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Brasília, onde os ratos tomaram o lugar dos candangos

A capital do país, afamada pela qualidade de vida e espaços verdes, esconde uma deterioração ambiental movida à especulação imobiliária.

16 de outubro de 2013 · 11 anos atrás
  • Reuber Brandão

    Professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservaçã...

O candango que desapareceu em Brasília.
O candango que desapareceu em Brasília.

Candango é uma palavra de origem angolana, da língua Quimbundo (família lingüística Bantu) que significa “gente ruim” ou “pessoa desprezível”. Usada originalmente para designar traficantes de escravos portugueses, passou a ser sinônimo de trabalhadores braçais sem qualificação. Era exatamente esse o perfil de milhares de brasileiros de todo o país, que migraram nos fins dos anos 50 e início dos anos 60 para Brasília, Distrito Federal. Por isso, ganharam também o apelido de candangos, guerreiros que a custa de muito esforço, dedicação e trabalho duro ajudaram a construir a nova capital federal do Brasil. Desde então, ser candango passou a ser motivo de orgulho, sinônimo de trabalhador esforçado e diligente. Inspirou até um modelo de jeep da DKW-VEMAG de motor dois tempos e tração integral. Simples, forte e guerreiro.

O lugar escolhido para a nova capital é realmente especial. O planalto elevado (pediplano) de Brasília, composto por subunidades regionais (Brasília, Contagem/Roncador), apresenta uma profunda camada de solo argiloso. Esse antigo planalto (formado no Terciário) é bem diferente de outros planaltos de altitudes e idades semelhantes, como a Chapada dos Veadeiros ou a Serra dos Pirineus, onde o raso solo arenoso e os afloramentos de quartzito são os principais elementos da geomorfologia.

O Planalto de Brasília é um gigantesco anfiteatro elevado, em forma de meia-lua, com altitudes de até 1.340 metros, no qual convergem os riachos que formavam o rio Paranoá, hoje represado. A Missão Cruls, responsável por escolher a região que iria receber a nova capital em 1892, já havia imaginado a formação de um grande lago, em cujas margens seria erguida uma grande cidade, justamente em um quadrilátero do qual partiam as nascentes que alimentam as bacias Platina, do Tocantins e do São Francisco. Mas foi apenas no governo JK que o país resolveu colonizar a vastidão do Cerrado, naquele local de horizontes infinitos e de um céu gigantesco.

A transformação da vastidão do Cerrado em uma das maiores cidades do país ainda é considerada a maior epopéia brasileira. O rio Paranoá foi represado justamente sobre a sua antiga cachoeira, formando o lago homônimo com mais de quatro mil hectares, onde as embarcações dos novos ricos de Brasília se acotovelam nos fins de semana. Dezenas de novos aglomerados urbanos foram planejados e construídos. Milhares de quilômetros de estradas foram abertas no meio do latosolo vermelho e a terra foi revirada em quantidade na construção da cidade.

O único roedor que Brasília vitimou

“Apesar de esforços continuados para o registro de novos exemplares da espécie, nenhum indivíduo foi encontrado desde sua descoberta. Desta forma, esse interessante roedor se tornou o primeiro vertebrado do Cerrado formalmente considerado extinto.”

Durante uma dessas movimentações de terra, um trator expôs a galeria subterrânea de um pequeno roedor ainda desconhecido. A descoberta acabou servindo de homenagem aos homens que tornaram a cidade realidade: o então Presidente Juscelino Kubitschek e os trabalhadores braçais envolvidos na tarefa de transformar cimento em cidade, recebendo o nome de Juscelinomys candango, popularmente conhecido como rato-candango.

Ainda hoje são descobertas espécies novas de vertebrados na paisagem especial do Distrito Federal. No entanto, apesar de intensos trabalhos de campo, o único registro do rato-candango (Juscelinomys candango) continua sendo a área onde hoje está o Zoológico de Brasília. A espécie é conhecida apenas do pequeno grupo de indivíduos originalmente encontrados nos anos 60 e atualmente depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Apesar de esforços continuados para o registro de novos exemplares da espécie, nenhum indivíduo foi encontrado desde sua descoberta. Desta forma, esse interessante roedor se tornou o primeiro vertebrado do Cerrado formalmente considerado extinto. Esse foi o primeiro candango vítima do crescimento de Brasília. Mas não é o único.

Confusão fundiária

A despeito da aparente qualidade de vida de Brasília, um verdadeiro caos fundiário existe no Distrito Federal. Com a criação da nova unidade federativa, grande parte das terras pertencentes ao governo de Goiás foi repassada às companhias imobiliárias e de desenvolvimento do Distrito Federal. O documento, no entanto, não é claro em definir os limites de diversas propriedades. Muitos dos antigos proprietários não foram localizados, nem indenizados. E se formou um grande imbróglio fundiário no Distrito Federal.

A ausência do controle do poder público sobre a ocupação do Distrito Federal era patente nas décadas de 70 e 80. No entanto, a partir dos anos 90 em diante, especialmente com o crescimento das cidades e a especulação imobiliária, começaram a entrar em operação as derrubadas, associadas ao intenso parcelamento e venda de terras putativamente públicas. O valor da terra no Distrito Federal valorizou-se de forma absurda e sedimentou-se a cultura da especulação imobiliária candanga.

Terras públicas, lucro privado

A capital cresce acelerada sobre o Cerrado. Foto: Leandro Neumann Ciuffo/Flickr
A capital cresce acelerada sobre o Cerrado. Foto: Leandro Neumann Ciuffo/Flickr

Mas algo interessante ocorre no Distrito Federal. Devido a imprecisões de documentações antigas, a Companhia Imobiliária do Distrito Federal, Terracap, não parece saber exatamente onde estão e quais são suas terras. No entanto, devido ao valor do solo no Distrito Federal, a Terracap (hoje endividada devido às obras do novo estádio de futebol da cidade) propaga a informação de que a maior parte das terras do Distrito Federal é pública e pertencem a ela. Por outro lado, a Terracap é bastante singular. Uma parte do valor das vendas de terras públicas no Distrito Federal é repassada aos seus servidores como participação nos lucros. Ou seja, vendem terras públicas e transformam em ganho particular. Com isso também se cria a cultura institucional da especulação imobiliária. Para muitos servidores do Governo do Distrito Federal, é melhor investir na valorização da terra (e vendê-la a preços inacessíveis) que tomar as rédeas do conflito fundiário do Distrito Federal e garantir moradia à população e um planejamento responsável no uso do solo. E no meio desta confusão, estão diversas áreas protegidas que lutam em desvantagem contra o parcelamento do solo e a insularização provocada pelo avanço de uma matriz agressiva.

Na mira, áreas protegidas

Os olhos de cobiça se erguem agora sobre o conjunto de áreas protegidas formadas pela Estação Ecológica do Jardim Botânico, da Reserva Ecológica do IBGE e da Área de Relevante Interesse Ecológico do Capetinga/Taquara, gerenciada pela Fazenda Água Limpa da Universidade de Brasília. Uma nova cidade para 950mil pessoas está planejada para ser instalada em uma área de 17 mil hectares de Cerrado, vizinha a este conjunto de áreas protegidas. Além do desmatamento para a instalação da cidade em si, querem rasgar estas áreas protegidas por uma rodovia. Como existem Unidades de Conservação distritais nesse conjunto de áreas, tenho certeza que a luta pela manutenção da integridade desse valioso bloco de Cerrado, terá resultados desastrosos, independentemente dos anseios da sociedade.

O único verde que conta em Brasília é o verde do dinheiro. Existe muito interesse em jogo. Como resultado da insensibilidade do poder público na política habitacional, mais de 600 mil famílias no DF não possuem escritura da moradia, mas pagam todos os impostos e aguardam o momento da sonhada regularização, mesmo temendo o custo do solo a ser estipulado pela Terracap. Faz parte da estratégia de especulação governamental do DF a demonização de pessoas que habitam hoje terras putativamente públicas. Hoje percebo que muitas destas famílias foram empurradas para algumas dessas áreas pela impossibilidade de adquirirem moradia em uma cidade aonde o metro quadrado já chegou a ser vendido a mais de 12 mil reais em imóveis ainda na planta. Resultado do repasse do custo dos terrenos vendidos pela Terracap às construtoras para o consumidor final. E a violência contra essas famílias durante as operações de derrubada servem apenas atender a interesses de grandes especuladores.

Que chance teria o elusivo candango em uma realidade desta? Como as áreas protegidas do DF conseguirão sobreviver se o próprio governo as enxerga apenas como um metro quadrado valioso no mercado imobiliário? O Juscelinomys candango foi o primeiro a desaparecer. Vão-se os pobres candangos, mas outros ratos prosperam…

 

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