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Um elefante incomoda muita gente, as pessoas o incomodam muito mais

Mais do que a visão das cataratas de Vitória, parques na fronteira entre Zâmbia e Zimababwe oferecem ao visitante a oportunidade única de observar de perto a fauna selvagem.

9 de janeiro de 2007 · 17 anos atrás

As cataratas de Vitória na fronteira da Zâmbia com o Zimbabwe são a maior atração turística daquele canto do continente africano. Com efeito, seu desnível de 108 metros de altura e sua largura de 1,7 quilômetros são impressionantes. Na época das cheias, o volume d´água pode chegar a 9 milhões de litros por segundo. Quando isso acontece, há tanta evaporação que não é possível ver a cachoeira, que fica coberta de uma névoa espessa, se elevando a centenas de metros acima do chão. Esse efeito impressionante lhe valeu o nome de Musy-o-Tunya (fumaça que troveja), como é conhecida entre os habitantes da área.

Em torno das cataratas, como era de se esperar, formou-se uma robusta indústria de turismo. Hoje a conurbação formada pelas cidades gêmeas de Victoria Falls, no Zimbabwe, e Livingstone, na Zâmbia, é considerada como a capital do esporte de aventura da África meridional. Além das cataratas propriamente ditas, o rio Zambeze, fronteira natural entre os dois países, proporciona uma série de outras atrações. Há o “rafting”, que os operadores locais afirmam ser o mais radical do mundo entre os comercialmente operados. Talvez seja um exagero, ainda assim é verdade que o turista enfrenta quase duas dezenas de corredeiras intimidantes em uma viagem recheada de adrenalina. Há também o “bungee jumping” na garganta estreita e altíssima, formada pelo leito do Zambeze logo após as cataratas. Trata-se de pulo não recomendável para cardíacos. Pode-se ainda saltar de pára-quedas, voar de ultra leve e escalar ou rapelar os penhascos do Zambeze.

Melhor que tudo isso, contudo, é a oportunidade única que se tem de observar a fauna silvestre. As cataratas de Vitória estão no centro de dois Parques Nacionais; Musy-O-Tunya na banda zambiana e Zambesi no lado do Zimbabwe. Este último protege quarenta quilômetros das margens do rio que lhe dá o nome e abriga grande diversidade de mamíferos, como leões, antílopes, girafas, zebras e elefantes.

Em termos de adrenalina, uma visita ao Zambesi não perde para seus concorrentes mais radicais. O Parque é um dos únicos em toda a África em que é possível caminhar em meio à bicharada.

Há que chegar cedo pois o passeio, sempre em pequenos grupos, começa ao raiar do sol. Quando aí estive, éramos apenas três. Acompanharam-me a fotógrafa Ana Leonor e o guia Zimbabweano Tendekai Madzivanzira, além de um AK 47 azeitado e pronto para disparar. Segundo o guia, a arma é estritamente necessária: “se tivermos uma situação de perigo, não há tempo para carregar o fuzil. Nesse caso, se não estivermos prontos, podemos perder a vida”. Tendekai não se refere apenas a leões e leopardos. Ao contrário da crença comum, a vasta maioria das mortes causadas por animais selvagens na África não está relacionada aos grandes felinos. Elefantes, búfalos e hipopótamos são, hoje, os animais mais perigosos para o homem.

A caminhada começa devagar. Tendekai explica “estamos em uma caçada. Somos caçadores de imagens, mas caçadores assim mesmo. Em uma caçada, o contato visual com os animais é a última coisa que acontece. Primeiro seguimos rastros, depois cheiros e ruídos. Só no final é que vamos ver o bicho que estamos perseguindo”.

É assim que procedemos. Com vinte minutos de expedição, paramos junto a uma pilha de estrume de elefante. Tendekai abaixa e esfrega entre os dedos uma pequena porção que, em seguida, cheira. “É cocô fresco. Esse elefante esteve aqui a menos de uma hora”. Mas não há rastros a seguir. Junto às fezes, circulam dezenas de galinhas d´angola na espreita de pequenos insetos e vermes. “Eu as odeio. Com seu ciscar apagam todos os rastros. Dificultam meu trabalho”.

Olhando de novo para o estrume, Tendekai descobre sementes do fruto de uma árvore típica da região. Sabe onde há grande quantidade dessas árvores e avalia que o elefante veio de lá, logo caminhamos na direção oposta. Em breve, encontramos as marcas de suas patorras no chão. Pela posição das patas traseiras em relação às dianteiras, Tendekai sabe que o animal está andando devagar. Pelo tamanho de suas pegadas, afirma que é um macho. Passamos a seguir os rastros.

Cerca de uma hora mais tarde, deparamos com marcas dos cascos de muitas gazelas. Pelo padrão de suas passadas no terreno argiloso, aprendemos que estavam pastando calmamente até que algo as fêz disparar em corrida, dispersando-se em várias direções. Tendekai é paciente, quer saber o que aconteceu. Terá sido um leão, um guepardo, hienas? Olha, procura, investiga e descobre rastros de cachorros. Seu sorriso desvanece, o rosto enruga-se em preocupação zangada. Abandonamos momentaneamente a perseguição ao elefante para revirar as moitas da mata ao nosso redor. Não é preciso procurar muito. Logo achamos meia dúzia de armadilhas. Três delas intactas, três com gazelas mortas. Tendekai acredita que os caçadores abateram mais animais do que poderiam carregar, mas vão voltar para recuperar os outros. Do bolso do colete, saca seu telefone celular e avisa à administração do Parque. Dá as coordenadas do local: “é importante que uma patrulha venha logo e monte uma tocaia – precisamos punir os culpados por essa carnificina”.

Apesar dos esforços continuados da maioria dos governos africanos, a caça ainda é um problema no continente. Entre 1980 e 1995, Zâmbia perdeu 90% da sua população de elefantes para caçadores. Em 1999, para citar apenas um ano com estatísticas confiáveis, 84 elefantes foram abatidos ilegalmente no Zimbabwe. Desde então, o banimento completo do comércio mundial de marfim e a criação de unidades policiais especializadas no combate à caça e ao tráfico de animais selvagens reduziu significativamente o problema e as populações de elefantes estão paulatinamente se recuperando.

O problema agora é de outra ordem. Anos de declícino econômico, hiperinflação e um programa de reforma agrária que resultou na desestruturação da produção provocaram desemprego em massa e fome no Zimbabwe. Nesse contexto, os parques nacionais e outras unidades de conservação, que juntos cobrem 13% da superfície do país, converteram-se em atrativo natural para a população pauperizada e esfaimada. A caça hoje é de subsistência. As gazelas que vimos não serão vendidas no mercado internacional, vão para a panela.

Retomamos nosso rumo. Tendekai nos aponta uma árvore derrubada pelo elefante que perseguimos. Mais adiante, passamos por um pequeno poço de água lamacenta, onde o mastodonte bebeu água. Então, de repente, ouvimos um ruído de folhas que parecem farfalhar ao sabor do vento. Tendekai estanca. A duzentos metros podemos visualizar uma árvore solitária em meio às moitas da savana. Sua copa está baloiçando vigorosamente. “É o nosso elefante”.

Ainda não conseguimos vizualizá-lo, escondido que está pela vegetação. Tendekai apanha um punhado de grãos de areia e joga-os no ar. Avalia que o vento está soprando em direção ao alvo, levando nosso cheiro direto às narinas do elefante. Por isso, iniciamos uma elaborada manobra de aproximação, fazendo um grande círculo que nos deixa na posição oposta à que estávamos: os mesmo duzentos metros de distância do elefante, mas agora contra o vento.

Os movimentos seguintes fazem o turista sentir-se como um leão na espreita de sua vítima. Temos a vantagem do vento que nos proteje contra o faro do mastodonte. Sua visão, por outro lado, é pouco aguçada e não distingue cores. Só nos resta minimizar o barulho da aproximação. Avançamos disfarçadamente, buscando esconderijo em uma sucessão de moitas. Agachamos aqui, rastejamos ali, escamoteamo-nos atrás de um arbusto acolá. Os movimentos são lentos e calculados. Vez por outra, contudo, pisamos em um galho seco ou deslocamos uma pedra. Nessas horas, nosso amigo pára de colher as tenras folhinhas da copa de uma árvore, perscruta em nossa direção e empina as orelhas em concha. É todo ouvidos. Congelamos como se fossemos estátuas até que ele novamente relaxa e retoma seu pequeno lanche.

Finalmente, após quase quarenta minutos dessa paciente aproximação, chegamos a um morrote, de onde podemos admirar tranqüilos e incógnitos as atividades do mastodonte. Trata-se de um velho macho desgarrado. É de uma enormidade que nos faz sentir liliputianos. Come despreocupado. De quando em quando, interrompe a refeição e esfrega seu corpanzil contra o tronco da árvore coçando-se. Para o espectador, o mundo pára. Tudo se limita ao elefante, à árvore e ao sol que principia a galgar o firmamento, colorindo a savana de um laranja avermelhado.

Ficamos ali quase uma hora, até o elefante encher o panduro e partir em direção oposta à nossa. Estamos saciados; o sol já vai alto e o calor começa a incomodar. No caminho de volta ainda cruzamos alguns facocheros (espécie cuja aparência é semelhante ao javali) e revoadas de pássaros mil. No ponto onde encontráramos as armadilhas deparamos com a patrulha anti-caça armando uma tocaia. Vieram dispostos a bivacar se necessário. O dia foi do caçador mas a noite promete ser da caça.

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