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Eu também tô bolado. E você?

A história de um caso de degradação ambiental que deu certo. A espécie humana que reagiu a ela tem muitas lições a dar. Sobretudo sobre vida e missão de vida.

30 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Se alguém quiser ver de perto o que é uma comunidade ecologicamente degradada, deve assistir ao filme Favela Rising. É um filme de Jeff Zimbalist e Matt Mochary, rodado em Vigário Geral, uma sofrida favela do Rio de Janeiro onde, depois de uma chacina conduzida por policiais – mostrada no filme – surgiu o afroreggae. Uma ONG sociocultural, que também é uma banda, que é várias bandas e poderiam todas se chamar, também, heróis da resistência.

A essa altura, o leitor deverá estar se perguntando o que isso tem a ver com ecologia. Basta ver o filme, com suas imagens radicalmente urbanas e brutais – social e fisicamente falando – para saber. Um ecossistema inclui todas as relações entre seus indivíduos e suas interações com o ambiente físico. As características de um ecossistema estão também presentes nos sistemas da “sóciosfera”. Da mesma forma que a biosfera pode ser vista como o conjunto dos ecossistemas. No ecossistema, os indivíduos afetam o ambiente e são afetados por ele. Dependem dele para sua sobrevivência.

Veja o que o biólogo Richard Lewontin diz, em seu livro sobre A Diversidade Humana: “Não existe qualquer caracterização de qualquer ser humano que não seja em um estado de transformação desenvolvimentista por toda a vida”. Mais adiante, esclarece: “A natureza desse processo de desenvolvimento é tal que, em cada instante de tempo, a mudança que está ocorrendo é uma função tanto do estado presente do organismo, quanto do ambiente em que ele se encontra. Isto é, para se prever como um organismo será em algum momento do futuro, não é suficiente conhecer como ele é hoje, nem seria suficiente descrever o ambiente pelo qual esse organismo vai passar. É preciso saber essas duas coisas. Neste sentido, o organismo em desenvolvimento é como uma cápsula espacial. Para dizer qual será sua posição em determinado ponto do tempo no futuro, precisamos saber sua posição presente e as forças de aceleração que atuarão sobre ele nesse ínterim. Uma importante conseqüência dessa codeterminação das características do organismo é que o mesmo ambiente encontrado em diferentes estágios do ciclo de vida terá conseqüências diferentes”.

Uma diferença importante da sóciosfera é que os humanos desenvolveram enorme capacidade de intervenção tanto em seu ambiente físico, quanto no social, ou seja no padrão de interação entre indivíduos. Uma intervenção que pode se dar para o bem e para o mal. Favela Rising, mostra essas duas possibilidades, sem demagogia e sem apelações. É a história de uma interação dramática entre pessoas íntegras e pessoas degradadas, em um ambiente físico e social hostil. E é, também, a história de jovens que, diante da tragédia e do altíssimo risco social e ambiental que ameaça sua comunidade, decidem que podem intervir para combater as forças brutais que aceleram a deterioração da vida e da convivência.

É um filme seco e violento, como é esse ecossistema e como fica, às vezes, a música do afroreggae. A narrativa doce e franca com que Anderson Sá começa a nos introduzir nessa tragédia, que é também uma saga, comunitária e individual, transcende a objetividade do que está contando. Está cheio de contrapontos e contradições. Contradições sociais. Conflitos sociais e emoções conflitantes. O jeito manso de Anderson Sá e de José Junior, a maneira como trazem a emoção até a ponta da língua, mas ao invés de gritarem, o tempo todo, “eu tô bolado!”, como em uma de suas músicas, o que teriam todo direito de fazer, preferem falar mansinho de amor, amizade, dor, comunidade e missão de vida. Aliás, lição de vida também.

Todo esse drama se passa em um vasto deserto urbano, no qual se pode ver, espalhados por toda parte, os escombros da sociedade brasileira, despedaçada pela corrupção, pela irresponsabilidade e omissão do poder público e pela alienação da maioria. Todos os males que os ambientalistas tentam combater, estão presentes nesse ambiente desértico, populoso e palpitante, vitimado pelo medo, pela discriminação e por injustiças seculares: poluição, desrespeito à vida, aridez provocada pela devastação, perda de vidas e da riqueza da biodiversidade. Cada cena mostra a enorme diversidade, criatividade e energia que são dizimadas, com uma facilidade impressionante. É, também, um sistema de extrema fragilidade.

As ameaças que o cercam não são apenas externas. Vêm, também, de indivíduos que entram na comunidade para estabelecer um sistema de mandonismo local, de banditismo tirânico, que tira a liberdade de ir e vir, que tira a liberdade, que tira vidas… Do lado de fora, também, o preconceito e a alienação, lhes tiram a liberdade de ir e vir, a liberdade, a vida. Famílias que só podem se encontrar no asfalto, porque embora morem em pontos da mesma vizinhança, eles são controlados por quadrilhas rivais. Os morros cariocas são cortados por “faixas de Gaza”, que, quando transpostas, só têm uma punição, a morte. Quando descem para encontrar os parentes e amigos, correm o risco da prisão arbitrária, da violência policial, do preconceito dos brancos atemorizados pelo “levante das favelas”. Deve ser culpa. “Vivemos uma guerra civil”, já ouvi muito rico e muita gente de classe média dizer. Quê isso, cara pálida? Vai lá ver o que é uma guerra de verdade e que nada tem de civil, porque não tem causa, pátria ou bandeira.

Não por acaso, a maioria das personagens que aparecem em Favela Rising é composta por jovens do sexo masculino, negros, entre 14 e 25 anos. Um grupo que pertence a uma coorte de jovens, que somam quase 34 milhões de seres, praticamente 20% da população brasileira. Dentro dela essa fração masculina e negra está sendo dizimada pela violência. Como está no gráfico abaixo, a média de mortes violentas de pessoas de todas as idades e ambos os sexos é de 71,0 por 100 mil habitantes, no Brasil. No Rio de Janeiro, é 98,9. Para os homens, apenas, a média brasileira é 121,5 e, no Rio, 173,1. Para os homens jovens, ela sobe para 177,1 no Brasil. No Rio de Janeiro, é praticamente o dobro: 336,4. A média para homens jovens negros no Brasil é de 194,1 e, no Rio, 498,4. Esse filme explica, em grande, parte esse números. Eles ficam de carne e osso, passam a ter cara, familiares que choram por eles, pais que perdem filhos, filhos que perdem pais. Seus assassinos também aparecem, públicos, vestidos de policiais, e privados, como quadrilheiros encapuzados.

É dessa faixa da população que se perdem espécies humanas. O afroreggae entra como uma brigada de incêndio, tentando, salvar o máximo de indivíduos possível e melhorar o próprio ambiente de vida para eles. Uma resistência armada de muita coragem, grande criatividade, fé, tolerância e música. Tolerância sem resignação. Numa das cenas de maior impacto – para mim, vocês encontrarão outras, é a bênção da diversidade – Anderson Sá conversa com um grupo de meninos na favela. Um deles, se vê, que “tá muito bolado”. É um menino bonito e cheio de raiva. Deve ter uns dez anos e muita raiva. Anderson pergunta: “e aí, o que você quer ser quando crescer?” Resposta: “Bandido. Eu quero ser bandido.” Contra-resposta: “Ih, olha só o caô, quer ser bandido nada ô rapá”. Mas o garoto insiste, agressivo, “quero ser bandido sim, já até roubei”. “Bandido morre cedo, rapá. Já viu bandido velho? Qualé?” O menino não cede. Nem Anderson Sá. Dá-lhe um amistoso tapinha por trás da cabeça, quando ele se vai. O olhar de Anderson mistura consternação e a certeza de que é esse tipo de caso perdido que o afroreggae quer seduzir. Sedução que tem que ter força para se contrapor à do crime, sob a forma de vida boa, carros e motos, fama, que cativa os meninos, para entrar no crime, e as meninas para ficar com os bandidos. E eles estão avançando sobre esse território sem lei e sem ordem, com música, valores e regras. No afroreggae, não se bebe, nem se fuma, menos ainda se droga. E vão levando, tomando espaço ao banditismo e à desesperança.

Não se deixem enganar pela mansidão de protagonistas como Anderson Sá e José Junior. É preciso mais fibra e coragem para fazer o que fazem, do que para ser bandido, atrás de um fuzil ou uma automática, que aparecem profusamente em várias cenas. Nem pensem que eles estão calmos. Ao contrário, eles são rebeldes e estão bolados. Tampouco se vêem como heróis. Heróis para eles são a gente honesta da comunidade, que enfrenta a violência de todos os lados e só quer passagem. Não quer ser barrada na favela e barrada para as vantagens do asfalto.

Se depois do filme, você também tiver ficado bolado, não se preocupe. Comemore, você é socialmente são. Mas, se não se sentir também responsável e não estiver quase sufocado de indignação, é porque já perdeu a consciência, já contraiu o vírus que está ameaçando o Brasil. Está socialmente muito doente. Só tem um jeito: ouça afroreggae de duas em duas horas, vá a todos os shows, veja Favela Rising mais umas cinco vezes e, toda vez que ler sobre a violência no Rio e em São Paulo, toda vez que achar que aquele garoto negro é bandido, pense mais, mire-se no exemplo dos meninos de Vigário Geral.

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