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Acima da Lei

Enquanto o Ministério Público luta para conseguir, na justiça, que a Prefeitura do Rio de Janeiro faça o seu trabalho, o prefeito César Maia dá uma aula de falta de caráter.

3 de novembro de 2006 · 17 anos atrás

Finalmente alguém decidiu fazer alguma coisa sobre a favelização do Alto da Boa Vista, um problema que, como todo morador do Alto da Boa Vista sabe, já dura décadas. O bairro está sendo tomado de assalto por favelas e outras formas de ocupação irregular de suas verdes encostas, em um retrocesso centenário em termos de conscientização ambiental. O império da desordem está destruindo, rapidamente e com a conivência da Prefeitura do Rio, o que o Império Lusitano, há quase 150 anos, se deu o trabalho de recuperar e preservar.

O Alto por baixo

É bem-vinda, portanto, a iniciativa do Ministério Público de ajuizar uma ação civil pública para impulsionar o município inerte e o Prefeito conivente a fazerem os seus trabalhos. Ainda mais bem-vinda é a lúcida decisão da juíza da 4ª Vara de Fazenda Pública concedendo medida liminar para obrigar o município a começar, desde já, a tomar as medidas necessárias a conter o avanço da ocupação irregular do bairro. O município deverá apresentar, em 30 dias, um projeto de reflorestamento da área desmatada, com um cronograma de execução e, em 40 dias, um plano de remoção e reassentamento das pessoas que hoje vivem nesses locais, e um plano de fiscalização para impedir a reocupação das áreas reflorestadas. Ao todo, deverão ser removidas 14 favelas — ou comunidades, chame-se como quiser.

É um plano ambicioso, sem dúvida, mas que a juíza Cristiane Cantisano Martins parece ter entendido bem. Em sua decisão — que antecipa os efeitos dos pedidos formulados pelo MP, para que não se tenha que esperar o longínquo fim do processo para começar a tomar as medidas cabíveis — ela entendeu que “em que pese a lamentável situação acerca da moradia na cidade do Rio de Janeiro, há que se imporem providências eficazes em defesa do meio ambiente, cuja preservação, além de inúmeros benéficos efeitos, implica na qualidade de vida de todos os cidadãos, independentemente da sua condição econômica. Outrossim, há que se exigirem do ente competente as medidas para amenizar o déficit notório em matéria habitacional. A dignidade da pessoa humana, princípio maior que deve nortear a Administração Pública na execução de seus projetos e no cumprimento de suas obrigações, também exige a incolumidade do meio ambiente.” Para quem quiser, o inteiro teor da decisão está na página do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na internet. O número do processo é 2006.001.139217-4.

Palmas para a juíza, que foi capaz de ver que dignidade da pessoa humana não se confunde com fazer o que bem se entende, morando onde quer que dê vontade, sem pagar IPTU e em áreas de risco. A lei existe para todos, com inegáveis benefícios de longo prazo para toda a coletividade quando cumprida.

Essa decisão não foi, contudo, a primeira desse tipo. Para ser preciso, foi a segunda. Em agosto, o MP ajuizou uma ação quase idêntica a essa, pedindo à prefeitura que tomasse providências com relação à ocupação irregular do Morro da Babilônia, no Leme (processo nº 2006.001.096043-0, que tramita na 6ª Vara de Fazenda Pública). Naquela ação, também conseguiu uma decisão liminar, determinando que o município tome providências para conter a favelização e para remover as pessoas e reassentá-las e para recuperar a vegetação da área, que é uma APA. Essa liminar está em vigor desde 4 de agosto, sem que o município tenha se dado ao trabalho nem de cumpri-la, nem de recorrer dela.

Desobediência

“É um caso de improbidade administrativa continuada”, diz o Promotor de Justiça Carlos Frederico Saturnino, da 1ª Promotoria de Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. “Nós provocamos o município a tomar providências, fizemos recomendações sobre o problema e o que deveria ser feito e, em ambos os casos, o município se manteve inerte. Chegamos a fazer uma reunião com o Secretário de Meio Ambiente, que concordou com a nossa recomendação, mas que não pode fazer nada sem autorização do Prefeito, que se nega a dá-la. O Prefeito, com isso, está cometendo atos de improbidade administrativa por omitir-se a cumprir o seu papel.”

Para ser sincero, à primeira vista, o pedido de condenação do Prefeito por improbidade administrativa ambiental me pareceu difícil de colar. Mas, bem analisadas as coisas, não é. O art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa prevê que “atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições (…)”. Nesse caso, a improbidade está mais do que caracterizada pela omissão do Prefeito em cumprir o que é seu dever de ofício. Ele sabe do problema, sabe o que tem que fazer. Só não faz. Mesmo quando há decisão judicial obrigando-o a tomar providências. Por outro lado, há o grave fato de que a Prefeitura do Rio estar descumprindo, há mais de dois meses, a liminar concedida pela 6ª Vara de Fazenda Pública, no caso do Morro da Babilônia, em um ato inadmissível de desprezo e desrespeito do Judiciário pelo Executivo. Um péssimo exemplo para toda a sociedade que, convenhamos, já está cheia deles.

Nesse meio tempo, o Ministério Público tem recebido informações de que o ritmo das construções tem se acelerado nessas áreas. Parece estranho, mas não é. Se, por um lado, qualquer pessoa com um mínimo de decência se perguntaria por que diabos alguém iria querer construir em uma área que, sabidamente, tem a ocupação proibida por lei e por decisão judicial que, a qualquer momento, as autoridades podem vir a cumprir, por outro, o brasileiro, com toda a sua esperteza e falta de caráter, vê nisso uma oportunidade única de enriquecimento, mesmo que sabidamente ilícito.

A lógica é tão simples quanto desonesta: quando uma favela é posta abaixo, todo os moradores devem ser indenizados pelas suas casas, mesmo que as tenham construído na mais deslavada má-fé. É assim que as coisas funcionam, infelizmente. É por isso que, quando vaza a informação de que a prefeitura vai desocupar uma determinada área, ela sofre uma súbita explosão demográfica. São os espertalhões, que muitas vezes têm casa em outro lugar, mas que vêm atrás das indenizações, que todos nós pagamos. Como se não bastassem os problemas ambientais localizados e o risco que esse tipo de ocupação traz para os moradores, os seus danos ainda se estendem muito além do previsível. As favelas do Alto da Boa Vista, por exemplo, são responsáveis por boa parte da degradação da Lagoa da Tijuca, na Barra. Isso porque o esgoto e o lixo das favelas são lançados diretamente em rios como o Cachoeira, que deságuam diretamente na lagoa, poluindo suas águas e assoreando o seu leito, segundo um estudo realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-Rio.

Se você, leitor, estiver achando cada vez mais difícil acompanhar o raciocínio de nossos políticos e, convenhamos, de nossa população, você não está sozinho. Quando nem mesmo o Executivo obedece ao Judiciário, é porque as coisas ficaram complicadas demais.

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