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Velejar é outra coisa

Barcos à vela têm uma imagem de glamour e sofisticação que cai bem em anúncios publicitários mas tem muito pouco a ver com a realidade de navegar num deles.

18 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

A presença do Brasil I na Regata Volta ao Mundo deve ter acalentado na cabeça de muito leitor de jornal o sonho de ter um barco à vela. As reportagens da imprensa – há exceções – tendem a relevar aquela coisa de cenário de publicidade de produtos sofisticados onde em geral a maioria dos seres humanos vê um veleiro. Não é a toa que marcas como Curty Sark e Moet Chandon, por exemplo, pegam carona nesse sonho coletivo e não perdem a oportunidade de patrocinar eventos de iatismo.

O HSBC, por exemplo, pode usar as imagens do Brasil I para passar a idéia de risco calculado e portanto segurança. Já a Nívea, carro chefe da marca alemã Beiersdorf, tem a oportunidade de mostrar que seus produtos são à prova de regatas (não é o melhor teste de eficácia). O fato é que velejar tem charme. Desde os primórdios o homem desafia o mar e pesquisa equipamentos que facilitem esta tarefa. Daí, os milhões investidos num barco como o Brasil 1. Mas há um outro lado da vela que não aparece nos anúncios e muito raramente nos jornais. O mar não respeita marcas nem dinheiro. Para fazer bonito, a tripulação do Brasil I também terá que comer o pão que o diabo amassou, coisa que não é novidade para nenhum deles.

Velejar mesmo, é bem menos glamouroso do que parece. Ter um veleiro é uma coisa. Ser um velejador é outra. Num veleiro, por maior e mais confortável que ele seja, você literalmente perde a dignidade, ou melhor, a privacidade. Se o barco estiver na poita e as pessoas estiverem simplesmente boiando, ele não passa de uma sala de estar flutuante.

Mas, se o barco for realmente velejar, acabou-se o que era doce. Que entrem os vikings e saiam as mocinhas. A vaidade é a primeira a desembarcar. A umidade acaba com aquela escova lisa que você fez para combinar com seu estilo náutico despojado, de unhas muito bem feitas e perfume intragável. Vento e chapéus de palha, por exemplo, não se dão muito bem. O primeiro faz o segundo voar para longe da cabeça e se o chapéu cair no mar, não adianta chorar porque ninguém vai querer voltar para resgatá-lo. Há quem tente mantê-los no lugar usando uma das mãos. Mas a coisa não dura muito tempo. À primeira onda mais forte, a pessoa logo percebe que é melhor utilizá-la para garantir um mínimo de equilíbrio a bordo.

Se o barco estiver adernado, você tem que se equilibrar o tempo inteiro. Para andar (se arrastar) pelo barco, o cidadão faz movimentos de tai chi chuan e malabarismo. Ora é serpente, ora pantera, ora chimpanzé. O animal é ditado pela necessidade do momento.

Durante regatas, a coisa se torna ainda mais insustentável. É impossível segurar uma taça de champanhe com uma mão, se equilibrar com a outra e ainda fazer esforço para acertar a boca. O que na verdade, dentro de um veleiro, até que não é mau do ponto de vista de segurança.

Com o vento e as ondas “lambendo” as velas e o casco, não é aconselhável que algum dos tripulantes fique bêbado. Além de passar mal, ele pode fazer besteiras e colocar a equipe em risco. Ou pode ter a mesma sorte dos chapéus de palha e acabar na água. Normalmente, entretanto, o bebum acaba indo para dentro da cabine, onde é escorado para que seu corpo não fique “rolando” ao sabor do mar.

Tomar banho é crime. Barco não tem reservatório de água abundante. Isso prejudicaria o desempenho do “veículo”. Levando-se em conta que a bordo de um veleiro, as chances de um humano dividir o exíguo espaço com seu próprio lixo é de 100%, a falta de banho torna-se “coerente”. Como velejador que é velejador não joga nada no mar (isso é coisa de dono de lancha), sacos de lixo com latas de refrigerantes amassadas e até restos de papel higiênico proveniente do micro banheiro de bordo vão sendo amontoados ao lado dos tripulantes.

Em estado de absoluto desespero, já tive coragem que fingir que um saco de lixo escorregava da minha mão. Também já joguei latinhas no mar, sem dó ou piedade. Na hora do sufoco, a saúde dos animais marinhos, a paz das baleias e a alegria dos golfinhos servem apenas para deixar o cidadão (na verdade, cidadã, já que me refiro a mim mesma) ainda mais irritado e deslocado.

Digo tudo isso porque passei parte da infância e adolescência dentro de um barco. Aprendi muito, aproveitei muito, chorei e ri muito. Quando eu não queria embarcar, era vítima de chantagem. Ganhei várias idas ao Café Lamas Restaurante, no Flamengo. Houve uma época em que eu e meu irmão, hoje vegetariano, éramos fascinados pelo filé do Lamas. Velejávamos durante o final de semana e contávamos as horas para a hora do filé, no final da tarde de domingo. Não preciso mais do filé para entrar num barco. Mas sei que continuo precisando de boa dose de espírito de aventura para estar dentro dele.

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