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O alerta da seca

A seca é grave na Amazônia e no Pantanal e pode piorar nos próximos anos. Ela ocorre porque o ambiente está degradado e também degrada. É o limite do risco.

4 de novembro de 2005 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A seca na Amazônia não é trivial. E não apenas por seus efeitos imediatos, sociais – ela atinge dramaticamente as populações ribeirinhas e mais carentes – e ambientais – a seca leva ao aumento das queimadas, facilita o desmatamento e a interferência no fluxo futuro de águas, por parte de proprietários de terras em afluentes menores. Ela tem conseqüências de longo prazo e, dependendo da intensidade da interação entre a seca, as queimadas e o desmatamento, pode contribuir para mais uma etapa de formação de um ciclo vicioso de alterações ecológicas mais profundas.

Essa seca não aflige apenas a Amazônia. Ela está sendo devastadora, também, no Pantanal, pelas mesmas razões. O fato de a seca pantaneira não ocupar o mesmo espaço – pequeno, diga-se, diante de sua proporção sócioambiental – mostra que o Brasil ainda não sabe uma coisa essencial de sua geoecologia: a Amazônia e o Pantanal são partes de um mesmo subsistema. O Pantanal depende crucialmente do regime de águas da Amazônia, me disse Adalberto Eberhard, importante especialista na região, em uma entrevista para a BandNews FM, durante uma importante reunião de ambientalistas na Fazenda Rio Negro, numa região próxima à da Nhecolândia, hoje uma das partes mais afetadas pela seca.

Esse é daqueles problemas que, se tivéssemos um governo sério, teria gerado reuniões de cúpula com cientistas e levado à criação de um programa responsável para estudar o fenômeno, agir para tentar evitar seu agravamento futuro e desenvolver mecanismos mais adequados de monitoramento e ações que permitissem mitigar seus piores efeitos. Se o Brasil fosse mais sério e tivesse mais consciência de seus próprios problemas e do que fazemos para gerá-los, estaríamos pressionando seriamente o governo para adotar essa atitude. Infelizmente, tudo o que o presidente da República conseguiu foi atribuir o problema à mudança climática produzida pelos países desenvolvidos. Não é a ignorância do presidente Lula que espanta. É a falta de seriedade. Já deveria ter consultado sua ministra do Meio Ambiente, reunido um grupo de especialistas, para lhe fazer uma exposição do problema, preparando-se para falar dele de forma responsável e tomar as decisões que se espera de um Chefe de Executivo.

Como ocorre com todo fenômeno climático, a ciência não tem explicações prontas, nem modelos prontos para oferecer previsões mais precisas sobre o que pode ocorrer no futuro. Há evidência de que houve redução continuada, ano a ano, do volume de chuvas na Amazônia e no Pantanal, de 2002 para cá. A região enfrenta o segundo ano consecutivo de seca rigorosa, que pode estar interrompendo um ciclo de cheias volumosas. Amazônia e Pantanal se caracterizam por ciclos de seca-cheia anuais. Esses ciclos anuais, se inserem em ciclos mais longos, nos quais há períodos mais prolongados de cheias mais intensas e fases de secas mais agudas. O excesso, em ambos os casos constitui um problema importante. A cheia provoca mudanças ambientais também, leva à disrupção de atividade econômica e, ao atingir áreas de produção agropecuária, pode agravar a contaminação das águas por biocidas e outros agroquímicos. O assoreamento dos rios e a erosão dos igarapés, agravam os efeitos tanto das enchentes, quanto das secas, e são em grande parte resultantes do processo de ocupação e urbanização desordenadas e desmatamento. O desmatamento, ao reduzir a cobertura ciliar, expõe os rios à erosão de margens e ao assoreamento. A ocupação urbana, eleva a quantidade de efluentes, provocando a poluição e o assoreamento dos leitos dos rios.

Esses ciclos de vazante e enchente são naturais. Fazem parte da ecologia desses sistemas. Mas o que precisa ser estudado a fundo é se os danos ambientais que vêm sendo causados pelas várias formas de intervenção nas duas regiões, não estão produzindo ciclos menos naturais, que os especialistas chamam de antropizados, ou afetando a freqüência ou intensidade dos ciclos naturais. O climatologista Enéas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, alertou em entrevista ao Espaço Aberto Miriam Leitão, da Globonews, esta semana, que as atividades humanas aceleram os ciclos naturais e têm efeitos em sua freqüência e/ou intensidade. É o caso, segundo ele, das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, que encurtam ciclos climáticos. Por forças exclusivamente naturais eles durariam milênios ou séculos, com a intervenção humana, se dão em décadas. Já comentei aqui, as evidências científicas de que o aquecimento das águas dos oceanos aumenta a intensidade das tempestades, transformando-as em furacões de nível 4 e 5. Mesmo que não haja prova científica conclusiva, certamente estamos diante de uma situação de risco evidente e iminente. A possibilidade de intensificação dos ciclos naturais na Amazônia e no Pantanal, com contribuição decisiva das queimadas, configura um risco que qualquer governo sério do mundo estaria se preparando para enfrentar.

A seca deste ano é a segunda mais rigorosa dos últimos 10 anos. A outra foi em 2001. Essas duas secas ocorreram dentro de um ciclo de cheias significativas. O ano de 2002, foi de cheia significativa. Em 2003, a cheia foi menor que o esperado e, pior, apesar de o rio Paraguai mostrar níveis muito altos, mais de 5 metros, acima de Ladário – o marco utilizado para avaliar o nível do rio e determinar a intensidade dos ciclos cheia-seca – as sub-regiões pantaneiras de Nhecolândia, Paiaguás e Nabileque sofreram seca, caracterizando uma situação muito atípica, na opinião do hidrólogo Sérgio Balbino, da Embrapa Pantanal. A climatologista Balbina Maria Araújo Soriano, também da Embrapa Pantanal, comentou, à época, para a Agência Brasil, que choveu 35% abaixo da média dos outros anos naquela sub-região, que também registrou temperaturas mais altas e umidade relativa do ar mais baixa, que o normal para aquela época do ano. No ano passado, os pesquisadores já começavam a se preocupar com a possibilidade de estarmos entrando em um ciclo de seca. Balbina Soriano explicava que nas estações chuvosas dos biênios 2003/2004 e 2004/ 2005, a redução média das chuvas passou de valores de 10% a 15% para 25% a 30%. Outra evidência preocupante, segundo os pesquisadores da Embrapa Pantanal, está relacionada à oscilação média histórica do nível do Rio Paraguai em Ladário, que no período de 1900 a 2004 para o período março-julho foi de ±16 milímetros. Este ano, o valor observado foi metade disso, 8mm. Eles informam que a última vez que uma estagnação desse tipo ocorreu foi no ano de 1973, quando a variação média diária, para mais ou para menos, nos meses de março a julho foi de apenas 7 milímetros. Uma anomalia que pode efetivamente indicar mudança de ciclo.

Na Amazônia também há sinais de redução do volume pluviométrico. O físico Paulo Artaxo, da USP, alertou, no ano passado, para o fenômeno da supressão de chuva na região, em trabalho apresentado à III Conferência Científica do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA). Para ele, há relação entre o fenômeno e o desmatamento. A fuligem das queimadas levaria à saturação do processo de formação de nuvens, impedindo a precipitação. Embora suas conclusões ainda requeiram informações de pesquisas em curso, sua hipótese faz todo sentido: as queimadas inibem as chuvas, aumentando a duração da seca, que leva a mais queimadas. Um ciclo antrópico, que tende a prolongar as secas. Paulo Moutinho, coordenador de Pesquisa do Programa de Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), concorda. Para ele, o desmatamento é um agravante na Amazônia. Diz que a grande ameaça para a floresta é a conjunção entre fatores climáticos planetários e os problemas locais, como a derrubada indiscriminada das árvores. Como quase 50% das chuvas que caem sobre a região vêm dos vapores d’água da própria floresta, a redução da floresta reduz a quantidade de vapor de água na atmosfera. Enéas Salati tem a mesma opinião e alerta para o fato de que a redução desses vapores de água na Amazônia, afeta o regime de águas no Pantanal, no Sudeste do Brasil e em outras regiões, atingindo até o norte da Argentina. Carlos Artur Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não vê, no desmatamento, uma causa imediata da seca. Mas não tem duvida de que as queimadas estejam entre os fatores determinantes da estiagem. Em entrevista ao Repórter Eco, da TV Cultura, disse que “há estudos recentes que indicam que, nos piores dias de queimadas, que no Acre foi na segunda quinzena de setembro, quando há muita fumaça na atmosfera, essa fumaça pode interferir nas cheias locais, no sentido de diminuí-las”.

Muitos cientistas já acreditam que são sinais de mudança climática. Não há comprovação disso, por meio de evidências que estabeleçam conexões causais irrefutáveis, como demanda o cânone ciêntífico. “Há um grande número de cientistas que acredita nessa correlação”, entre o aquecimento global e essa amplificação dos fenômenos climáticos, diz o físico José Goldemberg, atualmente Secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. “Ela não pode ser demonstrada matematicamente ainda, mas vai nessa direção”, afirmou, em entrevista para o site do Instituto Sócioambiental. Para Paulo Moutinho, do IPAM, o que aconteceu agora é “mais ou menos o que está previsto pelos modelos climáticos. Daí a tentativa de associar esses episódios com as mudanças climáticas. Mas não há comprovação”, avalia Moutinho. Carlos Nobre, do Inpe, contou ao Repórter Eco, da TV Cultura, que este ano a seca atingiu, de fato, dimensões alarmantes: “as chuvas, na estação chuvosa, de dezembro de 2004 até abril de 2005, no oeste da Amazônia, foram abaixo da média. O nível dos rios estava mais baixo quando entramos na estação seca e aí houve uma estação seca muito pronunciada. No extremo oeste do estado do Amazonas, no Acre, partes da Colômbia, Peru e Bolívia, já deveria estar chovendo no mês de setembro. Ali praticamente não choveu. As chuvas começaram em outubro. Isso significou que os rios ficaram muito baixos. O nível dos rios do Acre, por exemplo, é o mais baixo de todos os registros históricos”. Ele explicou que a origem dessa seca pode ser encontrada nas temperaturas altas do Oceano Atlântico Tropical Norte – ao norte da América do Sul – nessa ampla faixa do Oceano que vai desde o Caribe até a África, as temperaturas estão persistentemente mais altas que a média por quase um ano, porque os ventos estão mais fracos. Essas temperaturas mais quentes do Oceano fazem com que chova bastante sobre essa região, mas delas resulta, também, “o movimento descendente do ar que inibe a formação de nuvens e, daí, não chove”.

Paulo Moutinho está preocupado com o ciclo vicioso seca-queimada-seca, que pode levar a Amazônia a extremos perigosos. Ele pode aumentar a taxa de mortalidade das grandes árvores, as principais responsáveis pela manutenção da umidade no interior da floresta e diminuir sua capacidade de regeneração. Outra preocupação evidente com essa alteração na intensidade dos ciclos naturais, é com a preservação ada biodiversidade vegetal e animal. Ela é destruída no processo cíclico – desmatamento, queimadas, seca – e corre risco, posteriormente, por causa das alterações ambientais provocado por fenômenos climáticos extremos. Beto Veríssimo, do Imazon, manifestou essa preocupação, em entrevista a Míriam Leitão, para a Globonews.

O zoólogo Renato Cintra, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) contou a Vandré Fonseca, aqui para O Eco, que “locais de reprodução estão sendo perdidos. As aves chegam para se reproduzir e não conseguem ou perdem os filhotes. Parte da exuberância da fauna associada a esses ambientes aquáticos, principalmente de aves, vai sumir.” A morte de animais compromete a floresta, ele explicou, já que muitos são polinizadores ou dispersores de sementes. É o caso das cotias, que enterram frutos das árvores. Vandré Fonseca ouviu, também, o especialista em fisiologia e bioquímica vegetal do INPA, José Francisco Gonçalves, que lhe falou do comprometimento do crescimento da vegetação. Explicou que, para se adaptar a uma realidade mais seca, as plantas evitam perder muita umidade para o ambiente. Com isso, elas deixam de assimilar carbono e reduzem a capacidade de acumular biomassa.

Em resumo, estamos falando de uma tragédia anunciada, que a comunidade científica brasileira conhece e que pode ser mitigada, se não evitada. A queimada se tornou uma inimiga evidente e precisa ser combatida com muito mais vigor. A maioria dos pequenos e médios proprietários a usa e, diga-se, com incentivo de órgãos governamentais – inclusive ambientais – que imaginam que é melhor ensinar a queimada controlada, do que deixar os agricultores usá-la indiscriminadamente, já que não se pode controlá-la. Já contei aqui que, no Pantanal, essa é a visão geral, inclusive de proprietários com atitude ambiental mais responsável, vários proprietários de RPPN’s. Mas todos consideram inevitável queimar os caronais na seca, “até para evitar o fogo espontâneo, inadvertido, que poderia assumir proporções incontroláveis”. Esse é o problema brasileiro mais agudo. Um certo fatalismo, não destituído de oportunismo, que vê certas coisas como inevitáveis. O custo de soluções alternativas à queimada tornaria impossível adota-las. Ao mesmo tempo, os governos gastam fortunas com incentivos que nada fazem se não aumentar a ineficiência da economia e enriquecer capitalistas incompetentes. Não dá para fiscalizar e aplicar a lei, então, ensinamos a desobedecer de forma menos lesiva. E vamos tocando a vida, cada vez mais informalmente, cada vez mais desregradamente, cada vez mais predatoriamente.

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