 processos de solicitação de mineração nas TIs brasileiras” e que a lei sobre mineração em TIs até hoje não foi votada pelo Congresso Nacional.

Fany qualifica como “muito grave”, o problema ambiental na TI Tenharim-Marmelos: “ Era uma área muito isolada, até 2004 não havia nenhum ocupante não-indígena dentro da terra, mas depois começou a pressão, agravada pela estrada que liga Porto Velho a Manaus, além da própria Transamazônica. O perigo é grande, pois é ainda uma terra com muita floresta preservada”, diz.

Na TI Tenharim-Marmelos vivem índios das etnias Tenharim, Jiahui, Parintintin e Uru-eu-uau-uau. Os conflitos se intensificaram após a morte do cacique Ivan Tenharim em consequência de uma queda de motocicleta. Logo após o acidente, chegou a circular a informação, divulgada por um servidor da Funai e inicialmente confirmada por alguns índios, de que o cacique teria sido assassinado, mas essa hipótese foi descartada depois que um de seus filhos afirmou ter presenciado o acidente. Apesar do desmentido – o servidor da Funai que divulgou a versão do assassinato foi afastado – dois dias depois, em um caso que a Polícia Federal qualifica como sequestro e assassinato, cometidos provavelmente por vingança, três não índios desapareceram quando trafegavam pela Transamazônica. Já reconhecidos por familiares, os corpos dos três desaparecidos, com marcas de execução por tiro de espingarda, foram encontrados pelos policiais na terça-feira (4). Em operação que prosseguirá por tempo indeterminado, agentes da Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional de Segurança escoltam desde sexta-feira (31) todos os veículos que cortam a reserva em um trecho de 40 km. Paralelamente, o Ministério Público Federal entrou com um pedido de indenização de R$ 20 milhões aos povos Tenharim e Jiahui pelos danos ambientais a eles causados pela Transamazônica.

No conflito mais recente, em curso na Terra Indígena Tupinambá, situada na já bastante devastada região de Ilhéus, no sul da Bahia, a questão ambiental entre índios e não índios se dá em torno dos modos de produção. Monocultura e agroecologia disputam espaço na TI, que foi reconhecida em 2009 pela Funai, mas até hoje ainda não foi demarcada: “A área está sendo preservada pelos Tupinambás, que usam o espaço para a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos, diferentemente da situação que se verificava naquela área com a presença dos antigos fazendeiros”, diz Cleber Buzatto. Atualmente, os Tupinambá ocupam quatro fazendas na região, para onde já se deslocaram homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança.

O interesse comercial TI Tupinambá, diz Buzatto, é muito grande: “Com as retomadas feitas pelos Tupinambás na Serra do Padeiro, houve uma mudança no modo de produção e uso da terra, que saiu de uma forma de produção extensiva e exaustiva com o uso de agrotóxicos para outra forma de produção de alimentos saudáveis, com a aplicação de técnicas da agroecologia. Isso tem incomodado a setores ligados ao agronegócio, que veem o modelo de produção insustentável do monocultivo questionado por um modo de produção que se sustenta e é ecologicamente equilibrado”, diz o secretário nacional do Cimi.

Outros conflitos

O desmatamento para o avanço da cultura da soja e também da pecuária extensiva ameaça a floresta na Terra Indígena Marãiwatsédé, território ocupado pela etnia Xavante e localizado no norte do Mato Grosso. Apesar de reconhecida oficialmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como território Xavante e de ter a retirada de não índios concluída em janeiro de 2013, após 20 anos de batalhas judiciais, a TI, que tem pelo menos 50% de sua área já devastada, voltou no começo deste ano a ser ocupada por agricultores: “Há grandes proprietários e pequenos agricultores, mas há três ou quatro grandes fazendeiros que dominavam quase todas as terras ali e querem voltar”, diz Raul do Valle, coordenador de Política e Direito Socioambiental do ISA, ressaltando que existem também vários assentamentos da reforma agrária no entorno da terra Xavante, mas que estes ocupam uma “área muito pequena da terra”.

No Pará, a Terra Indígena Munduruku, situada no sudoeste do estado, vive conflito entre índios e garimpeiros ilegais, que poluem o leito dos rios e provocam a escassez de peixes, principal recurso alimentar da etnia Munduruku que habita a região. Em janeiro, durante ação que teve o apoio da Funai, índios armados confiscaram doze dragas, máquinas utilizadas pelos garimpeiros para revolver o fundo dos rios e igarapés, durante uma fiscalização a barco feita em quatro afluentes do Tapajós (Kaburuá, Kabitutu, Kadiriri e Rio das Tropas).

No outro extremo do país, no Rio Grande do Sul, a pressão do agronegócio sobre os remanescentes de Mata Atlântica ameaça a integridade da Terra Indígena Rio dos Índios, que ainda não teve seu processo de reconhecimento concluído e é ocupada pela etnia Kaingang.

No outro extremo do país, no Rio Grande do Sul, a pressão do agronegócio sobre os remanescentes de Mata Atlântica ameaça a integridade da Terra Indígena Rio dos Índios, que ainda não teve seu processo de reconhecimento concluído e é ocupada pela etnia Kaingang. Os conflitos entre índios e agricultores (grandes e pequenos) acontecem há anos na área, situada no município de Vicente Dutra, região norte do estado, e contígua à Floresta Nacional de Passo Fundo. Os índios querem que a Funai acelere o processo de reconhecimento de uma área total de 3,5 mil hectares, sendo 1,3 mil hectares de floresta nativa. Na terra Kaingang, fica o maior remanescente de Mata de Araucária do Rio Grande do Sul, um dos mais importantes reservatórios para algumas espécies da flora e da fauna típicas do Região Sul do Brasil.

Processo político

A discussão sobre as regras para a demarcação de Terras Indígenas deverá esquentar no Congresso Nacional, com a iminente votação da PEC 215, de 2000, e do PLP 227, de 2012. Instalada no fim do ano passado, a Comissão Especial que analisará a PEC 215 definirá ainda em fevereiro seu cronograma de trabalho, que prevê a realização de audiências públicas em diversos pontos do país. O governo federal, por sua vez, já se manifestou de forma contrária à mudança nas regras de demarcação das TIs e promete enviar em breve à Câmara dos Deputados uma proposta sobre esse tema, que está sendo elaborada pelo Ministério da Justiça.

Para Cleber Buzatto, a decisão vinda do Congresso e uma eventual omissão do governo podem agravar uma situação que corre o risco de sair do controle: “O momento é bastante preocupante e tenso em todo o país. Há um processo de incitação à violência contra os povos indígenas que está sendo implementado pelos setores ligados ao agronegócio – em especial pela bancada ruralista na Câmara dos Deputados – e isso tem sido potencializado devido à decisão política do governo brasileiro de não demarcar as Terras Indígenas. Há uma moratória no processo de demarcação das terras, uma paralisação dos procedimentos, e isso tem viabilizado um discurso inflamatório contra os povos indígenas, o que é bastante preocupante”, diz.

O dirigente do Cimi, no entanto, diz confiar na capacidade dos índios de evitar que os conflitos em torno da demarcação das Terras Indígenas se agravem ou multipliquem: “Confiamos que os povos indígenas continuarão tendo a sabedoria para vencer mais esse processo de ataque violento aos seus direitos e às suas comunidades”.

*Editado às 14h – 06/02

 

 

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