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Escassez de Governança

Os graves problemas ambientais do país revelam nosso despreparo para enfrentar situações extremas. A crença no verde eterno atrapalha o combate à destruição.

14 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

É impossível ficar impassível ao ver as imagens da seca na Amazônia. Estamos acostumados aos rios da região, Amazonas, Negro, Solimões, como fluxos caudalosos, que nos confortam e asseguram de que estamos salvos, quando falam em falta de água, no resto do planeta. Acostumamo-nos a ver o Brasil como verde e abundante em água e a Amazônia como nosso estoque inesgotável desses dois bens naturais e de ar puro. A Amazônia tem sido nossa Uiara, nossa quimera, nosso mito ecológico.

O inabitual e o inesperado são mesmo chocantes. Especialmente quando se chocam com nossas crenças e percepções arraigadas. O Brasil ainda é verde. Mas muito menos do que já foi. Nosso verde, hoje, vive a permanente ameaça de destruição. E não uma destruição inédita. Manoel Francisco Brito gosta de lembrar que, em dez anos, destruímos o equivalente a dois terços da área do Equador na Floresta Amazônica. O que estamos fazendo lá, é o mesmo que fizemos com a Mata Atlântica, porém em uma velocidade muito maior.

Não conheço opinião científica que associe essa seca inaudita ao desflorestamento. Se não houver conexão alguma, certamente tem uma dimensão metafórica inegável. Aquela Amazônia desértica é uma espécie de visão antecipatória concreta e real do alerta dos ambientalistas de que a região é frágil e facilmente desertificável. Em outras palavras, se não houver correlação entre desflorestamento e essa seca violenta, é certo que existe a possibilidade de que, a continuar a devastação da Amazônia, ela pode se tornar uma terra seca como a que estamos vendo, no futuro, só que como uma mudança estrutural de situação e não mais como uma conjuntura dramática, como é hoje.

Mas esta seca, em particular, traz outros alertas, até mais imediatos. O primeiro, é que não estamos preparados para calamidades dessa escala, seja sob a forma de seca, seja de enchente ou de incêndio. A crise fiscal do estado e a crescente ineficiência dos governos deixam as populações atingidas desassistidas e desprotegidas. Claro que a simples comparação com o desastre de New Orleans revela uma correlação com a renda nacional. As populações pobres de países mais pobres são mais vulneráveis, porque são mais necessitadas, antes mesmo da crise. O exemplo do terremoto no Paquistão é ainda mais eloqüente a esse respeito.

Passivo ambiental

Mas essa não é toda a explicação. Há, também, uma óbvia correlação entre a qualidade da governança, a capacidade de ação estatal e o grau de vulnerabilidade das populações mais despossuídas dos meios necessários à sua autodefesa. Além de mais necessitadas, antes dos eventos infaustos, são menos assistidas por ações preventivas, portanto mais propensas a doenças, menos resistentes às carências determinadas pela momentânea escassez absoluta de meios.

Simultaneamente àquela terrível visão dos rios secos da Amazônia, vimos nossa balança comercial atirada à vala comum, sob a forma de carcaças de gado infectado pela febre aftosa. Não se trata apenas de um drama sanitário. É um desastre ambiental, também, até pelo desperdício de centenas de cabeças de gado que têm, no seu custo de produção, um enorme passivo ambiental. Em outras palavras, devastamos para fazer pastos, para alimentar um gado que, por descuido, desgovernança, ignorância e falta de educação, primária e sanitária, termina enterrado, contaminando o solo.

É outro retrato prático, da crise do estado e da inépcia governamental. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que atribui a falta de ação preventiva ao contingenciamento de recursos para formação do superávit primário, propõe como solução um “fundo emergencial”. Fundos têm sido a não-solução rotineira de todo problema de falha regulatória ou de fiscalização. Solução que põe na mão dinheiro na mão para resolver problemas localizados no tempo e no espaço, mas que não permite atacar, de modo algum, os fatores estruturais que produzem os surtos cíclicos de aftosa e outros males. Livra o lado dele. Mas nada faz para dar ao Brasil as garantias necessárias de que erradicaremos, de fato, essas doenças contagiosas de nossos rebanhos.

Faltam regulação, fiscalização, prevenção e educação. Combater a febre aftosa não é função do estado. Sua função é assegurar que os produtores rurais o farão de forma plenamente adequada. Se o MST contribuiu para isto, como alguns jornais noticiaram, foi por excesso de demagogia e inépcia do Ministro da Reforma Agrária e do Incra, que deveriam ter por obrigação garantir o perfeito cumprimento das práticas sanitárias nos assentamentos. A epidemia é mais um atestado de inoperância do poder público e do desregramento predatório de segmentos do setor privado.

Na Amazônia, a voracidade do desmatamento tem a mesma causa. Faltam regulação adequada, autoridade, fiscalização, prevenção e educação. O poder público falha sistematicamente, quando não se corrompe. No setor privado, o desregramento resvala, não raro, para o banditismo.

Limites

A discussão recentemente reaberta sobre as favelas, no Rio de Janeiro, tem os mesmos ingredientes. Há muita proposta que trata a questão como se fosse conjuntural. As que tangenciam o estrutural e falam de décadas sem política habitacional, na falta de alternativa para os moradores de bem das favelas – para os outros a remoção deveria ser direto para a penitenciária – revela um tipo de alienação muito comum ao Brasil. Demandam construção de moradia popular, novas leis, como se fosse pura e simplesmente uma questão de “vontade política”. Leis, temos de montão, que permitiram coibir quase tudo que vemos de errado. Falta obedecê-las e fazer obedecê-las. Políticas públicas sem recursos e capacidade de implementação não passam de desperdício de dinheiro escasso. Não é falta de vontade política. Se fosse seria fácil. Olhem para trás, já faltava há muito o que falta hoje, independentemente do tipo de governante. Omissões públicas, desvios privados, transgressões a granel, de pobres e ricos, proprietários e despossuídos.

É esse quadro de desgovernança pública e privada, que alcança também os movimentos sociais, que faz temer pelo São Francisco, pelo Amazonas, pelas matas que ainda estão de pé, pelas espécies mais cobiçadas, pelas vidas comprometidas pela poluição do ar. Erram os estatistas, quando imaginam que é apenas uma questão de “fortalecer o estado” e abandonar a política de austeridade fiscal. Sem uma reforma que retire do estado funções que exerce e que não deveria exercer, para poder executar a contento o que hoje seria sua obrigação intransferível; que transfira funções do aparelho federal do estado, para os aparelhos estaduais e municipais, não haverá como habilitar o setor público para fazer a parte que lhe cabe no enfrentamento desses e de vários outros problemas. Erram os liberais, ao pressupor que o mercado tem respostas para todos esses problemas. O setor privado tem sido uma contraparte nada desprezível em todos os processos de degradação urbana, ambiental e rural que observamos. Erra a esquerda, quando imagina que os movimentos sociais e os partidos socialistas, de todos os matizes, têm as respostas para esses problemas e não contribuem na sua geração. Eles não têm respostas adequadas e são atores ativos na produção desses males todos.

Está claro, para mim, hoje, que estamos marchando aceleradamente para encontrar nossos limites. Nossa taxa de crescimento já é medíocre, limitada, entre outros fatores, por graves distorções institucionais, que produzem desequilíbrios insanáveis em nossa economia. Estamos destruindo recursos preciosos, numa velocidade incompatível com nossos anseios de longo prazo. Hoje já é, basicamente, questão de saber se tomaremos, coletivamente, consciência de nossas graves distorções a tempo de corrigi-las e nos habilitarmos a mudar nossa trajetória, ou se cumpriremos esse nosso destino trágico.

Os sinais não são auspiciosos. No momento, nada fazemos que indique estarmos próximos de alcançar esse estado de consciência. Ao contrário, estamos planejando uma insensatez que pode nos custar, em definitivo, o futuro do rio São Francisco; destruímos floresta, como se estivemos cortando capim para o gado; achamos que temos tempo, verde e água para esbanjar e que o ar de nossos grandes centros urbanos é respirável.

China

Países que disputam conosco a condição de emergentes promissores dão sinais de que tomaram consciência de seus limites naturais. É o caso, por exemplo, da China. Zheng Bijian, que assessora o partido Comunista Chinês na formulação de seus planos estratégicos, atualmente presidente do Fórum para Reforma da China, uma ONG chinesa dedicada aos problemas do desenvolvimento, em artigo na Foreign Affairs, número 5, volume 84, setembro/outubro de 2005, afirma que “qualquer pequena dificuldade em seu [da China] desenvolvimento econômico ou social, distribuído sobre esse vasto grupo [de 1.3 bilhões de chineses], pode se tornar um grande problema”. E explica: “a escassez de recursos naturais para sustentar uma população tão grande – especialmente, energia, matérias primas e água – é crescentemente um obstáculo, especialmente quando a eficiência do uso e reciclagem de materiais é baixa”.

Nossa escala não é a mesma, mas nossos limites são tão reais quanto os chineses. Especialmente se e quando lograrmos atingir uma taxa de crescimento mais alta e que jamais ficará próxima da média de 9% ao ano que a China vem realizando desde 1978.

Mais importante: temos uma situação muito melhor que a China, no que se refere a qualquer recurso natural. Podemos, portanto, tornar viável nosso crescimento sustentável, com menos esforço e custo.

Mas temos menos capacidade de governança, hoje, do que a China. A edição internacional da Newsweek, de 28 de setembro/3 de outubro, em matéria intitulada “Building in Green” (“Construindo em verde”), conta que o governo chinês contratou o arquiteto e designer industrial dos Estados Unidos, William McDonough, para construir uma série de “ecocidades”, com o objetivo de não apenas urbanizar populações rurais, mas, sobretudo, torná-las aptas a viver com conforto, em condições de máxima eficiência possível no uso de recursos e proteção ambiental. O plano é mover – e não remover – 400 milhões de pessoas, metade da população rural, para centros urbanos até 2030. No processo, limparão terras contaminadas pela poluição industrial, implantarão vastas áreas de coleta de energia solar, construirão casas de baixo custo e alta eficiência energética – tanto no aquecimento, quanto na refrigeração, quanto no uso de água – usando novos materiais de construção, menos agressivos ambientalmente e mais eficientes em termos termodinâmicos.

Enquanto isso, no Brasil ainda estamos no estágio de programar mais agressões ambientais, considerar nossos recursos inesgotáveis e pouco aproveitados. É o ponto de máxima destruição possível. Adicione-se a crise fiscal e os déficits agudos de governança e temos base para hipóteses aterradoras sobre nosso futuro próximo.

A questão é saber de quantos desastres precisaremos, de quantos novos escândalos de corrupção e quantos presidentes farisaicos mais, para tomarmos consciência da necessidade de mudanças estruturais que nos garantam um rumo mais promissor.

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