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Sobre Censura

Censura em qualquer época é um instrumento medieval que põe em risco toda a comunidade. Censura à ciência do clima é pior que brincar com bomba atômica. Nos EUA virou CPI.

24 de março de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Eu era um jovem estudante indignado com o AI-5, o édito autocrático que aprofundou o autoritarismo militar no Brasil. O ato interrompeu o caminho que eu tomara no final da adolescência e me forçou ao desvio. Gostava dos Beatles, mais que dos Rolling Stones, mas era apaixonado mesmo por Janis Joplin. Continuo. Não passo uma semana sem ouvir sua inquietante gravação de Summertime, que sempre me trouxe a sensação de um verão trágico. Ela não morreu no verão. Foi no outono de 1970. Uma semana antes do meu aniversário. Eu ainda acreditava na revolução – não naquele golpe que os militares chamavam de revolução – noutra revolução. Continuo a acreditar na revolução – não aquela em que acreditava na juventude – outra revolução.

Eu queria ter ido para Woodstock, mas não tinha como pagar uma passagem. Meus pais também não tinham como. Eu queria ver o filme sobre Woodstock, mas ele foi censurado. Eu era foca, estagiário, tateando uma carreira jornalística que acabei não seguindo. Vivia diariamente o drama da censura nas redações. A perseguição de vários amigos, jovens repórteres. Alguns continuaram repórteres. Alguns morreram jovens, meninos e meninas. Outros seguiram, como eu, caminhos diferentes.

Eu tinha um amigo, cujo pai acabou nomeado chefe da censura. Esse meu amigo, alguns anos mais velho, era cosmopolita, viajado, culto. Tentava convencer o pai a liberar o documentário sobre Woodstock. O pai propôs uma sessão no Departamento de Censura, com um grupo de jovens, para testar. Convidado, aceitei, embora a idéia de entrar no Departamento de Censura me causasse as piores sensações. Além do mais, tinha sérias dúvidas de que conseguiria sair livre de lá. Mas o acordo de ir e vir foi respeitado, assistimos ao filme, embora sem poder reagir como nossos corações e mentes pediam. Nossa parte do acordo. Nem me lembro se o filme foi liberado durante a ditadura.

Ao final, tivemos uma breve conversa com alguns dos censores. De um deles, ouvi o seguinte: “estamos cumprindo orientação do governo, para proteger a sociedade brasileira, principalmente os jovens, das más influências, mas nós fazemos isso com a maior seriedade e para servir ao povo brasileiro”. Uma senhora, mais jovem que minha mãe na época, me perguntou se eu realmente não achava que a apologia da maconha e do amor livre não podiam degradar o comportamento da juventude brasileira, que precisava estudar e trabalhar para desenvolver o país. Disse que eu não via porque o amor livre pudesse atrapalhar os estudos. Mas principalmente que aquele filme que víramos não era sobre maconha e amor livre, era sobre música. Uma revolução musical, que sobreviveria àquele regime.

Décadas depois, reencontro aceso o tema da censura. Chávez empastela órgãos de imprensa e mete na cadeia donos de TV e jornalistas. Lula quer gastar milhões por ano para fazer uma TV estatal, para fazer propaganda unilateral do governo. Seu governo já tentou restabelecer a censura estatal e corporativista várias vezes, com propostas indecorosas de criar uma agência para controlar a programação da TV ou um conselho para controlar os jornalistas. Bush estabeleceu um sistema em rede de censura aos cientistas para evitar que pudessem afirmar a evidência da mudança climática.

Tudo isso me veio à cabeça, ao ler os depoimentos e ver as provas transparentemente colocadas no site da Câmara dos Representantes do EUA, da Comissão sobre Fiscalização e Reforma do Governo. No seu depoimento Philip Cooney, que chefiou o trabalho de edição e censura dos relatórios, disse o seguinte: “espero convencer a Comissão que eu obedeço aos mais altos padrões de integridade no desempenho de minhas obrigações na Administração, consistentes com minha consciência e valores pessoais de honra e serviço público. Em todos os dias desses quatro anos de serviço eu trabalhei duro para promover as políticas e os objetivos estabelecidos por esta Administração. Acredito que essas políticas são fortemente baseadas na racionalidade e enraizadas no compromisso de servir aos melhores interesses do povo americano”. Trocando povo americano por povo brasileiro, os censores brasileiros assinariam em baixo.

A reação dos cientistas censurados chegou à mídia e fez com que esse caso de censura fosse à Comissão sobre Fiscalização e Reforma do Governo, ombro a ombro com outro escândalo, o do vazamento da identidade da agente secreta da CIA, Valerie Plame Wilson, que levou à prisão a jornalista Judith Miller, do The New York Times, por se negar a revelar sua fonte. Outro caso de dano à liberdade de imprensa e informação.

O protagonista das denúncias sobre censura à ciência, James Hansen, diretor do Instituto de Estudos Espaciais, do Goddard Center, que é parte do complexo científico da NASA, dá a seguinte explicação para a razão de seu depoimento à Comissão, logo na primeira linha: “eu presto este depoimento porque eu acredito que minhas experiências ilustram falhas que se desenvolveram no funcionamento de nossa democracia”. Para Hansen um público bem informado e educado é uma premissa da democracia. “Outro princípio de nossa democracia, a separação dos poderes governamentais, com pesos e contrapesos, é posto em foco pela crise do clima”.

O cientista lembra o depoimento histórico que prestou à Câmara, em uma audiência pública organizada pelo deputado Al Gore, no início de 1982, quando alertou, pela primeira vez, sobre o aquecimento global induzido pela ação humana. “Não me lembro se a Casa Branca teve que aprovar aquele depoimento, mas, de qualquer forma, não fez objeções ao seu conteúdo”. Mas isso iria mudar para pior.

Nos últimos 25 anos, Hansen diz ter testemunhado o crescimento no grau de interferência política nos depoimentos científicos ao Congresso. “Eu depus pelo menos três vezes ao Senado sobre mudança climática no período de 1984-1989 e esses depoimentos tiveram que ser aprovados pelo Escritório de Orçamento e Gestão da Casa Branca (OMB)”, disse. O OMB é o responsável pela relação entre Executivo e Legislativo nos Estados Unidos, porque a principal função do Congresso é a aprovação e supervisão do orçamento federal, que é compulsório e não meramente indicativo, como aqui.

Hansen não teve contato direto com o OMB. Quem cuidava da aprovação dos depoimentos era o Departamento de Assuntos Legislativos da NASA. “Em um caso, eu reagi fortemente às mudanças feitas pelo OMB, porque alteravam significativamente as conclusões de nossas pesquisas e serviam para reduzir a preocupação sobre os possíveis efeitos da ação humana na mudança climática”. Um funcionário dos “Assuntos Legislativos” da NASA informou, contudo, ao cientista, que ele poderia depor como um cidadão privado, com o conteúdo que quisesse. “Aproveitei as vantagens desse direito, depus como cidadão, e jamais senti qualquer reação por tê-lo feito”, conta. Mas iria piorar.

“Após 1989, quando a mudança climática passou a ser uma preocupação maior do público e dos políticos, as restrições à comunicação pela via dos depoimentos ao Congresso se tornaram mais estritas”, continua. E conta que quando submeteu um depoimento escrito, a ser apresentado a uma comissão do Senado presidida pelo senador Al Gore, ao escritório central da NASA, foi alertado que o manuscrito sofreria mudanças determinadas pelo OMB. Enfurecido, exigiu que qualquer mudança fosse feita em seu escritório. Várias das modificações negociadas eram, segundo ele, “reescritas aceitáveis”, mas três alterações eram inadmissíveis. O escritório central da NASA informou, então, que ele tinha que admitir as mudanças ou não poderia depor. “Eu concordei em deixar as mudanças, mas enviei um fax ao senador Gore, pedindo-lhe que me perguntasse durante a audiência especificamente sobre aqueles pontos, porque eu queria deixar claro que o que estava escrito era a opinião do OMB da Casa Branca, não a minha opinião”. Parte desse interrogatório aparece no filme Uma Verdade Inconveniente. Mas iria piorar.

O departamento de Relações Públicas do Escritório da NASA foi sendo crescentemente politizado, à medida que o clima ia se tornando uma questão pública e, portanto, política. “Em minhas mais de três décadas no governo, eu nunca vi nada parecido com o grau pelo qual o fluxo de informação dos cientistas para o público tem sido filtrado e controlado, como agora”, ele disse no Fórum da Liberdade, em 2006, e repetiu em seu depoimento na Câmara. O efeito dessa filtragem da informação científica pela administração Bush, segundo ele, foi tornar mais incerta para a sociedade a realidade da mudança climática do que os fatos indicam, reduzindo a preocupação em relação ao impacto das emissões humanas de gases estufa no clima.

Hansen recheou seu depoimento de casos da “cozinha” das relações cada vez mais estressadas entre o Escritório Central da NASA e o Goddard Center. Entre o braço político, diretamente ligado à Casa Branca, e o braço científico, lutando por sua autonomia científica e intelectual. Foi cerceado nas entrevistas à imprensa, que a NASA tinha o direito de recusar, foi proibido de colocar na Web as análises atualizadas da temperatura global. Ao invés de recuar, escreveu uma memória da censura – nunca determinada por escrito, sempre a viva voz e com ameaças de conseqüências terríveis – que terminou em um artigo do jornalista Andy Revkin para o The New York Times. A NASA desmentiu oficialmente, óbvio, e jurou defender a transparência científica. Juras repetidas nos depoimentos de um dos estrategistas da censura, James Connaughton, presidente do Conselho para Qualidade Ambiental da Casa Branca, do funcionário-censor da NASA, Philip Cooney e George Deutsch III.

George Deutsch III, com esse nome pomposo, é um caso à parte. Ele chegou à NASA aos 23 anos, quando ainda estudante de faculdade. Mentiu no seu currículo, dizendo que era formado. Aos 25 anos, ganhou um cargo na “Diretoria de Missão Científica”, do Departamento de Relações Públicas da NASA. Sua qualificação foi ter trabalhado no comitê eleitoral de Bush. Esse rapaz, sem diploma universitário, bloqueou várias entrevistas à imprensa dos cientistas, inclusive de James Hansen. Era também responsável por canetar os relatórios científicos. Ele controlava a relação com a opinião pública de cientistas de ponta, com mais de 30 anos de carreira, sem sequer ter conseguido chegar a bacharel. Só se graduou em 2006, após ter saído da NASA, quando o The New York Times divulgou a sua fraude curricular.

Censura é um recurso medieval, não importa em que século seja imposta. O cerceamento da informação, da busca e da circulação do conhecimento não apenas engrossa o véu da ignorância e do preconceito, que veda a razão, mas coloca toda a comunidade em risco de todo tipo de violência.

A censura sobre um fenômeno com a gravidade da mudança climática e de alcance global, constitui um risco global. Por isso mesmo, Hansen não termina seu depoimento com sugestões sobre como enfrentar a ameaça do clima – fez várias, inclusive uma moratória no uso de carvão em termoelétricas – mas com palavras sobre as ameaças à democracia que deveriam ser objeto de atenção parlamentar. Entre elas, o cerceamento do direito da sociedade à informação científica sem filtragem, e a interferência política nos depoimentos ao Congresso, que impede a fiscalização do Executivo pelo Legislativo. Se as ameaças à democracia não forem vencidas, conclui ele, será difícil ter sucesso no enfrentamento da mudança climática causada pela ação humana.

Eu nunca quis saber o nome dos censores do documentário sobre Woodstock. Eles eram desimportantes, puras ferramentas do arbítrio. Não eram mesmo seus artífices. Lembro-me dos que subiram ao palco de Woodstock. Eles fizeram história com seus instrumentos e suas vozes. Eram artistas, artífices de seu tempo. O amor livre se transformou apenas numa bem comportada e saudável vida sexual, sem as repressões do passado machista e puritano. Aqueles anônimos hippies também fizeram sua parte na revolução de costumes, com uma das melhores trilhas sonoras de todos os tempos.

Enquanto amávamos Janis Joplin e Jimmy Hendrix e Bob Dylan e Arlo Guthrie e Joan Baez e Pete Townshend e Joe Cocker e tantos mais, soprávamos inocentes os gases estufa para a atmosfera.

A inocência acabou. Ainda não temos a trilha sonora para o século XXI. Mas já temos o roteiro que, além de nada bom, vinha sendo censurado. Quem sabe agora, que o script será mais bem conhecido por todos, à voz sóbria dos cientistas se junte algo como uma guitarra de um gênio herdeiro de Jimmy Hendrix, que exploda nos ouvidos do mundo uma espécie de “The Star Spangled Banner” global, junto com uma voz rascante como a de Janis Joplin, que emocionem e mobilizem gente espalhada pelo planeta todo para que comece a revolução que o século XXI precisa fazer.

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