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Os dedos de Santos Dumont

A construção de pontes ligando o aeroporto às aeronaves, no Rio, vai tirar dos passageiros o privilégio de admirar a paisagem. Isso pode virar caso de Justiça.

1 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

De Santos Dumont muitas coisas são ditas sobre a sua genialidade. Embora os nossos irmãos do norte contestem-lhe a invenção do avião, este é um fato aceito internacionalmente. Aquela arapuca dos irmãos Wright jamais poderia ser considerada como um avião por gente séria. Agora, o Santos Dumont que está na berlinda é o aeroporto situado no centro da cidade do Rio de Janeiro e que homenageia o Pai da Aviação.

O deputado federal Fernando Gabeira (PPD-RJ)[1], de quem sou eleitor há muitos anos, muito embora nem sempre concorde com todas as suas teses, veio a público defender o direito dos viajantes da ponte aérea Rio – São Paulo a admirarem a paisagem que envolve o nosso urbano aeródromo. Mais especificamente ele tem se manifestado contra a construção dos chamados fingers para a movimentação de passageiros. Os dedos são pontes que irão ligar o prédio do aeroporto diretamente aos aviões, substituindo o método atual que é o deslocamento a pé dos passageiros da sala de embarque para os aviões e vice-versa. É no trajeto que a bela paisagem pode ser admirada. Mais do que a simples paisagem, os passageiros podem sentir a brisa da Baía de Guanabara, receber um pouco de sol e, até mesmo, tomar um bom banho de chuva, de vez em quando.

A discussão é muito relevante e merece ser enfrentada. O patrimônio paisagístico é expressamente protegido pelo artigo 216, V [2] da Constituição Federal. Obviamente que tal proteção não se faz de maneira imediata, pois há a necessidade de que seja declarado que a paisagem em questão é dotada de valor que a torne merecedora de proteção especial por parte do Poder Público. Tal proteção é conferida pelo Poder Executivo, preferencialmente. Contudo, não há qualquer impedimento que o Judiciário e mesmo o Legislativo a outorguem em casos concretos. No plano infraconstitucional a matéria está disciplinada pelo decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 [3].

O Estatuto da Cidade, instituído pela lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 autoriza a transferência do direito de construir, mediante a edição de lei municipal com a finalidade precípua de proteger paisagens, dentre outras finalidades[4]. Assim, do ponto de vista legal, o deputado está suscitando uma discussão cujas dimensões ultrapassam, em muito, uma visão puramente financeira e monetária da ordem jurídica. De fato, a questão levantada se insere em um contexto bastante mais amplo que é exatamente o de avaliarmos o papel que o direito pode desempenhar como um instrumento eficaz para a proteção de bens e valores não imediatamente monetários ou redutíveis à pecúnia. Aqui existe, também, a questão da proteção da chamada “qualidade de vida”. Alguém poderá dizer que quem viaja de avião é a elite e ela já tem uma excelente qualidade de vida, tanto assim que muitos querem chegar lá. Mas as coisas não são tão simples assim. Qualquer pessoa tem o direito de usufruir das belezas naturais.

Uma outra questão, sem dúvida, é aquela que indaga se tudo que é moderno necessariamente é melhor? Com a transferência de todos os vôos que não se dirigem a São Paulo para o Aeroporto Internacional Tom Jobim, a utilização do Santos Dumont foi muito reduzida. Aqueles que se utilizam da ponte aérea sabem disto. Os problemas do Aeroporto Santos Dumont, do meu ponto de vista de usuário, não são os de acesso aos aviões. Como o deputado sustenta e, concordo com ele, a paisagem vale o pequeno caminho a pé até as aeronaves. O aeroporto, por exemplo, não tem uma farmácia. Este um verdadeiro problema.

A Infraero deveria demonstrar de forma cabal, o que até onde eu sei, ainda não fez, que a construção dos fingers</>i é absolutamente necessária para o funcionamento do aeroporto. Uma audiência pública para tratar do problema seria muito auspiciosa e, sem dúvida, poderia esclarecer situações dúbias. Ainda que tenha passado por um severo incêndio, a arquitetura do aeroporto Santos Dumont é muito significativa de uma época, integrando-se harmoniosamente com o Aterro do Flamengo e com os outros prédios daquela região da cidade. Os tais fingers, em princípio, estão “sobrando”.

Não vamos transformar o Aeroporto Santos Dumont em um modelo pasteurizado e sem graça, como os aeroportos “modernos” que temos visto por aí e que só servem para implantar lojas comerciais, algumas em regime de verdadeiro monopólio. Com a palavra a Infraero.

[1] Partido das Pessoas Decentes

[2] Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:…V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

[3] Artigo 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. § 1º – Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art. 4º desta lei. § 2º – Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela Natureza ou agenciados pela indústria humana.

[4] Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de:………..II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural;………..§ 1o A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput; § 2o A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da transferência do direito de construir.

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