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Interesse nacional e licenciamento ambiental

O licenciamento ambiental se tornou um processo longo e incerto onde cada vez se abrem mais brechas para emperrá-lo. As mudanças no Artigo 23 da Constituição são urgentes.

19 de abril de 2007 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Na semana passada circulou uma informação no sentido de que a Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL estaria desenvolvendo um ante-projeto de lei para que os empreendimentos considerados de interesse nacional sejam dispensados do licenciamento ambiental. O tema merece atenção, pois revela de forma candente um problema que efetivamente é gravíssimo. Ou seja, qual o papel do licenciamento ambiental na vida brasileira, no desenvolvimento do país e como assegurar um melhor desempenho ambiental, econômico e tecnológico para um País que necessita urgentemente ampliar as suas marcas econômicas? Temo, contudo, que a dose do remédio mate o doente.

Um ponto fundamental em toda a questão do licenciamento ambiental é que ele é um procedimento administrativo que, como qualquer ato administrativo é passível de ampla revisão judicial (CF, artigo 5º, XXXV). Desta forma, mesmo uma obra de infra-estrutura que venha a ser realizada sem a respectiva licença ambiental, estará submetida a amplo controle de legalidade. Dado o fato de que existe uma ampla legislação ambiental no País – para os ufanistas é a “mais avançada do mundo” – e que tal legislação não poderá ser descumprida, a ampla sindicância judicial não será afastada. Na verdade, talvez a situação fique mais complicada, haja vista que sem o controle de um órgão administrativo, estaremos no campo do auto-licenciamento e tudo ficará ainda mais instável do que já é. Além do mais, somente com uma Emenda Constitucional que alterasse substancialmente o artigo 225 de nossa Constituição seria viável que projetos de grande porte fossem isentados do licenciamento ambiental.

Na verdade, um dos pontos básicos e geradores das dificuldades do licenciamento ambiental é que ele antes de jurídico é muito técnico, o que faz com que o controle de legalidade se torne mais e mais complexo. A definição da margem de discricionariedade da Administração é extremamente difícil e, como sabemos todos, as opções a serem tomadas pelo administrador são múltiplas. Assim, uma opção técnica que precisa se justificar politicamente e ainda necessita ter um contorno legal é uma das possibilidades a serem admitidas pelo Administrador. Não é a única. Este elemento de discricionariedade administrativa tem sido cada vez mais questionado. Se pegarmos o caso da transposição do Rio São Francisco, por exemplo, veremos que os questionamentos são fundamentalmente baseados no grau de discricionariedade administrativa que se admite o Administrador ter. Em meu ponto de vista, trata-se de uma questão a ser resolvida na arena política, não na judicial. Contudo, é na judicial que o assunto tem se desenvolvido. O mesmo se diga de tantos outros casos ditos rumorosos.

A “crise do licenciamento” ambiental é uma crise de credibilidade das agências de controle ambiental, cumulada com uma crise geral de credibilidade da instituição pública no Brasil e que encontra um elemento catalisador no Ministério Público e no Poder Judiciário, tendo em vista as suas atribuições constitucionais e, não poucas vezes, uma concepção “espetacular” desses mesmos cometimentos. A velha teoria dos atos administrativos nos ensina que eles têm uma presunção de legalidade e, portanto, cabe a quem deles discordar a incumbência de produzir a prova de que eles não foram produzidos em consonância com o comando legal. Tal teoria é uma das bases do Estado Democrático de Direito, pois sem ela o cidadão não teria qualquer garantia de que o “papel” recebido do Estado é “pra valer”. E mais: ela assegura que os “Poderes” do Estado guardem a conveniente distância uns dos outros. Hoje, há uma tendência muito forte a buscar encontrar “falhas” e “ilegalidades” em todo e qualquer documento público, sobretudo nas licenças ambientais. Tal situação se torna mais dramática com o excessivo manejo de ações de improbidade administrativas contra servidores públicos, em geral modestos e sem recursos econômicos para a contratação de advogados, peritos e outros profissionais, o que leva à paralisia dos órgãos ambientais em todos os níveis federativos, ante o verdadeiro pânico que assola os servidores. A coisa mais difícil é que alguém assine um parecer ou uma licença ambiental. Tem sido bastante usual que todos os servidores que trabalhem na concessão de uma licença ambiental sejam processados sob o argumento de formação de quadrilha. Assim, nem os pareceres são elaborados e nem as licenças são expedidas. Mesmo os casos mais singelos ficam emperrados pelo medo dos servidores em serem acionados pela competente ação de improbidade administrativa ou mesmo procedimentos criminais. É importante considerar que os servidores dos órgãos ambientais foram brindados com um crime próprio pela Lei nº 9.605 (Lei de crimes ambientais).

O setor elétrico sente os reflexos deste padrão no âmbito federal, contudo a situação também é estadual e municipal. E, a bem da verdade, deve ser dito que o órgão ambiental federal tem tido mais instrumentos para resistir ao avassalador avanço de uma excessiva judicialização de questões técnicas complexas que, não raras vezes, são decididas em medidas cautelares ditas de conhecimento sumário ou perfunctório.

Hoje é bastante comum vermos petições judiciais e, até mesmo, despachos judiciais que se baseiam em discussão técnica, normalmente unilateral e que, com base em conhecimento inteiramente estranho ao profissional do Direito, implicam na paralisação de investimentos, obras e projetos. Há, no particular, uma relevante parcela de culpa dos próprios investidores que ainda não perceberam que as questões ambientais e o seu equacionamento adequado à luz da legalidade vigente são fundamentais para a garantia de qualquer empreendimento. A decisão administrativa, além de “ser” legal, precisa “parecer” legal. Se alguma coisa há de positivo em todo o processo de judicialização é o fato de que o chamado “jeitinho” acabou e está morto e enterrado. Ou se fazem os procedimentos administrativos com muita segurança técnica e legal, ou a licença expedida passa a ter o valor de uma folha de papel. Esta é uma lição que muitos setores ainda têm resistido a entender. E, a incompreensão tem custado um preço caro. Ás vezes intoleravelmente caro. Se juntarmos licenciamentos pouco consistentes com o voluntarismo de jovens integrantes do Ministério Público, da Magistratura e da polícia, o resultado são liminares, cautelares, interdições e prisões em flagrante paralisando atividades e bloqueando empreendimentos, com reflexos muito negativos para o País.

Penso que já ultrapassamos a fase na qual o licenciamento ambiental podia ser regido apenas por Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente: um “jeitinho” dado pelos governos que não queriam mandar projetos de lei para o Congresso e pelos ambientalistas que entendiam ser o Congresso pouco “ecológico”. Hoje, sendo a bancada ecológica do Congresso Nacional a maior, provavelmente a situação seja mais favorável do que anteriormente. A chamada “bancada ambientalista” certamente prestará um excelente serviço à Nação caso se empenhe na produção das leis que se fazem necessárias para que o nosso quadro institucional deixe de ser tão caótico como é hoje em dia. Um esforço para a aprovação do PLC referente ao artigo 23 seria espetacular.

Existe uma necessidade imperiosa de que a Lei (formal) disponha sobre o licenciamento ambiental de forma clara, fixando prazos, procedimentos, mecanismos de participação pública, sistema recursal e outras medidas que possam dar mais segurança e garantia tanto aos empreendedores quanto à sociedade. Não seria mal que o PLC que trata da regulamentação do artigo 23 da Constituição fosse avaliado prioritariamente, pois nele se encontra boa parte das respostas que procuramos, desde tantos anos. Sem a definição de competências do artigo 23 pouco adiantará acabar-se com o licenciamento ambiental para obras de interesse nacional.

A experiência de mais de 30 anos de licenciamento ambiental (1975/RJ) nos mostra que talvez fosse interessante adotar o modelo Holandês, no qual existe uma agência encarregada de analisar os Estudos de Impacto Ambiental e sobre eles emitir parecer. Tal agência não seria a responsável pelo licenciamento ambiental, mas apenas pela análise do EIA, assim tal órgão seria muito mais independente e não estaria sujeito às pressões típicas do licenciamento ambiental. Uma vez analisado o EIA ele é remetido ao órgão de controle ambiental para que, fundamentado no parecer, emita ou não a licença. No Canadá existe algo assemelhado.

Uma outra questão que me parece relevante e que tem sido muito mal explorada é a seguinte: uma vez que o órgão de controle ambiental aceitou o requerimento de licença, há uma presunção de que a licença será concedida. Admite-se que este ou aquele licenciamento sejam mais complexos e, portanto, o licenciamento mais difícil. Não se admite que o órgão ambiental examine todo um procedimento, com gastos para todos, inclusive para o órgão ambiental e, no fim, negue a licença. Se a hipótese é de negativa de licenciamento, o órgão ambiental não deveria sequer ter aceito o processo. Com isto muitas dificuldades seriam evitadas, logo desde o início.

Uma outra questão muito relevante em todos os processo de licenciamento ambiental é que, de fato, o poder administrativo está sendo esvaziado em favor de um aumento dos poderes do Ministério Público que, na prática, se está constituindo em uma agência de revisão de licenciamentos ambientais. Grande é o número de técnicos que, a serviço do MP, discutem as opções discricionárias adotadas pelos órgãos ambientais e chegam, até mesmo, a analisar e criticar projetos de engenharia e outras intervenções técnicas, durante o desenrolar do licenciamento ambiental. Assim o controle de legalidade que, tradicionalmente, é feito após a decisão administrativa, passou a ser exercido antes da tomada da decisão. Estamos iniciando um controle do próprio mérito do ato administrativo, muitas vezes antes dele ser praticado. Ousada mudança em um setor usualmente conservador. Normalmente, as chamadas “recomendações” buscam fazer com que o órgão ambiental adote soluções técnicas que são as entendidas corretas pelo MP, embora não sejam as de escolha do administrador. Daí a proliferação dos chamados TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) “preventivos”. Tem sido usual que muitos empreendedores se dirijam ao MP para saber da opinião do Parquet sobre um determinado empreendimento antes mesmo que o órgão ambiental seja comunicado sobre a pretensão de um novo projeto. Seguramente, a idéia de uma dispensa de licenciamento ambiental para projetos de interesse nacional parte do reconhecimento de tal circunstância; contudo, não consegue elidir-lhe as conseqüências. Ao se declarar um projeto de interesse nacional para fins de dispensa do licenciamento, aciona-se o gatilho de todo o mecanismo acima exposto.

O ativismo judicial e do Ministério Público está sendo refreado por decisões de Tribunais Superiores que, em grande parte das vezes, têm prestigiado a manifestação dos órgão técnicos e suspendido a vigência de muitas medidas liminares mal concedidas ou precipitadas. A nossa tradição de ampla revisão dos atos administrativos deve ser mantida, pois apesar das dificuldades, ela tem sido uma importante ferramenta dos cidadãos contra desmandos de muitos administradores que agem com desvio de poder ou abuso de autoridade. Uma experiência que tem se revelado positiva é a da Vara Ambiental da Justiça Federal em Curitiba, cujo magistrado tem se revelado equilibrado e conhecedor do tema. Prestigiar as ações administrativas dos órgãos ambientais é fundamental para que eles possam desempenhar os seus papéis de forma mais segura e abrangente. Contudo, a indefinição legal do procedimento de licenciamento ambiental faz com que, muitas vezes, órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e tantos outros ingressem no licenciamento ambiental e acabem gerando situações de conflitos inter-administrativos por questões que, nelas próprias, nada têm a ver com a licença ambiental. Questões referentes aos sítios arqueológicos, gabaritos, vista de bens tombados e outras, nada têm a ver com o licenciamento ambiental e devem ser tratadas em local próprio, não no órgão ambiental. Mais recentemente, até mesmo o Departamento de Patrimônio da União – DPU tem sido acionado em nome de questões ambientais. Isto para não falarmos das questões sociais que irrompem nos processo de licenciamento ambiental, pelo simples fato de que não há outro canal de expressão.

Tudo isto mostra que, efetivamente, ainda precisamos avançar muito no sentido de termos um mecanismo de licenciamento ambiental que seja capaz de assegurar tranqüilidade para todas as partes interessadas, o que hoje está muito longe de ocorrer. Muito embora a proposta da ANEEL não seja do meu agrado – pelo menos o que foi noticiado -, não se pode deixar de reconhecer que ela tem uma base real. Ela se assenta em uma preocupação real e indiscutível. Licenciar ambientalmente um empreendimento de grande porte é uma aventura, os pessimistas diriam: é uma temeridade.

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