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Da Economia à Ecologia

O Eco encurta a distância entre a Economia e a Ecologia, publicando versos inéditos da jornalista Míriam Leitão sobre as árvores que ela cultivou e perdeu.

5 de outubro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Da Economia à Ecologia, a distância pode ser bem menor do que se pensa. Aqui, pelo menos, na redação do Eco, basta meia dúzia de passos para atravessar o corredor que separa o site da sala onde trabalha a jornalista Miriam Leitão. E, por falar nisso, como ela trabalha! É difícil chegar tão cedo a ponto de não encontrá-la já diante do computador, às vezes com o jeito de quem amanheceu num estúdio de televisão. E ainda mais difícil sair tarde sem passar pela luz acesa de seu escritório, atravessando a parede de vidro. Sinal de que ela ainda está lá, espremendo textos indigestos, como atas do Copom, para servir o puro suco aos leitores de sua coluna no café-da-manhã.

Diante de sua rotina, o expediente do Eco parece uma brincadeira diária de marmanjos. O jornalismo ambiental pode até ser novidade. Mas lembra muito o velho jornalismo. É produto de muita conversa, discussão e piada. No site, até os e-mails que viajam de uma mesa à outra costumam ser precedidos por comentários em voz alta, que vão à frente das mensagens como batedores de sirenes ligadas. Tudo isso faz barulho. Mas ela não reclama.

Miriam vem pouco à sala do Eco. Mas, quando vem, pede licença para entrar, como se a casa não fosse, literalmente, sua. Modéstia à parte, quase sempre traz notícia fresca, entregue a domicílio na oficina de repórteres cada vez mais desatentos aos assuntos que vivem nas primeiras páginas. E certamente nos controla de longe, porque é só chegar à redação um entrevistado para aparecer instantaneamente a bandeja do legítimo café mineiro de Dom Modesto, feito na hora. O bule de porcelana, ainda por cima, está sempre misteriosamente cercado pelo número certo de xícaras. Coisa de gente habituada a fazer conta.

Mas outro dia ela veio só para falar de árvores. De três árvores, exatamente. Da amendoeira que plantou quando era menina e cresceu longe da praia, num quintal de Caratinga, em Minas Gerais. Como o Brasil, aquela cidade tem nome de planta. Caratinga vem a ser um tubérculo, que antigamente os índios comiam. E tem uma folha decorativa, de manchas vermelhas, que atualmente os caras-pálidas desconhecem.

Míriam e a amendoeira cresceram juntas. Quando a família deixou a casa, ela se despediu da árvore com choro e abraço. Mais tarde, consolada, tomou coragem, bateu à porta de seu antigo endereço e pediu aos novos moradores para rever a amendoeira. Encontrou no terreiro o toco serrado.

Anos depois veio a laranjeira, que encontrou na casa alugada na Gávea, o bairro mais rural que sobrou na Zona Sul do Rio de Janeiro. Aquele pé dava laranjas azedas, intragáveis. Mas seus galhos estavam carregados de bromélias, que enchiam o jardim de pássaros.

Ela tomou tanto gosto pela laranjeira que, ao se mudar de lá, acabou voltando meses depois para visitá-la, como tinha feito com a amendoeira de Caratinga. Mais uma vez, o novo inquilino se livrara da árvore. Em compensação, agora Míriam estava morando em casa própria, onde era dona de um jasmineiro que cobria o terreno de flores brancas e cheiros doces. Essa árvore, pelo menos, ninguém poderia derrubar. Mas veio o jardineiro podá-la, exagerou no corte e a planta morreu.

Custou algum esforço de reportagem tirar de Míriam Leitão essas histórias. Mas, ao contá-las, ela acabou dizendo à turma do Eco que havia escrito, em versos, o elogio fúnebre de suas árvores. E, dito isso, não teve remédio senão entregá-los. São os versos que o site reproduz abaixo – em primeira mão e grande estilo, como as notícias de Economia que ela publica diariamente.

Três tempos

Era uma castanheira do mar
era a terra seca longe do mar
era apenas a teimosia infantil
fincando
um pedaço do mar
na terra seca que nunca verá o mar.
Sem lógica,
sem lei,
desnatural
nasceu com destino de castanheira do mar que nunca verá o mar
nasceu com fraqueza aparente
força de terra seca que quer o mar,
o mar que nunca terá

Viveu palmo a palmo o desafio
e já era um metro de imprevisto
no dia da chegada dos donos da casa

Ninguém entende mesmo o serviço de uma castanheira do mar,
longe do mar,
que nunca vai cobrir a praia,
cortar o sol,
nunca, agravar o vento
nunca ser o que seria,
o previsto.
Ninguém entendeu o contraditório,
a liberdade do impróprio,
o inventado.
Não havia serviço,
não havia fruto,
não havia lógica.

O corte prematuro ainda me fere
há trinta anos eu a vejo na minha saudade
da primeira casa alugada.

Era uma laranjeira de laranja meio seca, meio amarga
que quis a diversidade
como escusa ou pretexto.
Por ser de laranja fraca,
pendurou-se de bromélias,
espalhou bromélias,
laranjas de outros bicos,
convocou passarinhos
para o jardim dos meus conflitos
dos vermelhos e dos verdes
dos tons e contra-tons
do meio doce
do meio tempo.
Forte em bromélias e passarinhos
e de laranjas, fraca.
Pressenti, antevi seu fim
no primeiro decreto
dos donos da última casa alugada

Era uma árvore de jasmim
fechada em um verde militar
silencioso e exato
na porta da varanda.
Óbvia em seus galhos e folhas,
prisioneira do mesmo arredondado imposto pelo jardineiro
intimidada esquecida.

Até que chegava a revolução dos novembros
suas flores explodiam em todos os galhos
seu cheiro invadia, dominava,
soberana da casa.
Era, enfim, minha, a casa, a árvore
e hibiscos, azaléias, palmeiras
e todo o jardim,
onde o jasmim preguiçoso florescia no seu tempo
era meu o tempo da casa
o tempo de esperar
por novembro,
pela vida,
pelas flores,
pelo cheiro.
Era enfim, minha, a espera
a eterna espera pelo tempo das flores
Era a senhora do tempo do meu jasmim.

Até o dia da poda desatenta
o corte impreciso
a ferida fatal

Ainda guardo o desconsolo
das três vidas, desentendidas.

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