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Trilhas para Carangueijos

Estradas construídas por militares luso-brasileiros guardam muito da história do país. Mas é preciso ser rápido para conhece-las: elas não são tombadas e falta manutenção.

6 de setembro de 2007 · 17 anos atrás

Esses dias Ana Leonor e eu tivemos o privilégio de jantar em companhia de Nireu Cavalcanti. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. O alagoano Nireu é um dos maiores especialistas em história do Rio de Janeiro. Pesquisador dedicado e atento aos detalhes, já escarafunchou o Arquivo e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Arquivo Ultramarino e a Biblioteca da Ajuda em Lisboa e um punhado de outras instituições onde há acervos importantes para a compreensão do Rio de Janeiro de antanho. Em suas leituras encontrou diversos documentos inéditos que o ajudaram a escrever belas publicações, como o espetacular “O Rio de Janeiro Setecentista – A Vida e a Construção da Cidade da Invasão Francesa até a Chegada da Corte” e o delicioso “Crônicas Históricas do Rio Colonial”. Como não podia deixar de ser, as horas que Ana Leonor e eu passamos em casa de Nireu e sua família foram prazerosas e instrutivas. Cada três frases que o Professor encadeia são uma pequena aula da história da Cidade Maravilhosa. Passar uma noite em sua companhia é quase ler um livro sobre o Rio d´outrora.

Ao fim do repasto, saímos de lá sobraçando uma pilha de livros presenteados pelo Professor. Entre eles o clássico “O Rio no Tempo do Onça”, de Alexandre Passos e o “Arquitetos & Engenheiros” publicado pela editora do CREA e escrito pelo próprio Nireu. Este último é um apanhado da história da formação dos engenheiros e arquitetos militares em Portugal e no Brasil colonial até 1798. É o resultado de meticulosa pesquisa do Professor e conta como era a formação e o emprego dos oficiais engenheiros do Exército português. Mostra que esses profissionais eram muito bem preparados e estavam entre a elite do funcionalismo público. Durante os seis anos em que estudavam, os cadetes aprendiam técnicas de artilharia, construção de fortificações e matemática. Os estatutos da Real Academia da Artilharia e Fortificação e Desenho da Cidade do Rio de Janeiro, criada em 1792, previa que também fossem instruídos em matérias de arquitetura civil, como corte das pedras e madeiras, o orçamento dos edifícios e “os melhores métodos que hoje se praticam na construção dos caminhos e calçadas… bem como a arquitetura das pontes e canais”.

Das pranchetas desses oficiais formados na Colônia ou na Metrópole saíram vários prédios importantes da história do Brasil, que hoje são tombados pelo Patrimônio Histórico. Luís da Cunha e Menezes, o infame fanfarrão Menésio das Cartas Chilenas de Tomás Antonio Gonzaga, foi um desses militares arquitetos e, ao que tudo indica, dos bons. Quando governou Goiás de 1778 a 1783, projetou e executou importantes obras que resistem de pé até hoje. Em Goiás Velho, então capital da província, criou a arborização urbana, fez o alinhamento de ruas e projetou o primeiro plano de ordenamento urbano do Brasil. Quando foi Governador de Minas Gerais, projetou a Casa de Câmara de Ouro Preto, que chegou mesmo a receber elogios do inconfidente e seu desafeto Cláudio Manuel da Costa.

Mas não eram só urbanistas e arquitetos que se formavam nas academias militares. Muitos oficiais especializaram-se na construção de estradas. Em 1822, período já posterior ao tratado no livro de Nireu Cavalcanti, a Estrada do Comércio, ligando Iguaçu ao Rio Preto, foi projetada e aberta por oficiais militares. Em 1837 foram feitos estudos para a sua pavimentação com paralelepípedos, obra que ficou a cargo do coronel de engenheiros, Conrado Jacob de Niemeyer.

Como ela, centenas de outras estradas foram abertas, pavimentadas e mantidas por unidades militares sob a supervisão de oficiais engenheiros. Chamavam-se então estrada ou caminho, mas hoje daríamos a elas o nome de trilha. Algumas estão bem descritas pelos viajantes europeus do século XIX. Burmeister, Rugendas, Debret, Saint Hilaire e muitos outros foram profusos nesse tema. A Estrada Real, ligando o Rio a Minas Gerais, o Caminho do Ouro em Paraty, a Trilha Cesárea entre São José do Barreiro e Mambucaba, as diversas estradas da Serra do Mar paranaense e as trilhas do Quitite, Sertão e Vale do Rio Cabeça, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, ainda mantém intactos longos trechos originais.

Essas trilhas eram em geral muito bem projetadas, galgando as serras em curvas de nível, tendo calçamento nos trechos mais íngremes, boa drenagem, pontes nas travessias mais complicadas e manutenção esporádica. As de maior uso sofriam enorme desgaste pelo trânsito intenso de animais de carga que destruíam o calçamento. Oswald Brierly que percorreu o Caminho Novo entre o Rio e Petrópolis em 1842 registrou “Em alguns lugares, estradas recém formadas haviam sido lavadas por chuvas pesadas, deixando grandes lacunas de solo argiloso avermelhado. Em outros trechos, tivemos que saltar sobre raquíticas pontes de madeira que ameaçavam desmoronar -pitorescos matacões de granito foram arredondados e embranquecidos pela força da corrente dos rios”.

A maioria delas, entretanto eram sólidas e bem traçadas. Foram vítimas de seu bom projeto. Quando o Brasil se desenvolveu, novas estradas de rodagem foram construídas, na maior parte das vezes aproveitando e sobrepondo-se ao leito e trajeto das antigas trilhas edificadas pelos militares. Na Estrada Real, sobrou pouco. Entre Milho Verde e São Gonçalo do Amarante ainda há algo e no trecho entre Ouro Branco e Ouro Preto continuam de pé algumas pontes do caminho antigo. Em outros lugares, onde as trilhas luso-brasileiras perderam o significado econômico que as justificavam, contudo, ainda é possível ver – e caminhar – sobre extensos trechos dessa história viva do passado brasileiro. Esses são os casos do Quitite, do Sertão, do Vale do Rio Cabeça e da estrada Cesárea.

Mas quem quiser conhecer essas obras de arte (que aliás, em sua maioria, não estão tombadas), deve ir rápido. Grandes porções de pés de moleque da estrada Cesárea foram arrancados para fazer as fundações das casas de invasores do Parque Nacional da Bocaina que é cortado por ela. Falta de manutenção, raízes de figueiras e chuvas torrenciais que não são mais escoadas por drenos, há muito entupidos, estão destruindo o Quitite, o Sertão e o Vale do Rio Cabeça. É pena, perde-se um pedaço importante da história desse país. Perde-se também um exemplo óbvio e evidente do que é manejar trilhas. Enquanto foram projetadas por gente capacitada e tiveram sua manutenção periódica, essas trilhas- inclusive o Caminho Novo descrito por Brierly- resistiram ao trânsito que alguns viajantes chegaram a calcular em 120 mulas por hora. O traçado em curva de nível, os canais de drenagem e o calçamento nos locais mais complicados praticamente eliminavam a erosão. Hoje, em vez de aplicarem “modernos” e estapafúrdios métodos matemáticos de capacidade carga, os escrevinhadores de planos de manejo deveriam levantar de suas escrivaninhas e percorrer essas trilhas. Especialmente em dias de chuva, quando é possível ver o escoamento das águas, aprenderiam o que é uma trilha de verdade e o que é manejo. Há 150 anos os militares luso-brasileiros já sabiam fazer na prática o que hoje nos esforçamos pateticamente para disciplinar com “estudos de capacidade de suporte”. Nem sempre progresso significa andar para frente.

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