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Rio: aplausos para o que sobrou

Se o Plano Diretor quer tratar a paisagem como patrimônio do Rio, deveria começar por placas lembrando cada marco natural que a cidade destruiu.

4 de fevereiro de 2011 · 13 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O Rio de Janeiro exagerou no sábado passado. Fez um dia de sol sem nuvem, azul varrido e verão ventilado pela brisa que vinha do mar frio. Parecia de encomenda para ir ao Pão de Açúcar, a pretexto de mostrá-lo a gente de fora.

Carioca que se preza só pega o bondinho com turista empurrando. Pior para ele. Não há ponto de vista como o Pão de Açúcar para apreciar o novo Plano Diretor do Rio de Janeiro. Tem até lugar marcado para isso, lá em cima. Anos atrás, o guia da Lonely Planet botou no mapa do mundo o ponto do mirante virado para as montanhas. E ele virou arquibancada de pôr do sol.

Quem só faz isso de vez em quando acaba vendo muito mais que entardecer. Enxerga favelas em quase todas as encostas, lanhando os morros ainda verdes. Elas não davam tanto na vista quatro ou cinco anos atrás, quando duas italianas impuseram aos anfitriões o mesmo programa. Na época, o que chamava a atenção era a torre Rio-Sul, que há mais de 30 anos furou gabaritos e posturas urbanas para tirar o incorporador da insolvência.

Ele continua na mira do sol poente. Mas agora são as favelas que brigam com a topografia, fatiando a mata das encostas. Foi nisso que deu o Rio de Janeiro ter um secretário de Meio Ambiente chamado Haroldo Mattos de Lemos, que despachava queixosos dizendo que favela não era problema e sim solução.

A primeira batalha dos fundadores não foi contra os franceses e tamoios, mas com terra e pedra para sepultá-la “de todo”. Dela não restou nem a memória.

Solução ambiental elas certamente não eram. Mas logo depois foram promovidas a “comunidades” e se tornaram politicamente um assunto tão bem resolvido que o promotor Carlos Frederico Saturnino, encarregado de velar o meio ambiente na cidade, passou uma década falando sozinho, ao insistir que a paisagem do Rio de Janeiro não podia ser privatizada pelas ocupações irregulares por ser patrimônio cultural da população.

Cenário demolido. É isso que diz agora o Plano Diretor. E bastava aquele cair da tarde no Pão de Açúcar para enxergar como ele, embora “novo”, chega atrasado. Não só pela favelização. Esse é um capítulo recente na longa história de malversação do cenário natural, que a cidade começou a demolir antes mesmo de ser fundada. Ela nasceu junto ao morro Cara de Cão, ao pé do Pão de Açúcar. E de lá, olhando para baixo, cadê a lagoa que o padre José de Anchieta conheceu em 1565, quando o capitão Estácio de Sá levantou as primeiras paredes do Rio de Janeiro?

Ela tinha “uma légua de água ruim”, escreveu o jesuíta. E a primeira batalha dos fundadores não foi contra os franceses e tamoios, mas com terra e pedra para sepultá-la “de todo”. Dela não restou nem a memória. Assim como não há sinal visível da passagem pelo planeta das Lagoas do Desterro, da Sentinela, da Pavuna e da Lampadosa, que acabaram embaixo da Praça Tiradentes, do Largo da Carioca, do Passeio Público, da Lapa e da Glória.

Nossa guerra pela conquista do território passou batida na futura zona sul pela Lagoa da Panela, que virou Largo do Machado. Parou na Rodrigo de Freitas, depois de lhe tomar um terço do espelho d”água. Como elas, desapareceram, só no século 20, 36 ilhas, 56 praias e 9 enseadas da Baía de Guanabara. Sem contar o Morro do Castelo, que era o centro histórico do Rio de Janeiro.

Se os executores do Plano Diretor quiserem levar a sério a tarefa de tratar a paisagem como patrimônio inalienável do Rio de Janeiro, deveriam começar pela instalação de placas lembrando cada marco natural que a cidade desterrou e esqueceu. Senão, o que restou continuará parecendo inexaurível aos deserdados. Como o pôr do sol que os turistas aplaudiram no Pão de Açúcar, sábado passado.

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