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Quem dá mais por Itatiaia?

Antes de encarar assuntos pendentes há quase 70 anos, Walter Behr, chefe de Itatiaia, precisa provar ao público que o parque nacional vale 12 reais.

6 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Do portão para fora, já se sabe que o Parque Nacional do Itatiaia tem novo chefe. Ele se chama Walter Behr, assumiu em agosto e, na véspera de completar quatro meses no cargo, foi ruidosamente saudado por guias de turismo, que organizaram na cancela um protesto contra a taxa R$ 12 por cabeça, que passou a cobrar pelo uso de trilhas nas Agulhas Negras. O piquete, no dia 26 de dezembro, atraiu as câmeras da TV-Rio Sul, uma afiliada local da Rede Globo. E assim, embalada na falta de assunto que acalentava a semana entre o Natal e o Ano Novo, a mudança da administração debutou nos telejornais.

A cobrança, em si, não era exatamente uma surpresa. Constava há quase seis anos de uma portaria do Ibama, a 62, publicada em março de 2000. Mas pelo visto ela ainda não encontrara tempo para vir de Brasília à Serra da Mantiqueira. “Tudo o que fiz foi aplicá-la”, diz Behr. Ele alega que não encontrou nos estatutos da função uma só cláusula que lhe desse a prerrogativa de cumprir ou não a norma em vigor. E acha a reação exagerada, porque os R$ 12 trazem embutidos descontos de até 50% para clubes de montanhismo. Mas sabe que bateu de frente com um princípio irrevogável da cidadania nacional – a tradição que confere a todo brasileiro mais ou menos empistolado o direito de usar de graça tudo o que é público. Nas agências turísticas, uma visita às Agulhas custa no mínimo R$ 75 por cabeça. E até o ingresso básico, congelado desde a década passada em R$ 3, saiu outro dia no suplemento turístico de um jornal como “o único inconveniente de Itatiaia”.

Deve ser mesmo, porque até a Renault, que fabrica automóveis num município da vizinhança, telefonou uma vez para o recém-chegado Walter Behr, pedindo-lhe para abrir os guichês aos convidados de uma convenção da empresa em hotel do parque. Não era tanto pelo dinheiro, ele presume. As credenciais de entrada franca em Itatiaia são, antes de mais nada, um sinal de que o guarda da portaria sabe com quem está falando. Logo, um privilégio disputado. Ele perdeu a conta das isenções que cassou desde setembro, quando tomou posse. Entre os agraciados, havia desde hóspedes de pousadas das redondezas a firmas que prestam serviços à Furnas Centrais Elétricas, encastelada nas Agulhas Negras.

A estatal mantém no planalto uma antena retransmissora, relíquia do tempo em que as telecomunicações por micro-ondas faziam ninhos no cocoruto das montanhas, como se fossem águias. Furnas privatizou lá no alto um filé da pedra do Couto, cercou-se de arame farpado, entrincheirou-se em placas anunciando que ali começa o território inviolável dos grandes segredos nacionais e concretou a rampa de acesso às suas instalações estratégicas. Por que? Porque coisas como essa sempre foram naturais em Itatiaia. E, portanto, entregues de mão-beijada.

Behr se formou em Administração, mas abandonou o diploma na universidade para embarcar como marinheiro num navio de carga, rumo à Escandinávia. Passou meses na Suécia, quando o Partido Verde estava bicando a casca da política européia. E voltou de lá convertido em militante ambientalista. Ele organizou nos anos 80 a caravana de oposição à usina nuclear de Angra dos Reis. Passou três anos viajando pela América Latina, para escrever um belo livro sobre os parques nacionais do continente, ilustrado pela fotógrafa Luciana Napchan. E tocava uma pousada na serra da Bocaina, no começo desta década, quando recebeu pelo correio o aviso de que acabara de passar no concurso para o Ibama. Largou a hotelaria e se mudou para a Reserva Extrativista do Baixo Juruá, nos confins da Amazônia. Ou melhor, a um dia de barco de Tefé, que por sua vez também não deixa de ser o fim do mundo. Quando botou os pés no novo emprego, a unidade federal só existia no papel. Um ano e meio depois, deixou-a instalada, com R$ 1,5 milhão de projetos aprovados em Brasília.

Ele pegou a gerência de Itatiaia no segundo semestre do ano passado como se recebesse um prêmio. Mas aprendeu de cara que aquele pode ser o primeiro parque nacional do Brasil, mas nem por isso está pronto. Encaixado entre as maiores cidades do país, na beira da rodovia Rio-São Paulo, tem problemas semelhantes aos da mais remota fronteira amazônica. “Às vezes me sinto em mato Grosso”, ele dia. E sua estréia nas Agulhas Negras foi um verdadeiro batismo de fogo.

Ele subiu até lá a passeio, para relaxar dos absurdos que o atazanavam na parte baixa do parque, onde há 190 sítios particulares dentro de uma unidade de uso indireto. Supôs que no planalto seria diferente. Ledo engano. Na ida, passou na estrada por uma vaca morta, apodrecendo ao relento. Lá em cima, não encontrou um único funcionário do Ibama, só vigilantes terceirizados. Na volta, flagrou um caminhão carregando toras de madeira nativa “como se estivesse numa área de manejo florestal”. No conjunto, enxergou um detalhe que até hoje ninguém vira: desde que o parque foi ampliado há mais de 23 anos, a portaria da parte alta continuava plantada onde sempre esteve. Ou seja, 13 quilômetros parque adentro.

E ele nem precisaria ir tão longe. Na sede, a poucos passos de seu gabinete, a bagunça também era risonha e franca. Quase três anos de sucessão interminável, desde que a febre de indicações partidárias contagiou Itatiaia no começo da era Lula, puseram-lhe nas mãos uma frota oficial em ruínas. As duas picapes Toyota 4×4 estavam encostadas por falta de revisão. Dois carros Corsa, um Clio, uma Fiat Elba, uma van Mercedes-Benz Sprinter e um caminhão Ford pareciam condenados à aposentadoria precoce, por fadiga mecânica. A maioria com três anos de uso.

Em compensação, a um quilômetro dos escritórios havia uma oficina mecânica perdida no mato. Mandando capinar o pátio e tirar a lama dos poços de lubrificação, Behr descobriu que estavam lá, à sua disposição, todas as ferramentas capazes de ressuscitar os veículos – soldas, prensas, compressores de ar, elevadores hidráulicos, prontos para voltar à vida com meia dúzia de reapertos. No meio do entulho, havia estoques completos de óleo, graxa, pneus novos e peças de reposição. E o que parecia uma tapera era o belo prédio do Centro de Manutenção, com os traços inconfundíveis que o arquiteto Angelo Murgel tentou dar aos parques nacionais no governo Getúlio Vargas.

Construído num tempo em que, roubando-se menos no serviço público as obras do governo cabiam melhor nos orçamentos, o edifício emergiu da faxina como se saísse de uma reforma em regra. “É impressionante, o telhado estava perfeito”, diz Behr. Três dias depois começava a roncar sob as vigas da garagem o motor da primeira Toyota que os mecânicos devolveram aos fiscais de Itatiaia, depois de um ano e meio calado. Estava quebrado por rodar sem óleo. “E óleo era o que não faltava. Faltava só vergonha na cara para botar o óleo no motor”, ele resmunga.

O novo chefe é do tipo que caminha em picada vestido de guarda-parque. E isso dá trabalho aos funcionários. “Todo dia dou uma volta e mando fazer alguma coisa”, ele reconhece. Está cheio de projetos. E os mais radicais datam de 1937, quando o parque foi criado, levando a bordo as glebas que o Ministério da Agricultura enxertou naquele filé da serra da Mantiqueira, achando que, plantando colonos de origem européia, colheria frutas de clima temperada no frio da montanha.

No ano que vem o Parque Nacional do Itatiaia faz 70 anos. E Behr tem planos para comemorar o aniversário com os primeiros passos de um processo de regularização fundiária que nunca saiu da gaveta. Desencavou, entre resmas de papel velho, o projeto de reforma do Centro de Visitantes, contratado pelo governo brasileiro com o Banco Interamericano de Desenvolvimento por R$ 1 milhão. Mas, por enquanto, o que fez barulho mesmo em sua gestão foi a taxa de R$ 12 para o uso das trilhas nas Agulhas Negras.

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