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Ciência e Tecnologia agora abraçam o Social

O setor de Ciência e Tecnologia começa a investir em inclusão social, combatendo o elitismo do mundo acadêmico. Mas ainda falta acordar para o meio ambiente.

4 de novembro de 2005 · 18 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

Existe um novo movimento que pode trazer benefícios para muitos. Trata-se da chamada Ciência e Tecnologia Social (melhor ainda seria socioambiental e não social, mas o meio ambiente continua lutando para se fazer inteiro e presente). Aconteceu em Brasília nos dias 18 e 19 de outubro uma reunião preparatória para a 3ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que se realizará, também na capital do país, de 16 a 19 de novembro. Representantes de diversas organizações não-governamentais (ONGs), alguns deputados e pessoas do mundo político, além de representantes do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), trocaram idéias sobre o que incluir no documento que fará parte da Conferência.

Diversas noções soaram inovadoras e ousadas, especialmente se considerarmos as tradições brasileiras. Historicamente, o cenário científico nacional sempre foi composto por uma elite e os resultados das pesquisas realizadas e de seus respectivos benefícios comumente ficam restritos a poucos ou até a grandes empresas. Raramente são compartilhados com a sociedade. Como conseqüência, as elites intelectuais se tornam distanciadas da população e de suas necessidades socioambientais mais básicas, e o saber não é aplicado de maneira a beneficiar a coletividade. Com isso, a desigualdade se acentua cada vez mais. Por exemplo, em um país onde a educação nunca foi prioridade, existem mais de 15 milhões de analfabetos, 32 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, que não entendem o que lêem, e 65% dos estudantes com 14 anos ou mais cursando séries escolares defasadas em relação à idade que têm, chegando esta taxa a 84% no nordeste (IBGE).

Sem educação não há transformação profunda, como pode ser comprovado por experiências dentro e fora do país. O mais cruel é que a maior parte do orçamento gasto em educação, que já é mínimo quando comparado a países de primeiro mundo (mais ou menos 1/8 do que gastam os países desenvolvidos per capita, segundo dados do UNICEF), é voltado às universidades públicas (mais de 30% da verba de educação é investida nas universidades). Ainda consideradas as melhores, são muito mais acessíveis para aqueles que tiveram uma boa educação, normalmente quem estudou em escolas particulares. Por isso, o quadro educacional brasileiro é marcado por diferenças entre ricos e pobres e, ao invés de ser um caminho para reduzir essas diferenças, acaba aumentando-as.

A idéia básica do que está sendo chamado de Tecnologia Social é a busca pela democratização do saber. É a reversão da realidade de um país que culturalmente foi e, infelizmente, em algumas regiões ainda é dominado por “coronéis”. O saber se alia a esta elite e muitas vezes se coloca a seu serviço. A concentração de poder acaba por propiciar cientistas e pesquisadores a se tornarem também parte de uma elite distanciada da maioria da população brasileira. É a quebra deste processo que está sendo agora proposta.

A onda da inclusão social

A novidade alentadora é que há um movimento de transformação e de inclusão social. Em um ambiente que sempre valorizou o mundo acadêmico como o MCT e CNPq, vem se formando uma nova onda que pode mudar o quadro do conhecimento no Brasil. Por meio de chamadas especiais, estão sendo financiados projetos que visam inclusão social através da aplicação de tecnologias inovadoras. Mais de R$ 33 milhões já foram repassados a projetos aprovados em áreas como agricultura familiar, questões ligadas à água e conhecimentos tradicionais.

Segundo a deputada Irma Passoni, uma das organizadoras do evento, a ciência e a tecnologia precisam promover a inclusão social, o que rapidamente reverteria no resgate de 30 milhões de brasileiros que hoje se encontram abaixo de condições minimamente dignas. Há a necessidade de se desmistificar a ciência e a tecnologia de modo a responder às reais necessidades e a contribuir para o bem-estar da população brasileira. Olhar a ciência e a tecnologia como ferramentas para o desenvolvimento do país pode trazer o Brasil a um patamar mais próximo da “era do saber”, que represente uma gestão do conhecimento que beneficie muitos.

Uma das bases da discussão é que a sociedade vem pagando pela ciência produzida e agora é esperado que gere riquezas, mas não mais nas mãos de poucos, e sim compartilhadas. Com a noção de que conhecimento é poder, o saber acumulado e produzido precisa ser democratizado de maneira a reduzir esta concentração e beneficiar amplamente a sociedade.

Outro deputado presente, Ariosto Holanda, chamou a atenção para o fato de que enquanto os países desenvolvidos mantêm um quadro de cinco técnicos de nível médio para um de nível alto, no Brasil a taxa é inversa. Como diz o ditado popular, muito chefe para pouco índio. Aliás, literalmente pouco índio mesmo, pois um dos assuntos tratados foi a perda das culturas tradicionais que incluem as etnias indígenas brasileiras.

Já para a senadora Luiza Erundina, a sociedade está conquistando espaços, mesmo que lentamente. Defende que não há um plano estratégico político para a nação, e que falta um fio condutor que leve o mundo acadêmico a compartilhar e colocar em prática seus conhecimentos acumulados. Este cenário dá margem às organizações do terceiro setor, que vêm adotando, adaptando e criando tecnologias para resolverem desafios específicos a assumirem responsabilidades que o próprio governo deveria levar adiante.

O terceiro setor

Incluir o terceiro setor em um ambiente antes dominado pela ciência tradicional indica o reconhecimento por parte do MCT e do CNPq do próprio crescimento deste segmento, e de seu papel na produção de conhecimentos. Um dos batalhadores por esta conquista tem sido o professor Paulo Egler, que enquanto esteve no Ministério de Ciência e Tecnologia buscou demonstrar que o trabalho de muitas ONGs gera conhecimentos significativos.

Segundo ele afirmou, ciência, tecnologia e inovação precisam ser tratados de maneira ampla. “Dizer apenas que ciência e tecnologia são componentes fundamentais para o progresso da humanidade pode ser um discurso vazio, se não estivermos efetivamente articulados com a sociedade, no sentido de fazer com que esses três componentes sejam realmente parte do cotidiano, sejam atividades permanentes dentro da sociedade brasileira” (“Papel do Terceiro Setor no Processo de Construção e Desenvolvimento da Ciência, Tecnologia e Inovação”, 2002).

Na mesma ocasião em 2002, Marcos Kisil, representante do Grupo de Instituto, Fundações e Empresas (GIFE) e do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), levantou a idéia que o terceiro setor conquistou um poder real, em contrapartida ao poder formal. Defendeu, ainda, que este não poderia ser chamado de setor, pois é composto por grupos heterogêneos que defendem uma enorme gama de interesses e atuam nas mais diversas modalidades.

As organizações presentes evidenciaram esta realidade. Representantes de aproximadamente 30 organizações participaram do encontro e mostraram uma enorme variedade temática e de formas de atuação. As instituições incluíam trabalhos com saúde, educação, discriminação racial, questões indígenas, entre outros. Muitos pontos de vista variavam em sua perspectiva, mas houve consenso em muitos dos princípios básicos necessários para tornar a tecnologia social mais amplamente divulgada e aceita.

O que ficou claro é que os conhecimentos gerados e resgatados pelas ONGs são aplicáveis e pertinentes aos contextos onde estão inseridos. Muitas visam à resolução de problemas e, por estarem in loco, seu impacto é mais rapidamente observável.

Falta o meio ambiente

Alguns princípios sobre tecnologia social foram expostos pelo professor Ivan Costa Neto, da Universidade Católica de Brasília. Por exemplo, enquanto o mundo moderno cria necessidades que garantem o aumento do consumo, ainda que dentro do modelo capitalista insustentável, a tecnologia social visa responder às reais necessidades socioambientais. A inclusão social se baseia na preocupação de responder ao essencial e não ao supérfluo. Alguns dos critérios incorporados dizem respeito à intensidade do trabalho exigido em face ao capital gerado e compartilhado. Considera os impactos potenciais ao meio ambiente e a outros seres humanos, visando sempre à inclusão e à melhoria da qualidade de vida, o que depende de uma maior distribuição dos ganhos. Outros princípios consideram o grau de satisfação pessoal, que pode estar relacionado ao respeito e à valorização das culturas locais.

A tecnologia social abrange campos diversos como saúde, educação, justiça – que contempla eqüidade racial e de gênero –, meio ambiente e outros. Infelizmente, mais uma vez ficou clara a separação entre ser humano e meio ambiente, como se um não fosse o outro. Ainda foram poucas as menções sobre a importância de se priorizar meio ambiente, prevalecendo as questões sociais.

Apesar de ser um passo importante que o MCT e o CNPq estão dando, mostrando abertura e ousadia ao sair da elite intelectual e ao incluir o saber popular, tradicional ou prático, a área ambiental ainda se mostra necessitada de investimentos para se fazer ouvir. Principalmente nas falas dos políticos presentes, meio ambiente ainda parece ser um adendo às questões sociais, não sendo considerado por seu valor intrínseco. Cabe a nós, defensores da vida de maneira ampla, conquistarmos este espaço, e trazer as questões ambientais também à mesa de decisões.

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