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Exageradamente rápida

O Projeto de Lei 3.057/00, que trata do parcelamento do solo urbano, é a prova viva de que, quando há vontade dos parlamentares, a pauta do legislativo anda.

21 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

Muito diferente do Projeto de Lei da Mata Atlântica, que precisou de 14 anos de lenta tramitação, muitas emendas e cuidadosa lapidação para que ficasse ao gosto dos nossos parlamentares, o PL 3.057/00, cuja tramitação corre a toque de caixa, deverá ser promulgado em breve para, transformado em lei, regulamentar o parcelamento do solo urbano e a sua regularização.

Originariamente de autoria do Deputado Bispo Wanderval, esse projeto de lei continha apenas dois artigos e só incluía um parágrafo no art. 41 da Lei nº 6.766/79, tratando da regularização de loteamentos suburbanos irregulares já existentes no dia 31 de dezembro de 1999. Hoje, ele tem 158 artigos, e mete o nariz em praticamente tudo o que diz respeito aos terrenos urbanos, da compra e venda às limitações ambientais.

Amplitude exagerada

O assunto não poderia ser de maior relevância, o que justificaria, inteiramente, a tramitação prioritária. O atual clima caótico em que crescem as cidades brasileiras — e, dentro e em volta destas, as favelas — é, por si só, razão mais do que suficiente para que se promulgue, o quanto antes, uma lei destinada a coibir e regular a desordem. Mas, ao que tudo indica, o PL 3.057/00 não é o caminho a ser seguido. Segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo, ele representa não apenas um retrocesso em termos de direito do consumidor, mas uma temeridade em termos ambientais.

Veja-se, por exemplo, que alguns de seus dispositivos pretendem alterar de maneira significativa o Código Florestal Brasileiro, em especial no tocante ao licenciamento dos projetos ocupacionais e às áreas de proteção permanentes. Mesmo assim, por deliberação dos próprios parlamentares, o PL não será submetido à Comissão de Meio Ambiente da Câmara. Tal iniciativa não é apenas injustificável, é evidentemente imoral.

Segundo o Promotor de Justiça Filippe Augusto Vieira de Andrade, do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente do MPSP, o tratamento dado pelo PL às APPs viola frontalmente o princípio da prevenção, um dos princípios norteadores do direito ambiental brasileiro. “O PL 3.057/00 não contempla quaisquer aspectos técnicos quando trata dos usos que se podem dar às áreas de proteção permanente. Tais áreas são tão importantes que sua utilização nos moldes propostos pelo projeto só poderia ocorrer após amplo debate com a sociedade civil para que se pudesse embasá-los cientificamente”, diz.

Outro ponto apontado pelo promotor como de grande preocupação é a reforma promovida pelo PL nos processos de licenciamento ambiental. O PL cria um processo integrado de licenciamento urbanístico e ambiental, de competência exclusiva dos municípios, o que contraria o disposto na Constituição Federal, pela qual a competência para o licenciamento é comum aos municípios, aos estados e à União. “Uma lei ordinária — como seria o caso da lei oriunda do PL 3.057/00 — não pode dispor sobre essa matéria, modificando o sistema criado pela Constituição Federal, em seus artigos 23 e 225, sem ser inconstitucional”, afirma.

Ainda segundo o promotor, a maioria dos municípios brasileiros sequer possui condições técnicas para a realização desses licenciamentos, o que põe em risco todo o seu propósito. Além disso, temos que considerar que dentro da realidade brasileira o interesse desses municípios em atrair investimentos e obras — que são sinônimos de arrecadação — pode levar, muitas vezes, ao licenciamento de projetos em desacordo com a legislação ambiental, algo que a cooperação entre as três esferas da federação pode dificultar.

O fim das APPs

O PL ainda propõe, em seu art. 14, que, “em parcelamentos do solo para fins urbanos inseridos em áreas urbanas consolidadas de Municípios com gestão plena, as áreas de proteção permanente podem ser utilizadas como espaços livres de uso público ou de uso comum dos condôminos para implantação de infra-estrutura destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre”. Os incisos do desse mesmo artigo fazem ressalvas a essa utilização, determinando que neles a a vegetação seja preservada ou recomposta, de forma a assegurar o cumprimento integral dos objetivos ecológicos da APP e a utilização da área não gere degradação ambiental, entre outras coisas.

Mas há algo de estranho no ar. Antes de mais nada, “infra-estrutura destinada a esportes, que recompõe a vegetação”, com certeza, virará sinônimo de campo de futebol gramado. Em segundo lugar, as APPs já são regulamentadas pelo Código Florestal, o que torna essas novas disposições inteiramente desnecessárias. Além disso, um dispositivo de lei que tem que fazer diversas ressalvas a si mesmo para se tornar seguro está fadado a trazer mais problemas do que soluções.

E por falar em áreas de proteção permanente, o art. 8º do PL também tem ares de aberração quando dispõe que, ”respeitado o disposto no art. 10 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, em áreas com declividade superior a 30% (trinta por cento), incluindo encostas e topos de morro, admite-se o parcelamento do solo” em determinadas hipóteses. A estranheza fica por conta dos 30%. Isso porque o art. 10 da Lei nº 4.771/65 veda a derrubada de florestas situadas em áreas com inclinação entre 25º e 45º. Por que, então, a nova lei utilizaria o sistema percentual de inclinação, muito mais difícil de se aferir e até mesmo de se entender? Quantos graus são 30%? Como se mede isso?

Mais espantoso ainda é o parágrafo único desse memso artigo. Ele determina que “nas áreas com declividade superior a 100% (cem por cento), aplicam-se as normas que regulam as Áreas de Preservação Permanente”. Declividade acima de 100%? É comovente o desapego dos nossos legisladores, ao permitirem que, nas porções de seus terrenos em que só as lagartixas grudam, se possa cumprir a legislação ambiental.

Fica aqui a pergunta — para a qual todos já sabem a resposta: por que quando uma lei visa proteger algo de interesse nacional — mata atlântica, por exemplo — sua tramitação dura muito mais do que o razoável e a sua aprovação só é possível na base de acordos e conciliação de interesses? E por que, em contrapartida, quando a lei em questão pode servir para conferir pretensa legalidade a projetos ilegais e a flexibilizar a legislação ambiental e consumerista, sua tramitação é acelerada, atropelando-se, inclusive, etapas importantes, como a sua apreciação e aprovação na Comissão de Meio Ambiente da própria casa legislativa?Você acertou.

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