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Concessão florestal

A lei das concessões florestais é um atestado da incompetência do Estado em cuidar de suas terras. Ela cede o patrimônio público a interesses privados.

7 de março de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Finalmente foi editada, no Diário Oficial da União de 3 de março de 2006, a Lei nº 11.284, de 02 de março de 2006 que “dispõe sobre a gestão de florestas públicas e institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro e cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal”.

Tal lei tem sido considerada um “avanço” por grande parte dos envolvidos nas complexas questões florestais brasileiras. Mas será que o mainstream tem mesmo razão? É interessante observar que a lei tem sido entendida como uma importante ferramenta para auxiliar na solução dos conflitos fundiários na Amazônia Legal. Não deixa de ser curioso, visto que a lei cuida de florestas públicas que serão concedidas para o “uso sustentável”, seja lá o que isto signifique, e que tais “conflitos” existam sobre propriedade da União que, por indigência e conivência seculares, não consegue fazer valer os seus direitos sobre as suas próprias terras.

A lei, no fundo, é uma capitulação diante de grileiros – das mais diversas origens sociais – que fomentam “títulos” e “ocupações tradicionais” com o mesmo objetivo: a obtenção de benefícios privados sobre o patrimônio público. Conforme já escrevi em colunas anteriores, as florestas nacionais existem para a exploração econômica. A Lei do SNUC, em arroubo ambientalista, tratou-as como unidades de conservação, o que não são e nunca foram. A lei nº 11.284/06, embora mantendo a retórica, confirma que tais florestas têm a vocação da utilização econômica. A questão mais importante e, até mesmo fundamental, é saber quais as utilizações mais adequadas e quem serão os seus beneficiários. Pela Lei aprovada, em princípio, aqueles que já se beneficiavam da utilização irregular dos bens públicos.

Uma característica marcante da Lei é o chamado “apelo social”, a partir dele tudo passa a ser tolerado, senão permitido (1). Não vou entrar na técnica penal da norma, pois não é o caso. Entretanto, o legislador, ao invés de deixar ao juiz considerar o caso concreto para examinar a ocorrência do crime, simplesmente resolveu aboli-lo para os “mais necessitados”. Não se desconhece a grande quantidade de “miseráveis” que será utilizada para desmatar, protegidos pelo Hábeas corpus preventivo que a lei criou. A lei, ainda que bem intencionada, deixou a desejar.

Interesses particulares

Se analisarmos o primeiro princípio de gestão das florestas públicas (art 2º, I), veremos que a proteção do patrimônio público fecha a fila, o que não me parece adequado para uma lei que trata de “patrimônio público”, no caso florestal. Também existe uma obscura proteção de “valores culturais associados”. O que é isto? Aliás, verifica-se que em uma lei que trata do patrimônio público florestal, os interesses particularizados e locais são prioritários em relação aos nacionais, como demonstra o inciso II.

No inciso III fala-se de um “respeito ao direito da população, em especial das comunidades locais, de acesso às florestas públicas”. Na verdade, se a floresta é pública, não há qualquer direito para que o particular tenha-lhe acesso. Este se faz na medida em que a administração julgue oportuno e conveniente conceder tal acesso. Aqui não se trata de um bem de uso comum do povo, como as ruas, por exemplo. Aliás, há que se indagar da constitucionalidade da norma que concede a título não oneroso (art. 6º, § 1º) para comunidades que podem participar de licitações a título oneroso (art. 6º, § 2º). O artigo 4º define que a gestão sustentável das florestas abrange a sua destinação para as comunidades locais. Tais comunidades são as populações tradicionais e “outros grupos humanos”, organizados por gerações sucessivas, com estilo de vida relevante à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica.

Trata-se de uma retórica politicamente correta para dizer que as “comunidades locais” têm preferência na concessão de áreas para o corte de madeira. Sim, pois é de corte de madeira que a lei cuida. Uma simples leitura do artigo 16, § 1º da Lei (4) nos informa o que não pode ser objeto de concessão. Como os produtos destinados à sobrevivência das comunidades tradicionais não são objeto de concessão (5), só sobra a derrubada de mata. Ora, ninguém está imaginando que uma empresa se apresentará em certame licitatório para adquirir a concessão de turismo em uma floresta nacional. Talvez isto ocorra no dia em que o valoroso sargento Garcia prender o Zorro.

O artigo 19 (6) pretende afastar da licitação os “poluidores” e “degradadores do meio ambiente”. É mais uma boutade da lei (7), visto que os débitos para com a Fazenda não são “ambientais”. São pura e simplesmente débitos e é necessário que estejam consolidados, sendo cobrados e que não tenha havido a garantia do juízo para que possam realmente ser considerados “débitos”.

Um outro artigo que me parece interessante é o artigo 29, mediante o qual se autoriza os concessionários a oferecerem como garantia para financiamentos os próprios “direitos emergentes da concessão”. Alguma semelhança com os contratos oferecidos como garantia de empréstimos pelo nosso Marcos Valério?

Retrocesso

As razões para o aplauso quase geral estão nos artigos 41 e seguintes que tratam do Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal e as Auditorias Florestais. Aqui se abrem as portas para projetos, programas e toda uma gama de atividades que, por financiadas pelo Estado, servirão como medidas de distribuição de renda para diferentes grupos.

O grande engodo, contudo, está na criação do chamado Serviço Florestal Brasileiro, que é uma cópia do Serviço Florestal do Brasil, criado pelo Decreto 4.421 de 28 de dezembro de 1921, sendo Presidente da República Epitácio Pessoa e ministro da Agricultura Simões Lopes. A criação do Serviço Florestal Brasileiro, em termos de Direito Administrativo, é um retrocesso. Criou-se, como em 1921 (8), um órgão da Administração direta e, portanto, a montanha pariu um rato. Tanto esforço para a criação de um órgão sem qualquer autonomia administrativa ou financeira, mera repartição de um ministério cuja principal característica é a morosidade e a inoperância administrativa, demonstrada pela sua baixíssima execução orçamentária.

O artigo 67 admite que o poder executivo “poderá” assegurar ao SFB a autonomia administrativa (9), o que significa que o SFB não tem nenhuma autonomia. Na verdade, a Reforma Administrativa de 1967 (!!!!) estabelecida pelo Decreto-lei 200, ao que parece, foi esquecida pelo legislador. Podemos inferir que as pressões corporativas impediram que o órgão fosse criado de forma clara e com as atribuições que seriam decorrentes da lei. Haveria necessidade da criação de uma autarquia que ficasse responsável por todas as medidas de fiscalização e controle das concessões. Da forma que a coisa foi feita, o SFB se transformou em mero órgão burocrático e sem qualquer poder real. O poder permanece com o Ibama, que mostrou a força política de sua corporação. Perdeu-se uma excelente oportunidade para ir “dando uma arrumada” em nosso setor ambiental. Se todo o setor de parques e unidades de conservação, bem como as florestas, tivessem sido destinados ao SFB, no meu ponto de vista, teríamos, apesar dos pesares, dado um passo significativo para a melhoria da gestão de nossas unidades de conservação que estão submetidas ao mesmo organismo que cuida de pneus, poluição atmosférica, licenciamento ambiental, energia nuclear, pesca, tartarugas e muitas outras coisas.

A lei, apesar de toda a retórica, tem um único objetivo, cortar madeira na Amazônia. E para isto ela é perfeita.

(1) Art. 82. A Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 50-A e 69-A: “Art. 50-A. Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente: Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa. § 1o Não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família. § 2o Se a área explorada for superior a 1.000 ha (mil hectares), a pena será aumentada de 1 (um) ano por milhar de hectare.”

(2) Art. 2o Constituem princípios da gestão de florestas públicas: I – a proteção dos ecossistemas, do solo, da água, da biodiversidade e valores culturais associados, bem como do patrimônio público; II – o estabelecimento de atividades que promovam o uso eficiente e racional das florestas e que contribuam para o cumprimento das metas do desenvolvimento sustentável local, regional e de todo o País; III – o respeito ao direito da população, em especial das comunidades locais, de acesso às florestas públicas e aos benefícios decorrentes de seu uso e conservação; IV – a promoção do processamento local e o incentivo ao incremento da agregação de valor aos produtos e serviços da floresta, bem como à diversificação industrial, ao desenvolvimento tecnológico, à utilização e à capacitação de empreendedores locais e da mão-de-obra regional; V – o acesso livre de qualquer indivíduo às informações referentes à gestão de florestas públicas, nos termos da Lei no 10.650, de 16 de abril de 2003; VI – a promoção e difusão da pesquisa florestal, faunística e edáfica, relacionada à conservação, à recuperação e ao uso sustentável das florestas; VII – o fomento ao conhecimento e a promoção da conscientização da população sobre a importância da conservação, da recuperação e do manejo sustentável dos recursos florestais; VIII – a garantia de condições estáveis e seguras que estimulem investimentos de longo prazo no manejo, na conservação e na recuperação das florestas. § 1o Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender às peculiaridades das diversas modalidades de gestão de florestas públicas. § 2o Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na esfera de sua competência e em relação às florestas públicas sob sua jurisdição, poderão elaborar normas supletivas e complementares e estabelecer padrões relacionados à gestão florestal.

(3) Art. 6o Antes da realização das concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes, por meio de: I – criação de reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, observados os requisitos previstos da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000; II – concessão de uso, por meio de projetos de assentamento florestal, de desenvolvimento sustentável, agroextrativistas ou outros similares, nos termos do art. 189 da Constituição Federal e das diretrizes do Programa Nacional de Reforma Agrária; III – outras formas previstas em lei. § 1o A destinação de que trata o caput deste artigo será feita de forma não onerosa para o beneficiário e efetuada em ato administrativo próprio, conforme previsto em legislação específica. § 2o Sem prejuízo das formas de destinação previstas no caput deste artigo, as comunidades locais poderão participar das licitações previstas no Capítulo IV deste Título, por meio de associações comunitárias, cooperativas ou outras pessoas jurídicas admitidas em lei. § 3o O Poder Público poderá, com base em condicionantes socioambientais definidas em regulamento, regularizar posses de comunidades locais sobre as áreas por elas tradicionalmente ocupadas ou utilizadas, que sejam imprescindíveis à conservação dos recursos ambientais essenciais para sua reprodução física e cultural, por meio de concessão de direito real de uso ou outra forma admitida em lei, dispensada licitação.

(4) Art. 16. A concessão florestal confere ao concessionário somente os direitos expressamente previstos no contrato de concessão. § 1o É vedada a outorga de qualquer dos seguintes direitos no âmbito da concessão florestal: I – titularidade imobiliária ou preferência em sua aquisição; II – acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções; III – uso dos recursos hídricos acima do especificado como insignificante, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997; IV – exploração dos recursos minerais V – exploração de recursos pesqueiros ou da fauna silvestre; VI – comercialização de créditos decorrentes da emissão evitada de carbono em florestas naturais. § 2o No caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão, nos termos de regulamento. § 3o O manejo da fauna silvestre pelas comunidades locais observará a legislação específica.

(5) Art. 17. Os produtos de uso tradicional e de subsistência para as comunidades locais serão excluídos do objeto da concessão e explicitados no edital, juntamente com a definição das restrições e da responsabilidade pelo manejo das espécies das quais derivam esses produtos, bem como por eventuais prejuízos ao meio ambiente e ao poder concedente.

(6) Art. 19. Além de outros requisitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, exige-se para habilitação nas licitações de concessão florestal a comprovação de ausência de: I – débitos inscritos na dívida ativa relativos a infração ambiental nos órgãos competentes integrantes do Sisnama; II – decisões condenatórias, com trânsito em julgado, em ações penais relativas a crime contra o meio ambiente ou a ordem tributária ou a crime previdenciário, observada a reabilitação de que trata o art. 93 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. § 1o Somente poderão ser habilitadas nas licitações para concessão florestal empresas ou outras pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede e administração no País. § 2o Os órgãos do Sisnama organizarão sistema de informações unificado, tendo em vista assegurar a emissão do comprovante requerido no inciso I do caput deste artigo.

(7) TRIBUNAL – SEGUNDA REGIÃO. AMS – APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 38274 Processo: 200002010685086 UF: RJ Órgão Julgador: QUINTA TURMA Data da decisão: 10/03/2004 Documento: TRF200117428 DJU DATA:02/04/2004 PÁGINA: 173 JUIZ ALBERTO NOGUEIRA TRIBUTÁRIO. CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS RELATIVA À DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO. EXPEDIÇÃO PARA FINS DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES PÚBLICAS. SENTENÇA CONCESSIVA DA ORDEM MANDAMENTAL. MANTIDA. 1 – A Certidão Negativa de Débitos é uma garantia da parte, e uma vez não emitida, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, ficando a impetrante-apelada sujeita a todo tipo de penalidades e sanções fiscais, inclusive, seu impedimento em participar de licitações públicas, fundamental para exercer suas atividades regularmente e atingir seus objetivos sociais. 2 – Considera-se, ainda, que a simples demora no pagamento de obrigações não pode impedir que a pessoa jurídica prossiga no exercício de suas atividades, bem como de sua participação em licitação, pelo fato de não poder cumprir a exigência editalícia quanto à apresentação de comprovante de regularidade fiscal 3 – Os débitos aludidos pela autoridade impetrada dizem respeito a execuções fiscais, já garantidas por penhora, com a oposição de embargos. 4 – Precedente (AGTAG nº 2002.02.01.002645-2.TRF-2ªRegião.Rel.:Francisco Pizzolante. Dec. unânime. DJU 02.12.2002.) 5 – Recurso e remessa oficial improvidos.

(8) Art. 1º Fica creada no Ministerio da Agricultura, Industria e Commercio, uma secção especial, sob a denominação de «Serviço Florestal do Brasil», tendo por objectivo a conservação, beneficiamento, reconstituição, formação e aproveitamento das florestas.

(9) Art. 67. O Poder Executivo poderá assegurar ao SFB autonomia administrativa e financeira, no grau conveniente ao exercício de suas atribuições, mediante a celebração de contrato de gestão e de desempenho, nos termos do § 8o do art. 37 da Constituição Federal , negociado e firmado entre o Ministério do Meio Ambiente e o Conselho Diretor. § 1o O contrato de gestão e de desempenho será o instrumento de controle da atuação administrativa do SFB e da avaliação do seu desempenho, bem como elemento integrante da sua prestação de contas, bem como do Ministério do Meio Ambiente, aplicado o disposto no art. 9o da Lei no 8.443, de 16 de julho de 1992, sendo sua inexistência considerada falta de natureza formal, conforme disposto no inciso II do art. 16 da mesma Lei. § 2o O contrato de gestão e de desempenho deve estabelecer, nos programas anuais de trabalho, indicadores que permitam quantificar, de forma objetiva, a avaliação do SFB. § 3o O contrato de gestão e de desempenho será avaliado periodicamente e, se necessário, revisado por ocasião da renovação parcial da diretoria do SFB.

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