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A Lei que mudou o futuro

Uma lei americana simples e direta, aprovada nos anos 80, levou bancos multilaterais a exigir relatórios de impactos ambientais e mudou as regras do jogo.

28 de outubro de 2004 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Poucos ambientalistas se lembram, na atualidade, de uma lei que pode ser tipificada como curta e grossa e quem sabe, além do objetivo de sua proponente, foi extraordinariamente efetiva na prática. Essa lei do Congresso dos EUA foi, durante algum tempo, denominada a Lei Pelosi e pretendia apenas exigir que os bancos multilaterais de desenvolvimento, para os quais os EUA aportavam recursos financeiros, cumprissem com exigências ambientais equivalentes às que os EUA aplicavam no seu próprio território, especificamente a obrigatoriedade de submeter avaliações de impacto ambiental de qualidade razoável.

Corriam os anos 80 e o mundo despertou bruscamente para os impactos ambientais dos grandes projetos de desenvolvimento que os bancos multilaterais, em especial o Banco Mundial, financiavam. Dois casos chamaram a atenção da imprensa mundial: o programa de transmigração para a ilha de Kalimantan (Borneo), na Indonésia, e o programa de colonização de Rondônia, no Brasil, cujo eixo era a BR-364. As organizações não governamentais ambientais, até então pouco conhecidas, foram artífices do escândalo, denunciando os programas à imprensa que, pela primeira vez, se apropriou desses tipos de temas ambientais e fez eco e caixa de ressonância às denúncias que de outra parte, eram perfeitamente justificadas. Nos dois casos os problemas e impactos sociais e ambientais eram muito semelhantes. Estradas e outras infra-estruturas, para apoiar programas de colonização, pudicamente denominados “assentamentos rurais”, abriam terras virgens, onde moravam povoadores primitivos e permitiam o ingresso anárquico de centenas de milhares e logo de milhões de imigrantes que, à moda das lagostas míticas, destruíam tudo na sua passagem. Árvores milenares eram derrubadas para extirpar uma fração mínima da sua madeira valiosa, centenas de milhares de hectares de matas eram eliminados, os índios eram assassinados ou empurrados para regiões mais remotas, os fogos e a fumaça podiam ser vistos a centenas de quilômetros de distância… e as autoridades ficaram muito alegres com a nova estrada que trazia o progresso e inchava seus bolsos. O Banco Mundial, financiador das enormes obras, aparentemente não via nada, mas alguns dos seus funcionários foram os primeiros a denunciar, interna e discretamente, o problema.

Naqueles dias a congressista democrata Nancy Pelosi, provavelmente por influência de algum personagem da sociedade civil, propôs e conseguiu fazer aprovar uma lei, muito breve e concreta, segundo a qual nenhum representante dos EUA na diretoria dos organismos multilaterais de desenvolvimento, ou seja, dos bancos como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dentre outros, podia votar a favor de projetos para os quais o representante não tivesse recebido o relatório de impacto ambiental com 120 dias de antecedência à apresentação do projeto ao conselho diretor. Nesse período de tempo, a avaliação do impacto ambiental deveria ser revisada por pessoal especializado do Departamento do Tesouro e das agências ambientais dos EUA, para oferecer uma recomendação de voto ao representante. Essa medida foi muito inteligente, pois essa obrigação para com os representantes americanos, devido aos regimentos internos dos bancos, deveria ser estendida a todos os membros dos conselhos diretores.

O voto do diretor americano no Banco Mundial é importante, embora não seja decisório. Mas esse voto é essencial para aprovação de projetos em outros bancos, como o BID. De outra parte, os europeus e canadenses passaram a apoiar e exigir também o respeito a essa medida. Assim, primeiramente o Banco Mundial e logo todos os outros bancos multilaterais passaram a adotá-la e a exigir dos países que solicitam empréstimos, a preparação de avaliações de impacto ambiental relativamente sérias. Para revisar esse material e ajudar os países a prepará-lo, os bancos foram forçados, finalmente, a criar departamentos ou divisões dedicadas ao meio ambiente. Foi assim que no fim da década de 80 todos os bancos deixaram de ter apenas um ou dois funcionários ambientais e passaram a ter dezenas e centenas em meados dos anos 90. Foi então que os bancos ficaram muito mais sérios com a questão ambiental.

Tão sérios que, ainda que alguns nacionalistas radicais não aceitem, foi a lei Pelosi que determinou que os países da América Latina e de outros continentes passassem a levar em conta o tema ambiental. Era quase cômico ver a cara dos ministros de fazenda ou economia quando eram informados de que seu projeto preferido não poderia ser aprovado sem o requisito de uma avaliação de impacto ambiental…. O que é isso? Como se procede? Quem deve fazê-lo? Quanto vai ser o custo? Quem deve aprová-lo? Foi uma delícia ver esses personagens arrogantes e tão pouco interessados no meio ambiente terem que reconhecer, finalmente, que existiam limites novos para suas pretensões. E foi assim que em toda América Latina começaram a florescer novas leis ambientais ou que, como no caso do Brasil, começaram a ser aplicadas. Também foram criados os ministérios, as agências e os conselhos de meio ambiente e o processo de licenciamento ambiental passou de exceção à rotina.

É verdade que o caso brasileiro foi um pouco diferente, pois a legislação que exige o licenciamento ambiental com base nas avaliações de impacto ambiental é anterior à Lei Pelosi, o que se deve à visão do Professor Paulo Nogueira Neto. Mas, inclusive no Brasil, foram pressões do Banco Mundial e do BID que mais influenciaram na aplicação dessa e de outras leis ambientais. E, em outros países, tudo começou com essa pressão, pouco dissimulada, dos bancos multilaterais. Pois nada existia previamente, como nos casos de Argentina, Peru, Bolívia, Equador, Paraguai ou Uruguai, apenas para mencionar uns poucos. Somente a Venezuela e Colômbia, na América do Sul, estavam relativamente adiantadas nesse tema.

Assim foi que a então pouco conhecida congressista Nancy Pelosi iniciou uma revolução que mudou o mundo para melhor. Um dispositivo legal de apenas duas páginas, incluindo a sua justificativa, de linguagem precisa e de simples aplicação. Um verdadeiro exemplo de eficácia que, como bola de neve, rodou desde Washington até os confins do planeta, ajudando efetivamente a melhorar o futuro ou, pelo menos a evitar que seja pior do que é. Além do mais, ao implantar essa lei, os bancos descobriram, ainda, que o meio ambiente pode ser um excelente negócio e desenvolveram importantes carteiras de projetos ambientais. Hoje, Nancy Pelosi é muito famosa, preside seu partido na câmara dos deputados e é autora ou promotora de muitas leis transcendentais. Assim, os ambientalistas do mundo jamais deverão esquecer do muito que a ela se deve.

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