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Banheira, tô fora!

A ausência de políticas e planejamentos ambientais no Brasil tem sobrevalorizado e sobrecarregado instrumentos de controle como o licenciamento ambiental e o Ibama.

24 de maio de 2007 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Temos gasto muita tinta discutindo licenciamento ambiental e quase nenhuma discutindo política ambiental, o mesmo poderia ser dito para bytes. Isto faz com que percamos o ponto central das questões que merecem debate em profundidade. Licenciamento ambiental é um mero instrumento da política ambiental e serve para a sua adequada implantação (Art. 9º – São Instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:….. IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras). Assim, discutir-se licenciamento como prioridade é abandonar o principal e se restringir ao secundário. Dado o fato de não termos políticas ambientais, sobrevaloriza-se a discussão referente ao instrumento. Os reflexos da não-política ambiental acarretam uma transferência para o órgão de controle ambiental das tarefas que são eminentemente políticas: a definição de políticas ambientais e, à luz destas, critérios de licenciamento ambiental aptos a implementar a política definida pelo governo. É importante ressaltar que critérios de licenciamento ambiental não significam o abandono do princípio da legalidade que deve nortear a administração pública. Cuida-se, unicamente, de definir os espaços de discricionariedade administrativa que permitirão à administração manifestar o seu juízo de conveniência e oportunidade para a adoção deste ou daquele tipo de empreendimento. Recentemente, com o famoso episódio do “apagão”, o Conama definiu normas mais flexíveis para o licenciamento de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e térmicas, tendo em vista o risco de desabastecimento de energia. Boa ou ruim, não me cabe julgar, houve a definição de uma política e o instrumento (rectius: licenciamento) foi moldado de forma a assegurar a vigência da escolha governamental. Não houve, no episódio, qualquer violação ao princípio da legalidade administrativa, mas um preenchimento dos espaços de discricionariedade deixados pelo legislador ao administrador.

Raciocínio similar àquele feito acima pode ser utilizado para a “questão” da divisão do Ibama. O Ibama não é um fim em si mesmo, assim como não é um fim em si mesmo o governo. A existência de tais estruturas só se justifica para atender ao interesse público primário, que não se confunde com o interesse do estado, sendo antes um conjunto de interesses socialmente relevantes que podem, ou não, ter representação no aparelho do estado. Quanto mais legítimo for este, maior a parcela do interesse público primário por ele representada. A doutrina do direito administrativo, especialmente a francesa, construiu a teoria da desconcentração administrativa com a criação de ministérios que mantém a personalidade jurídica do estado. Evoluindo a necessidade de melhor gestão, passou-se à descentralização administrativa com a criação de autarquias que, dotadas de personalidade jurídica própria, praticam as chamadas funções “típicas” do estado. Por óbvio, o conceito de funções típicas do estado é subordinado à concepção de estado vigente em determinado tempo e espaço.

Tenho me manifestado que a falta de uma política ambiental clara para a área de energia tem gerado uma externalidade ambiental significativa que é a ampliação de térmicas em nossa matriz energética, com a potencialização de problemas de qualidade de ar, por exemplo. Aliás, há que se constatar que o licenciamento de térmicas é muito mais simples dentro das regras atuais. Permito-me chamar a atenção para um interessante paradoxo. A Usina Angra II vem operando de forma integrada ao sistema elétrico nacional, muito embora não esteja “licenciada” ambientalmente. Isto faz com que a usina, dentro do sistema, não obtenha remuneração nos mesmos moldes de Angra I, o que acarreta prejuízo para a Eletronuclear e, evidentemente, para o contribuinte. A licença ambiental no caso encontra vários óbices, inclusive o da realização de uma análise de risco que considere o “pior cenário possível”, sendo certo que a possibilidade de risco é da ordem de 10-14.

Uma das grandes dificuldades do licenciamento ambiental está nas chamadas análises de risco. Não com pouca freqüência, os conceitos aristotélicos de potência e ato são confundidos e o que é mera potência (possibilidade) vira ato (realidade). Inexistindo uma política, não se sabe quais são os riscos socialmente aceitáveis. E mais: ao se analisarem os riscos não se analisam os riscos de não empreender o projeto. E cabe ainda uma modesta pergunta: a quem cabe definir os riscos socialmente aceitáveis? A equipe encarregada de elaborar o parecer técnico do licenciamento? Na verdade, na maioria das vezes não há um risco maior do que outros que, sequer, são considerados. O risco de se morrer afogado ao se tomar banho em uma banheira é, por exemplo, inúmeras vezes maior do que o risco de acidente nuclear. Segundo o Harvard Center for Risk Analisys[1], um tenor de banheiro tem o risco de 1 para 840.000 chances de morrer afogado. Muito maior do que o “risco nuclear”. Por outro lado, ser atingido por um raio implica um risco de 1 para 3 milhões, segundo a mesma fonte. Levando a questão ao paroxismo, poderíamos proibir as banheiras.

O governo Lula II é legitimado politicamente para adotar medidas administrativas que julgue mais eficientes para a execução de suas atribuições constitucionais. Aos servidores públicos cabe cumprir as medidas governamentais, desde que legais. No caso, a divisão do Ibama é legal. Não é atribuição do servidor discutir e não implementar a política de governo, sob pena do governo não poder governar. Na verdade a greve do Ibama atende a interesses corporativos de manutenção de parcela de poder político das organizações de servidores e nada tem a ver com o interesse público primário que deve ser defendido pelo estado e seus funcionários.

A inexistência de uma política ambiental clara e definida, com a inexistência de um serviço público profissional, faz com que os níveis decisórios da “política”, gradativamente, se tornem mais microscópicos e terminem na equipe encarregada da redação do parecer técnico sobre o empreendimento licenciando. Fica, portanto, nas costas dos técnicos da inferior instância a decisão sobre empreendimentos com repercussão regional e nacional o que, francamente, é uma covardia. Contra os servidores, o meio ambiente, os empreendedores e a sociedade. A falta de uma profissionalização efetiva faz com que, não raras vezes, tome-se a nuvem por Juno. Falou-se no bagrão, bagrinhos ou bagres. Pouco importa. A questão da proteção dos animais está bem definida em nosso ordenamento jurídico com as listas de animais em perigo ou ameaçados de extinção[2]. Uma vez que o meu conhecimento de Biologia é nulo, não posso afirmar se os animais mencionados estão ou não contemplados na relação oficial. Contudo, de leitura que fiz nas listas não consegui identificar os nossos peixes. Fato objetivo e real é que se os peixes não estiverem na lista, do ponto de vista jurídico, a restrição não se justifica. Não se está pregando a extinção de espécies ou o fim do bagrão, a quem não conheço e não desejo mal. “Honni soit qui mal y pense”. Neste particular, igualmente, caberia uma pergunta: qual a nossa política para a proteção de espécies?

A resolução Conama 001/86 que disciplina o licenciamento ambiental com Estudos de Impacto Ambiental, estabeleceu um grau de abrangência para os Estudos de Impacto no qual, certamente, a discussão sobre o Tratado de Tordesilhas ou o número de presos em Porto Velho são bastante razoáveis, afinal, o “holismo” é a tônica. Na verdade, busca-se fazer com que os EIAs substituam as funções de planejamento ambiental. Assim, intervenções pontuais ou mesmo estruturantes passam por análises absolutamente despropositadas que se reproduzem em todo e qualquer empreendimento que se busque implantar em uma mesma região ou bacia hidrográfica, como determina a Resolução 001/86. O razoável seria que os EIAs fossem formando um banco de dados que pudesse ser consultado a cada novo empreendimento e, portanto, as exigências fossem ficando cada vez menores e restritas ao essencial, atualizando-se as informações. Contudo, não é assim que ocorre.

[1] http://www.hcra.harvard.edu/quiz.html
[2] http://www.mma.gov.br/port/sbf/fauna/index.cfm

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