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O que vale é a estética

Ir à praia é coisa de quem não se importa com a sujeira. Basta que não seja aparente. É gente que vive pelo lema "o que o olho não vê, o ambiente não sente".

13 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Até o fim do século 19, praia era literalmente programa de índio. E de escravos. As casas dos aristocratas brasileiros eram construídas de costas para o oceano. O mar era visto apenas como depósito de lixo. Aos poucos, sempre por influência dos hábitos adotados pelos países que ficam acima da linha do Equador, ir à praia virou um programa cool.

Nos últimos 100 anos, muita coisa mudou. A praia virou uma extensão da casa da maioria dos cariocas, entrou para o repertório de programas disputados. Inspirou a moda, ditou padrões de beleza e comportamento, seduziu poetas, foi cenário de cenas de amor e divertiu criancinhas. Porém, cada vez mais vai confirmando sua reputação de depósito de lixo.

A começar pela poluição visual. A quantidade de informações é assustadora. Os quiosques invadiram a areia, tomando o espaço dos vendedores ambulantes, que hoje, gritam jingles super criativos para garantir seu espaço no mercado. As pessoas brigam por meio metro quadrado e se espremem na areia. Para chegar até a beira do mar é preciso passar por um verdadeiro corredor polonês. Não tropeçar em nenhum cidadão estirado ao sol, não pisar no piquenique de nenhuma família, desviar de bolinhas de frescobol, enfim, “respeitar o próximo” que, na maioria das vezes, não parece nem estar aí para respeitar alguém.

A cada domingo de verão, as praias do Rio recebem aproximadamente 900 mil pessoas. É uma multidão superior a toda a população carioca em 1900, quando Copacabana era uma distante vila de pescadores e ir à praia era um passeio exótico. Acontece que praias não se reproduzem de acordo com a demanda. A quantidade de lixo gerada por essa massa é motivo de preocupação para quem se importa com o tempo de vida útil da extensão da casa dos cariocas.

Os problemas causados pelo acúmulo de resíduos sólidos, em especial plásticos, são preocupantes. A diversão mais barata do país, custa caro. Fora o que se gasta para limpar as praias num final de domingo, o lixo traz riscos para a fauna marinha. Garrafas e outros recipientes podem aprisionar pequenos animais marinhos. Plástico e isopor podem ser confundidos com alimento e ingeridos por peixes, aves ou mamíferos, que quase sempre morrem, em geral por obstrução do aparelho digestivo.

A fauna humana também é vítima de sua própria displicência. De acordo com a Comlurb, o que mais ameaça a saúde dos banhistas, além das línguas negras, que são aqueles extravasamentos de águas poluídas que se acumulam na areia, é a presença de animais nas praias. Os cachorros, levados por seus donos, usam a areia da praia como toalete. As pombas, que chegam até lá sozinhas, buscam restos de alimentos deixados por quem freqüenta o local. As conseqüências da areia poluída são doenças de pele, como micoses, a conjuntivite e verminoses.

No entanto, para a maioria dos freqüentadores da praia, o que importa é a estética. Se toda a sujeira estiver enterrada debaixo da areia e os animais marinhos (já mortos) não estiverem boiando, tá tudo certo. Se não der para esconder a sujeira debaixo do tapete, o bando migra para as praias mais selvagens. Afinal, 300 garis limpam, duas vezes por dia, as 73 praias cariocas, da Ilha do Governador e Paquetá até a Barra de Guaratiba, todos os dias da semana.

A reserva biológica do Recreio dos Bandeirantes, por exemplo, de reservada só tem o nome. Nos finais de semana ensolarados, a “visitação” é avassaladora e descontrolada. A maior preocupação da prefeitura é facilitar o acesso da população e organizar o estacionamento pago dos carros. Afinal, privar o carioca de destruir o quintal de sua própria casa é uma tarefa árdua. Como diria Millôr Fernandes, desde que você não tome banho de mar, não beba, não coma, não olhe, ocasionalmente não respire – e não pense! – a poluição ambiental entre nós é perfeitamente suportável.

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