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Conservação também se faz com livro

Por que custam tanto a sair em português os livros que conseguem deixar claras as obrigações que temos todos nós com a conservação da natureza?

26 de julho de 2010 · 14 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Parem as motosserras. Vem aí o mapa-mundi das florestas, lembrando que as árvores mais altas da terra estão espetadas na costa oeste dos Estados Unidos e no Sudeste Asiático. As da Amazônia mal batem no peito desses gigantes.

Não é bem esse o planeta que o governo brasileiro desenha, quando descreve para a opinião pública o estado do planeta. Nos outros países nem existem mais árvores, não é mesmo? Pena que o mapa seja o tipo da informação que passa de fininho pelo noticiário, enterra-se nos anais acadêmicos e lá desaparece. Aí, ligam-se as motosserras.

O que mais poderia fazer com essa informação quem vive num tempo em que a ciência empurra sem parar a natureza para além do senso-comum? Onde havia monstros, prodígios e portentos demarcando os limites do mundo conhecido na cartografia medieval, agora há biomas, efeitos antrópicos e aquecimento global disputando espaço com velhas lendas.

E não será só com notícia ligeira que se pisa em terra incógnita. Falta munição em português para desbravá-la, porque os livros em que os naturalistas aprenderam a traduzir para leigos os segredos da realidade saem, geralmente, em inglês. E em inglês permanecem. Só em inglês dá para ler de enfiada e com prazer a história da complicação em que se meteu o biólogo Bernd Heinrich, comprando no estado do Maine em 1977, para cultivar uma floresta, terras que fazendas antigas e madeireiras recentes haviam deixado no osso.

“Só em inglês dá para ler de enfiada e com prazer a história da complicação em que se meteu o biólogo Bernd Heinrich, comprando no estado do Maine em 1977 terras para cultivar uma floresta.”

A região inaugurou sua primeira serraria em 1626. E passou dois séculos a serviço do apetite internacional pelo grande pinheiro branco – ou melhor, o Pinus strobus, que cobria uma vasta extensão da costa leste norte-americana, como uma fonte inexaurível de madeira macia, leve e resistente, ideal para mastros no apogeu da navegação a vela. Por conta do pinheiro branco, a população do porto do Maine saltou de 277 almas penadas em 1830 para 14.408 em 1860. Tratou-se, sem tirar nem por, de uma corrida extrativista movida pela economia global.

A árvore virou símbolo do Maine. Ilustrava o selo do estado em 1820. Suas flores se tornaram oficiais em 1895. E em 1945 o Maine adotou a alcunha de Estado do Pinheiro. Mais ou menos como aconteceu com a araucária no Paraná. Mas com resultados menos lúgubres, porque foi ele que motivou no começo do século XX a campanha para multiplcação de parques nacionais e reservas nos Estados Unidos, no governo Theodore Roosevelt.

Os ambientalistas levariam muitas décadas para descobrir que o grande pinheiro branco prospera em terra arrasada. Quando a agricultura e a pecuária decaíram, ele voltou a ocupar os campos abandonados com a voracidade de floresta homogênea. E foi isso que Heinrich encontrou há pouco mais de 30 anos. Restaurar o bosque original só com salário de professor era, de cara, um projeto falido. Ele decidiu reflorestar a propriedade usando o dinheiro e a técnica da exploração comercial de madeira.

Tiradas num intervalo de três décadas, fotos aéreas do terreno comprovam que ele acertou a mão. U que essa mão teve cabeça para fazer em cada metro quadrado de suas colinas um considerável investimento de pesquisa. Como resultado de todo esse trabalho ele colheu, fora o prazer de morar numa clareira onde hoje alces e ursos vêm comer maçãs, assuntos de sobra para livros cotados pela crítica como obras-primas da divulgação científica, com várias temporadas na lista dos mais vendidos. No caso, estamos falando de The Trees in My Forest, lançado em 1997.

Henrich é espanosamente prolífico para um autor tão pouco sedentário. Tarimbado corredor de maratonas, ele costuma zanzar por suas matas a qualquer hora do dia e da noite, como se sentisse em casa. Tem uma curiosidade insaciável por tudo o que acontece lá dentro. Controla a cada estação a chegada e a partida dos pássaros, anfíbios, insetos e florações, dedicando-se a meticulosas investigações sobre os mecanismos que regulam o cio das plantas com a ronda dos bichos capazes de polinizá-las. Sobe em pinheiros com lápis e papel na mão, para rascunhar, lá do último galho, vistas panorâmicas que acompanham a evolução da paisagem. Aponta, pessoalmente, as árvores condenadas às serrarias, para que outras retomem o território que originalmente lhes cabia.

Enfim, cuida de todos os detalhes. E, com isso, sua floresta tornou-se um modelo vivo de ciência aplicada à conservação. Ele costuma usá-la em aulas de campo. E suas aulas soam convicentes, porque anos atrás um ex-aluno desenganado pediu-lhe para deixar seu corpo apodrecer ao relento na mata (o que Heinrich recusou), acreditando que assim chegaria diretamente à unica vida após a morte que se pode conferir molécula por molécula.

Não há assunto obscuro e abstrato que Heirich não torne claro e concreto em duas ou três páginas. A conversa fiada sobre seqüestro de carbono, por exemplo. Ela paira no ar há tanto tempo que parece incapaz de pegar na terra. Heinrich a materializa num galho que cresce diante de sua janela, absorvendo por segundo em cada célula 4,6 milhões de moléculas de dióxido de carbono, possivelmente expelidos por “um tronco em decomposição na Amazônia, um carro nas avenidas de Los Angeles, uma usina a carvão no Utah, um hornbill na Indonésia e um babuíno na Tanzânia”.

Portanto, “cada célula de madeira em cada árvore” de sua propriedade é um permanente “dá-e-toma com o resto do mundo”. Dito assim, parece simples, não? Pois é o mesmo cálculo que o tal mapa-mundi da massa florestal pretende converter à escala planetária. Para que ninguém mais possa dizer que não tem nada a ver com isso.

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