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Piscinão de Angra

Quase quatro anos depois, acordo para o tratamento do lixo da Ilha Grande não saiu do papel. Na verdade, a solução para os resíduos só depende de bom senso.

1 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro, ocupa um importante lugar no imaginário dos habitantes deste estado. Talvez seja devido ao fato de que os portugueses a conheçam desde a chegada ao Rio. Já em 1502, com a fundação da cidade de Angra dos Reis, a Ilha ficou conhecida.

Lá muita coisa já aconteceu. Dizem que uma das mais importantes ONGs brasileiras, o Comando Vermelho, teria sido fundada naquele paraíso, como resultado de uma exótica combinação de presos políticos e bandidagem nas promíscuas celas de nossa île du Diable, superando Papillon e comprovando que mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil. Também foi da Ilha Grande que o então presidiário e futuro “pastor” José Carlos dos Reis Encina, conhecido na crônica policial como “Escadinha”, fugiu do presídio de “segurança máxima” de helicóptero. Diga-se em favor das autoridades da época que não havia a Lei do Abate, motivo pelo qual as forças policiais insulares não reagiram à aproximação da aeronave. Foi na Ilha Grande que o Pai dos Pobres mandou encarcerar os inimigos políticos e, por ironia do destino, possibilitou fosse escrito um dos maiores libelos em favor da liberdade: Memórias do Cárcere, do extraordinário Graciliano Ramos.

A Baía de Ilha Grande, devido ao seu grande número de ilhas que o anedotário popular afirma ser 365, gera muitas expectativas nas pessoas que, não sem razão, acreditam que ali se encontra uma prova de que o paraíso realmente existiu. A Ilha Grande possui 193 km2, contando com 106 praias e 34 pontas. Existem na ilha algumas dezenas de pousadas e hotéis, nem todos ecologicamente corretos, visto que geradores de resíduos os mais diversos e que nem sempre têm a melhor destinação final. Não se pode esquecer, contudo, que tal paraíso está indelevelmente marcado pela força da realidade industrial dos tempos modernos com a presença de estaleiros, portos, terminais e até mesmo uma central nuclear.

Mas não é só isto. Uma vez que grandes complexos hoteleiros se encontram naquela costa, bem como segundas residências de muito “caixa-alta”, é gerado significativo trânsito de lanchas, veleiros e até mesmo helicópteros. Não. Ainda falta muito para Cote d’Azur e, por mais que se queira evitar, o Brasil que “não é da zona sul” também se mostra presente com todo o seu esplendor. Ao lado do caviar crescem a farofa e o frango de padaria. Todos democraticamente sujando o mar e aumentado a poluição da área. A verdade é que todas as contradições do Brasil explodem na região da Ilha Grande de forma muito concreta, sobretudo após a retirada do presídio da ilha. Poderíamos dizer que é uma coisa meio brega-chique ou chique-brega, a ilha de Caras está aí para não deixar ninguém mentir, dependendo de nosso ponto de vista. A presença do presídio, até 1994, era um limitador natural do número de turistas e residentes na Ilha. Agora que o presídio não existe mais, o acesso foi facilitado. Não sei se por ato falho, Salvatore Cacciola fugiu do país pela região de Angra, conforme relata em seu livro.

As barcas vindas de Mangaratiba despejam grande número de turistas na Ilha Grande sem que haja qualquer controle quanto ao número de pessoas que lá aportam, causando efeito semelhante ao dos ônibus nas praias da Região dos Lagos, ou pior. É importante que, como em qualquer local com infra-estrutura limitada, seja observada a capacidade de suporte.

Destino do lixo

Na Ilha existem várias Unidades de Conservação: (i) Parque Estadual da Ilha Grande, (ii) Parque Estadual Marinho do Aventureiro, (iii) Reserva Estadual Biológica da Praia do Sul, isto para não falarmos que a Ilha está incluída na Área de Proteção Ambiental de Tamoios. A maior parte da Ilha está sob o regime especial de proteção em decorrência da existência dessas Unidades de Conservação. Mas é aí que mora o perigo. Com a ilusão da proteção, poderemos estar destruindo.

A Ilha Grande não é uma exceção. Lá, tal qual na maioria das Unidades de Conservação nacionais, há uma grande distância “entre intenção e gesto”. O fato é que a imagem luxuriante que ficou da primeira visita que fiz à ilha foi a do lixo sendo queimado no lixão próximo à Vila do Abraão (pouco mais de 3 mil habitantes) onde está localizada a sede do Parque Estadual da Ilha Grande. Fato em si mesmo bastante curioso. A Ilha Grande é mais um dos exemplos de almanaque de conflitos de uso não resolvidos.

Lembro-me que durante o Governo Marcelo Alencar, o Secretário de Meio Ambiente Flávio Perri havia conseguido uma verba do Banco Mundial para solucionar o problema do tal “lixão”. A idéia era bastante simples: levar o material inorgânico para o continente e transformar os resíduos orgânicos em adubo para ser usado na própria Ilha. Seria construída uma pequena central de compostagem do resíduo e, de alguma forma, o lixão deixaria de existir. Tal solução não foi implementada, pois o próprio Instituto Estadual de Florestas se colocou contra ela na ocasião. Alegava-se que não teria sentido uma usina de compostagem de resíduos na Ilha Grande, visto o seu caráter de “área a ser preservada”. Estes fatos se passaram entre os anos 1995 e 1999. Em 2002 foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com vistas a dar “solução para o problema”. Recentemente os jornais noticiaram que o mar no Abrão não se encontrava próprio para o banho em função de número excessivo de coliformes fecais.

Ante a recorrência de problemas, é interessante ver no que deu o TAC. Para tal sirvo-me da análise realizada pelos pesquisadores Oliveira e Feichas, que se encontra disponível na internet (1):

O TAC da Ilha Grande foi assinado em 20 de janeiro de 2002 entre o Ministério Público e órgãos públicos, para tratar de questões ambientais: saneamento das áreas com concentração populacional; coleta, tratamento e destinação final do lixo produzido; remoção ou aproveitamento dos escombros do antigo Presídio; ordenação da ocupação dos imóveis do Estado sob administração da UERJ e da PMAR; elaboração de Plano de Gestão Ambiental; e recuperação da área degradada pelos depósitos irregulares de lixo existentes. Tendo em vista o foco deste trabalho, a seguir se descreve o TAC da Ilha Grande, com relação à gestão de resíduos sólidos.

O lixo é acondicionado em sacos plásticos e levado pelos moradores até a rua principal da Vila de Abraão, onde estão localizadas pousadas, bares e restaurantes que recebem os visitantes. Os sacos ali dispostos são coletados diariamente por um caminhão velho e embarcados numa traineira, que os transporta para o continente, onde são depositados no aterro controlado de Ariró, em Angra dos Reis.

A transferência do lixo do caminhão para a traineira ocorre no mesmo cais onde embarcam e desembarcam moradores, turistas e alimentos. O caminhão estaciona no cais, próximo a malas e objetos pessoais dos visitantes, da sua caçamba um funcionário da Prefeitura lança para a traineira os sacos de lixo, enquanto outro funcionário tenta, sem muito sucesso, organizar em uma pilha todo o lixo da Vila. Quando a embarcação desatraca, os sacos de lixo mal empilhados vão caindo na baía, deixando um rastro de sujeira que contrasta com a clareza das águas da enseada. A traineira disponibilizada para o transporte do lixo foi subdimensionada e é inadequada para este transporte.

Na percepção dos administradores da Prefeitura Municipal de Angra dos Reis, captada nas entrevistas, o TAC da Ilha Grande está sendo cumprido. Quanto à traineira de pouco mais de dez metros, alegam ter sido a solução, já que os recursos do MMA para adquirir uma embarcação de fundo chato, adequada para o transporte de resíduos, não foram disponibilizados. Segundo eles nenhum recurso compromissado para implantação do TAC da Ilha Grande chegou à Prefeitura.

Até o ano passado, momento de realização deste trabalho, o Plano de Gestão de Resíduos Sólidos não tinha sido elaborado, ficando na definição das diretrizes, que constam do anexo do Termo.

Já segundo o Comitê de Defesa da Ilha Grande (Codig), até hoje (outubro de 2003) nada foi efetivamente realizado com relação ao TAC da Ilha Grande, tendo esta organização não-governamental entrado com duas representações, perante o Ministério Público, contra signatários do Termo, uma pelo descumprimento de suas cláusulas e, outra, para investigar improbidade e/ou crime de omissão, mostrando que há controvérsia quanto aos recursos financeiros compromissados para implantação do TAC da Ilha Grande.

Soluções inadequadas

É possível que a análise dos pesquisadores não corresponda à realidade dos fatos. Como não fiz nenhuma pesquisa paralela, aceito os resultados dela originados. O fato é que o TAC foi uma meia-sola fruto de uma “vergonha” das entidades em assumirem algumas realidades ecologicamente incorretas. A primeira delas é que a Ilha grande não é mais o paraíso que já foi. Depois da queda, uma parcela de nossos pecados foi praticada lá.

A solução do TAC, trazer todo o lixo para o continente, é inteiramente inadequada, muito embora, em princípio, possa parecer a melhor, a mais limpa. Quanto mais deslocamos os resíduos, mais aumentamos os riscos de poluição. A quantidade de resíduo orgânico gerado pela vila do Abraão não é muito grande e pode perfeitamente ser tratada no local, desde que de modo bem articulado. Os resíduos inorgânicos, que também não são muitos, são transportáveis de forma mais fácil, pois acarretam menores riscos. Da forma que a coisa vem se desenvolvendo, existe uma perda de todos os segmentos da ilha, pois não é possível haver turismo nas condições apontadas pela pesquisa.

É necessário investir na infra-estrutura da Ilha Grande de forma efetiva e sem receios de estarmos maculando o paraíso. Não existe paraíso sobre a face da Terra. Sem as condições mínimas de transporte, comunicações, saneamento, serviços médicos, iluminação e comunicações não se pode fazer turismo sério naquela região. Estamos correndo o risco de, ao pretendermos salvar a Ilha Grande, impedindo que ela se “desenvolva”, transformá-la em um piscinão de Angra.

(1) Termo de ajustamento de conduta da Ilha Grande -RJ: O lixo na vila de Abraão.: André Amaral de Oliveira e Susana Arcangela Quacchia Feichas.

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