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Regras do jogo

As invasões do MST e da Via Campesina no Sul são exemplos de que quando os bons modos que regem a democracia são esquecidos, quem perde é sempre o próprio povo.

17 de março de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Uma das características do regime democrático é a manutenção das regras do jogo. É claro que a torcida pode fazer pressão sobre os jogadores, vaiar, xingar, mas não pode invadir o campo ou agredi-los. Da mesma forma, o dono da bola não pode retirá-la do jogo se a sua equipe estiver perdendo. Um elemento importante da democracia, portanto, é o procedimento, a forma pela qual os objetivos são alcançados. Em uma sociedade diferente, plural e com opiniões bastante divergentes sobre uma série de assuntos, a manutenção dos chamados “bons modos” é fundamental para que não voltemos à era dos tacapes e da lei do mais forte, e sob a qual sempre perdem os mais fracos. Eu conheci um velho militante trotskista que dizia: “os generais brigam e nós é que vamos presos”.

A regra do jogo democrático vem sendo fortemente ameaçada em nosso país e, infelizmente, os agentes antidemocráticos têm se valido de “justificativas ambientais” para legitimar os seus gestos de puro e simples banditismo. E não há qualquer protesto da área ambiental, ao contrário, existe uma indisfarçável simpatia e conivência. Refiro-me aos lamentáveis episódios ocorridos no Paraná e no Rio Grande do Sul com a invasão pelos “companheiros” do MST e da Via Campesina às instalações de empresas que atuam no chamado “agronegócio”.

Em ambos os casos foram destruídas pesquisas científicas que, seguramente, jamais serão recuperadas. Houve também uma “constatação de plantio ilegal de transgênicos” em área situada a menos de 10 quilômetros do Parque Nacional do Iguaçu. Segundo alegou o Ibama, tal plantio está proibido pelo artigo 11 Lei nº 10.814 de 15 de dezembro de 2003. Ora, será que o plantio está mesmo proibido? E caso estivesse: o melhor procedimento é o de aceitar denúncias cujo único objetivo claro e indisfarçável é o de criar um “Brasil livre de transgênicos”?

Atenção às leis

O artigo 42 da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005[1] revogou vários artigos da Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003. A saber: os artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16. A Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003 foi elaborada com o propósito específico de tratar sobre o plantio de soja geneticamente modificada para a safra de 2004: “Estabelece normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada da safra de 2004, e dá outras providências” Portanto, exaurindo os seus efeitos com a comercialização da mencionada safra, coisa que, de forma geral, já foi feita. A tal lei, composta de 17 artigos, teve sete deles diretamente revogados pela lei de Biossegurança, remanescendo, em tese, dez artigos.

Quanto aos artigos 1º até o 4º da Lei nº 10.814/2003, estes se exauriram pelo próprio decurso do tempo[2]. Temos, ainda, os artigos 12 até 15[3]. O artigo 12, evidentemente, foi revogado pelo inciso VII, do artigo 6º [4] da Lei nº 11.105/2005. Restam, portanto, os artigos 13/15. Tais artigos, assim como os demais, têm uma nítida validade temporária[5]. Resta, portanto, o artigo 11, aquele que proíbe a plantação na transgênicos no entorno de unidades de Conservação. “Art. 11. Fica vedado o plantio de sementes de soja geneticamente modificada nas áreas de unidades de conservação e respectivas zonas de amortecimento, nas terras indígenas, nas áreas de proteção de mananciais de água efetiva ou potencialmente utilizáveis para o abastecimento público e nas áreas declaradas como prioritárias para a conservação da biodiversidade. Parágrafo único. O Ministério do Meio Ambiente definirá, mediante portaria, as áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade referidas no caput.

Assim, nós teríamos uma situação bastante interessante. Uma lei destinada à vigência temporária teria sido revogada inteiramente. Contudo, um único artigo teria permanecido vigente. Exatamente aquele que serve aos interesses dos que querem romper com as regras do jogo e levar a bola para casa. Isto é, violar à ordem jurídica democrática. O artigo 11 se justifica e se limita ao contexto de uma lei destinada à vigência temporária, cumprindo o papel de presunção legal de perigo, enquanto não fossem estabelecidas as regras gerais para a adequada avaliação ambiental de riscos associados ao plantio de transgênicos. Tais regras, como se sabe, foram estabelecidas pela Lei de Biossegurança, que determina quais os órgãos públicos que têm a atribuição de efetuar as análises de risco e os estudos de impacto ambiental, conforme o caso. Uma simples leitura da lei de introdução ao código civil teria resolvido o “impasse”[6].

Admito, contudo, que o meu ponto de vista possa não ser o mais adequado. Há, entretanto, uma questão jurídica complexa que não pode ser resolvida por uma simples fiscalização ou pelo “golpe de mão” da invasão e do fato consumado.

Eucaliptos

Fato semelhante tem ocorrido em plantações de eucaliptos. Acusadas de “deserto verde”, as plantações de eucalipto são invadidas e, agora, o “mal é combatido pela raiz”. Os laboratórios são invadidos. A atenção que tem sido dada ao problema não é proporcional à sua gravidade, inclusive quanto ao seu significado para o regime democrático. Aliás, seria interessante que se examinasse qual é a realidade ambiental do Sul da Bahia, por exemplo. Lá, onde existem grandes plantações de eucaliptos, está bem claro que as matas ciliares, as relações de trabalho legalizadas, a assistência médica, e etc., só existem nas áreas nas quais os “desertos verdes” estão implantados. No resto, impera o coronelismo.

Enfim, de equívoco em equívoco, nós vamos jogando o nosso país para trás, superando o Haiti em crescimento econômico e estreitando os nossos horizontes como nação. Ainda bem que não temos pressa de crescer. Fica o alerta, todas as vezes que as regras do jogo democrático foram violadas “neste país” quem entrou pelo cano foi o próprio povo.

1. Art. 42. Revogam-se a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003.

2. Art. 1o Às sementes da safra de soja geneticamente modificada de 2003, reservadas pelos agricultores para o uso próprio, consoante os termos do art. 2º, inciso XLIII, da Lei º 10.711, de 5 de agosto de 2003, e que sejam utilizadas para plantio até 31 de dezembro de 2003, não se aplicam as disposições I – dos incisos I e II art. 8 e do caput do art. 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, relativamente às espécies geneticamente modificadas previstas no Código 20 do seu Anexo VIII; II – da Lei nº8.974, de 5 de janeiro de 1995, com as alterações da Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001; e III – do 3º § 3o do art. 1o da Lei no 10.688, de 13 de junho de 2003. Parágrafo único. É vedada a comercialização do grão de soja geneticamente modificada da safra de 2003 como semente, bem como a sua utilização como semente em propriedade situada em Estado distinto daquele em que foi produzido. Art. 2o Aplica-se à soja colhida a partir das sementes de que trata o art. 1o o disposto na Lei no 10.688, de 13 de junho de 2003, restringindo-se a sua comercialização ao período até 31 de janeiro de 2005, inclusive. § 1o O prazo de comercialização de que trata o caput poderá ser prorrogado por até sessenta dias por ato do Poder Executivo. § 2o O estoque existente após a data estabelecida no caput deverá ser destruído, com completa limpeza dos espaços de armazenagem para recebimento da safra de 2005. Art. 3o Os produtores abrangidos pelo disposto no art. 1o, ressalvado o disposto nos arts. 3º e 4o da Lei no 10.688, de 13 de junho de 2003, somente poderão promover o plantio e comercialização da safra de soja do ano de 2004 se subscreverem Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de Conduta, conforme regulamento, observadas as normas legais e regulamentares vigentes. Parágrafo único. O Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de Conduta, de uso exclusivo do agricultor e dos órgãos e entidades da administração pública federal, será firmado até o dia 9 de dezembro de 2003 e entregue nos postos ou agências da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, nas agências da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil S.A. Art. 4o O Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento poderá excluir do regime desta Lei, mediante portaria, os grãos de soja produzidos em áreas ou regiões nas quais comprovadamente não se verificou a presença de organismo geneticamente modificado. Parágrafo único. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento poderá firmar instrumento de cooperação com as unidades da Federação, para os fins do cumprimento do disposto no caput.

3. Art. 12. Ficam vedados, em todo o território nacional, a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso e dos produtos delas derivados, aplicáveis à cultura da soja. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por tecnologias genéticas de restrição do uso qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos. Art. 13. Em relação às safras anteriores a 2003, fica o produtor de soja geneticamente modificada isento de qualquer penalidade ou responsabilidade decorrente da inobservância dos dispositivos legais referidos no art. 1o desta Lei. Art. 14. Fica autorizado para a safra 2003/2004 o registro provisório de variedade de soja geneticamente modificada no Registro Nacional de Cultivares, nos termos da Lei no 10.711, de 5 de agosto de 2003, sendo vedada expressamente, sua comercialização como semente. § 1o O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o Ministério do Meio Ambiente promoverão o acompanhamento da multiplicação das sementes previstas no caput mantendo rigoroso controle da produção e dos estoques. § 2o A vedação prevista no caput permanecerá até a existência de legislação específica que regulamente a comercialização de semente de soja geneticamente modificada no País Art. 15. Fica instituída, no âmbito do Poder Executivo, Comissão de Acompanhamento, composta por representantes dos Ministérios do Meio Ambiente; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; da Ciência e Tecnologia; do Desenvolvimento Agrário; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Justiça; da Saúde; do Gabinete do Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome; da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA; do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA; coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, destinada a acompanhar e supervisionar o cumprimento do disposto nesta Lei.

4. Art. 6o Fica proibido:………..VII – a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso.

5. Art. 13. Em relação às safras anteriores a 2003, fica o produtor de soja geneticamente modificada isento de qualquer penalidade ou responsabilidade decorrente da inobservância dos dispositivos legais referidos no art. 1o desta Lei. Art. 14. Fica autorizado para a safra 2003/2004 o registro provisório de variedade de soja geneticamente modificada no Registro Nacional de Cultivares, nos termos da Lei no 10.711, de 5 de agosto de 2003, sendo vedada expressamente, sua comercialização como semente. § 1o O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o Ministério do Meio Ambiente promoverão o acompanhamento da multiplicação das sementes previstas no caput mantendo rigoroso controle da produção e dos estoques. § 2o A vedação prevista no caput permanecerá até a existência de legislação específica que regulamente a comercialização de semente de soja geneticamente modificada no País. Art. 15. Fica instituída, no âmbito do Poder Executivo, Comissão de Acompanhamento, composta por representantes dos Ministérios do Meio Ambiente; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; da Ciência e Tecnologia; do Desenvolvimento Agrário; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Justiça; da Saúde; do Gabinete do Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome; da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA; do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA; coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, destinada a acompanhar e supervisionar o cumprimento do disposto nesta Lei.

6. Art. 2º – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º – A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. § 3º – Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.

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