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Negócio ruim é exportar o atraso

O híbrido do Honda Civic que roda lá fora, poluindo menos e fazendo mais de 20km com um litro de gasolina, lembra que nem só de biodiesel viverão os carros da era pós-petróleo.

31 de agosto de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A distância entre o futuro e o passado às vezes depende do ponto de vista. Por exemplo: no Brasil, há filas de dois meses para comprar o Honda Civic, lançado em abril como a última palavra da indústria nacional. Ele é idêntico, por fora, ao modelo que circula no resto do mundo. Descende de uma linhagem nascida nos anos 70, ao embalo da primeira crise do petróleo, sob a fumaça que obrigava os japoneses a andar de máscaras contra gases nas ruas de Tóquio. Simples, compacto e pouco poluente, era um modelo de virtudes cívicas. Daí o título que leva na lataria.

A versão básica do novo Civic nacional, com 140 cavalos debaixo do capô, que prometem cobrir 7,5 quilômetros com um litro de gasolina, sai por R$ 62 mil. Com o logotipo EXS e seus devidos penduricalhos, custa R$ 78 mil. Faltam-lhe, no entanto, detalhes incorporados a seu irmão gêmeo que circula lá fora, como air-bags na frente, dos lados e atrás, piloto automático, tomada para MP3 no painel e, sobretudo, o logotipo AT-P2EV.

Muito mais por muito menos

Em inglês, a sigla designa um veículo com “tecnologia avançada de baixa emissão”. No caso, um automóvel híbrido, com dois motores – um convencional, a explosão, outro elétrico, de 93 HPs – que se alternam, para levá-lo o mais longe possível, com o mínimo de combustível. Seu manual recomenda uma visita à oficina para manutenção a cada 160 mil quilômetros. Sua bateria dura 10 anos. Seu consumo fica na faixa dos 22 quilômetros por litro.

Ele bebe três vezes menos que o similar brasileiro e é quase 50% mais barato que o nosso, mesmo equipado com sistema eletrônico de navegação por satélite. Anuncia-se nos Estados Unidos como o carro de gente que sabe o que é ser esperto. Em Gainesville, na Flórida, incorporou-se como atestado ambulante de decência ambiental à frota da GRU, concessionária dos serviços municipais de água, esgoto, eletricidade, gás natural, telecomunicações, parques e jardins. Em Londres, é a rádio-patrulha da polícia inglesa. O ACEEE, ou Conselho Americano para a Economia de Eficiência Energética, considerou-o o veículo “mais verde” de 2006.

Antes que alguém os confunda, convém avisar que os híbridos de lá pouco ou nada têm a ver com os “flexpower” daqui, apelido em inglês da tecnologia nativa. Os híbridos usam motor convencional para as arrancadas e elétrico para o resto. Recarregam-se andando. No caso da Honda, os pistões vão parando, um a um, dentro dos cilindros, à medida que alcança a velocidade de cruzeiro. A máquina é tão silenciosa que, funcionando em marcha lenta, parece desligada. Os motoristas de primeira viagem tendem a acionar o arranque cada vez que freiam nos sinais.

Um grande canavial

Você um dia ainda terá um? Ninguém sabe. Mas, na dúvida, não custa ficar de olho nos carros híbridos, para não embarcar no programa do etanol e no biodiesel, como se o governo Lula estivesse prestes a resolver os problemas do planeta. Para isso, Brasil teria, no mínimo, que atear fogo às vestes. Ou seja, à sua cobertura vegetal. E não seria a primeira vez. Já fez isso há 500 anos, quando derrubou a cotação do açúcar no mercado mundial cortando árvores a torto e a direito na mata atlântica. Foi assim que o Nordeste perdeu seus 36,8% de floresta nativa, e ganhou em troca o semiárido, seu projeto de deserto artificial.

Naquele primeiro surto de desenvolvimentismo colonial, dizia o sociólogo Gilberto Freyre, “o canavial desvirginou todo esse mato grosso pelo modo mais cru”, deixando em seu lugar o cenário “hoje tão nosso” que, “com um tanto de ironia”, chamamos de “Zona da Mata” nordestina. Aprendeu-se alguma coisa com a ganância dos engenhos? Quem dera. As últimas lembranças da mata atlântica que restavam em Alagoas nos anos 70 foram queimadas, com incentivos fiscais do Proálcool, na primeira febre de especulação no mercado das energias renováveis.

Agora, com o Wall Street Journal anunciando que o etanol brasileiro pode ser o melhor investimento da guerra no Oriente Médio e o Piauí pronto para se converter em emirado da mamona, o economista Roberto Schaeffer adverte que, só para mover os 180 milhões de carros dos Estados Unidos, seria preciso encher de cana o dobro da área cultivada no Brasil. Em outras palavras, fazer do país um imenso canavial. Dito assim, assusta. Mas, pela experiência dos brasileiros na matéria, não faltará quem goste da idéia.

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